COMPARTILHAR

A pesquisa exaustiva de Lena Castello Branco resultou numa obra maiúscula. Sua importância extrapola as fronteiras goianas, é um clássico da historiografia brasileira

Nilson Jaime e Jales Guedes Coelho Mendonça

Especial para o Jornal Opção

Em 2020, comemoram-se 250 anos da concessão da carta de sesmaria “de meia légua de terra” ao português Manuel Cayado de Sousa, patriarca da família Caiado no Brasil, pela Junta Provisória de três “homens bons” que governava interinamente a então Capitania de Goiás, desmembrada há pouco da de São Paulo. A gleba localizava-se nas cercanias das “matas da Paciência”, às margens do rio Uru — tributário da bacia hidrográfica do Tocantins —, nas adjacências de Vila Boa, antiga capital, e equivaleria hoje a cerca de 225 alqueires goianos.

Em 3 de maio de 2010, ano em que a referida sesmaria (datada de 18 de junho de 1770) completava 240 anos, foi lançado, em Goiânia, o livro “Poder e Paixão: A Saga dos Caiado” (Cânone Editorial, 2 volumes, 1.070 páginas), da historiadora em História Lena Castello Branco Ferreira de Freitas. O concorrido lançamento — curiosamente realizado no Salão Dona Gercina do Palácio das Esmeraldas, na cidade filha da “Revolução de 1930” e ainda patrocinado meritoriamente pela Agência Goiana de Cultura Pedro Ludovico Teixeira —, contou com a presença de diversas autoridades, dentre elas os anfitriões da noite: o então governador Alcides Rodrigues e sua mulher, Raquel Rodrigues.

No evento, o citado mandatário, a autora, o prefaciador, o secretário estadual Sérgio Caiado e o deputado federal Ronaldo Caiado fizeram uso da palavra. O discurso enunciado pelo então parlamentar e atual governador granjeou maiores comentários em decorrência da carga de simbologia que mobilizou, sobretudo o resgate e a evocação da famosa frase atribuída ao cientista Albert Einstein: “É mais fácil desintegrar um átomo que um preconceito.” Na sequência, emendou: “A família sempre foi vítima desse preconceito. Acho que agora vamos ver uma história de Goiás com isenção, imparcialidade, sem querer absolver ninguém e ao mesmo tempo satanizar aquele que foi adversário político”.

“Poder e Paixão” é prefaciado por Noé Freire Sandes, professor-doutor de História da Universidade Federal de Goiás (UFG), que qualifica a obra como “definitiva sobre a família Caiado”. A apresentação “de orelha”, da lavra do doutor em História Nasr Fayad Chaul, também docente da aludida instituição, segue a mesma senda do prefaciador ao julgar o trabalho “parte obrigatória da bibliografia sobre a Primeira República em Goiás, sobre os anos 1930 e a vida política do Estado pós-30.” Em outras palavras, as ponderações apontam para uma idêntica conclusão: o livro nasceu clássico. A propósito, esse é o maior conceito que um escritor pode aspirar sobre sua produção intelectual.

Lena Castello Branco, doutora pela USP: “Poder e Paixão: a saga dos Caiado” é uma obra maiúscula, talvez a maior do gênero já produzida em Goiás. Sua importância extrapola as fronteiras goianas. É um clássico da historiografia brasileira, escrito de forma literária não-ficcional por uma grande escritora| Foto: reprodução

A autora, doutora em História pela USP, professora aposentada da UFG, ex-membro do Conselho Federal de Educação, integrante da Academia Goiana de Letras (AGL) e do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG), logo nas primeiras linhas da introdução, já esclarece que na historiografia pouco se fala da Primeira ou “Velha” República (1889-1930) em Goiás. E o que é escrito não analisa as ações e realizações dos sujeitos históricos do período, indicando, subliminarmente, prossegue ela, a percepção “de que esse foi um tempo destituído de interesse e significado, quando coronéis atrasados uniram-se em uma oligarquia violenta e retrógrada, cuja expressão emblemática seria um certo Totó Caiado — homem de maus bofes que mandava matar os adversários e arrancar-lhes as orelhas”.

Segundo Lena Castello Branco, a forte representação negativa dos Caiado no imaginário popular não apresentava sua correspondência ao que ela experimentava no convívio com integrantes da família. Nesse particular, revelou que sua amizade com Brasilete Caiado restou decisiva para suscitar “dúvidas quanto à veracidade de tão depreciativas afirmações, pois ninguém mais idealista do que ela, refinada e autêntica vilaboense, ao mesmo tempo batalhadora e amante da cultura”.

O livro exigiu da pesquisadora quase dez anos de dedicação. A fim de aquilatar-se o grau do esforço despendido, basta notar que o depoimento do senador Emival Caiado, grande incentivador do projeto, totalizou cerca de trinta horas de gravações. De mais a mais, as notas de rodapé insertas ao final de cada um dos 26 capítulos dos dois tomos atingiram a monumental cifra de 3.389 intervenções. Sem embargo, a energia consumida valeu a pena: o produto final afigura-se na maior contribuição de Lena Castello Branco à historiografia brasileira.

Metodologia e escopo

De acordo com o filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005), em seu clássico “A Memória, a História, o Esquecimento” (Unicamp, 536 páginas, tradução de Alain François), é armado de perguntas que o historiador se engaja em investigações nos arquivos. Assim pensando, e optando pela história-problema, Lena Castello Branco formula alguns questionamentos, dos quais deve o leitor se apossar antes de iniciar a leitura: i) “Como e por que se deu a demonização dos Caiado — e, em especial, do senador Antônio (Totó) Ramos Caiado?”; ii) “Na disseminação do estereótipo atribuído aos Caiado, até que ponto foi decisivo o contexto histórico das décadas de 1920 e 1930?”; iii) “Como atuou, nesse sentido, a força da propaganda somada à suspensão das liberdades individuais, durante o Estado Novo?”; iv) “Na história da Primeira República, o que comprova ser irremediavelmente ruim no caiadismo, ou seja, a predominância política do grupo liderado por Totó Caiado?”; v) O que evidencia que os políticos da Velha República tenham sido retrógrados, violentos e corruptos?”; vi) “Se verdadeira a assertiva, por que só os situacionistas foram apontados como tal?”; vii) “Sustenta-se em provas documentais a generalização desses atributos aos políticos ditos ‘carcomidos’?”; viii) “Ou será ela resultante de elaborações calcadas em divergências que, no fundo, eram mais contingenciais do que reais?”.

Para escrever “Poder e Paixão”, a historiadora vasculhou 37 arquivos públicos e acervos particulares situados na Cidade de Goiás, Goiânia, São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, com destaque para o Arquivo Nacional (Rio de Janeiro) e o Arquivo do Fórum Emílio Póvoa (Cidade de Goiás), onde se encontram, respectivamente, inquéritos instaurados pela Comissão de Sindicância de Goiás e processos dos políticos derrotados em 1930. A autora realça a importância desses documentos, uma vez que eles eventualmente permitiram, a despeito do rígido controle de informações vigente à época, ouvir a voz dos “decaídos”.

As missivas em posse da família são fontes valiosas, notadamente o “conjunto epistolar composto por cartas escritas por Totó Caiado para a esposa, Mariquita, durante o prolongado exílio a que foi obrigado o ex-senador, nos anos subsequentes à Revolução de 1930”. De igual modo, as cartas trocadas entre Consuelo Caiado e a sua amiga Leonor Borba, capazes de desvendar parte da mentalidade feminina de um século atrás.

Diante desse verdadeiro arsenal do passado, Lena Castello Branco passou a perquirir como e quando os Caiado se radicaram em Goiás, além da forma como se afirmaram econômica, social e politicamente, permanecendo em evidência há 150 anos nas sociedades goiana e brasileira. Para melhor conhecer as raízes ibéricas caiadistas, a historiadora empreendeu viagem ao vilarejo ancestral de Caria, na região de Beira Alta, em Portugal.

Para reconstituir a saga dessa família, a autora fixou balizas cronológicas, espaciais e temáticas. O interregno de tempo escolhido foi de 1770 — data da concessão da sesmaria, já mencionada —, a 21 de abril de 1960, dia da inauguração de Brasília, cujo projeto de lei para a transferência teve a autoria do deputado federal Emival Caiado, presidente do Bloco Parlamentar Mudancista. O espaço delimitado centra-se prioritariamente no Estado de Goiás e, particularmente, em sua antiga capital.

Quanto ao tema, Lena Castello Branco optou por não se estender em aspectos genealógicos, que extrapolariam as fronteiras do Estado anhanguerino, alcançando o Espírito Santo, o Rio de Janeiro e São Paulo, dentre outros. No entanto, tracejamentos biográficos de determinados agentes históricos restaram inevitáveis, a começar pelo patriarca Manuel Cayado de Souza, o seu neto Antônio José Caiado e algumas linhagens de seus descendentes. Dentre estes, o filho Torquato Ramos Caiado, os netos Antônio (Totó), Brasil e Leão, bem assim o bisneto Emival Ramos Caiado, ou seja, a vergôntea dos “Ramos”, todos com larga projeção política, principalmente entre 1912 e 1930. Destaca a participação feminina com Iracema Carvalho Caiado, Maria Adalgisa de Amorim Caiado e Consuelo Caiado, respectivamente, primeira e segunda esposas, e filha de Totó Caiado. Os demais cinco filhos do patriarca são apenas citados circunstancialmente, dentre eles Joaquina Emília, matriarca da linhagem Alencastro Caiado e José Caiado de Sousa, tronco da família Caiado radicada no Espírito Santo.

Ao analisar a intensa disputa de poder protagonizada pelos membros do clã, a autora adentra no campo da história política e da micropolítica, que nas últimas décadas ganharam maior atenção dos especialistas. Outrossim, pontifica seu objetivo: “De algum modo, tentei elaborar uma renovada história regional, refugir ao determinismo e ao economicismo predominantes em boa parte da historiografia goiana.”

O livro é dividido em oito partes, sendo quatro em cada volume, e possui índice onomástico específico nos dois tomos. Cada parte contempla três ou quatro capítulos — embora não recebendo essa denominação —, perfazendo 26 no total. Possui ainda introdução e conclusão.

De Caria a Vila Boa

O enredo histórico de “Poder e Paixão” começa onde igualmente terminará: no dia 21 de abril de 1960, na rampa do Congresso Nacional, em Brasília. É de lá que o deputado federal Emival Caiado e seu pai, o ex-senador da República Antônio (Totó) Ramos Caiado, contemplam, emocionados, o nascimento oficial da nova capital federal, em pleno sertão goiano. O sonho de várias gerações enfim concretizara-se. Um cartaz afixado num veículo antigo “Ford bigode” arranca aplausos da multidão e resume tudo: “Oh! Brasília! Esperei-te tanto!”. Inicialmente Salvador, depois Rio de Janeiro — ambas no litoral —, e agora Brasília, no coração do Brasil.

A breve descrição da historiadora, com nuances poéticas, das festividades de inauguração de Brasília, dentro do quadrilátero demarcado por Luís Cruls (1848-1908) quase setenta anos antes, é o pano de fundo da narrativa. Tal qual um “flashback”, uma reminiscência, que guarda semelhança com o romance épico “O Tempo e o Vento” do escritor gaúcho Erico Verissimo (1905-1975), Lena Castello Branco volta no tempo e inicia a tessitura da saga dos Caiado.

Eis o interessante diálogo travado entre Emival Caiado e seu genitor na ocasião mudancista:

— “Está satisfeito, meu pai?” — indagou Emival.

— “Não esperava mais ver chegar este dia” — confessou o ex-senador. Em seguida, arrematou: “Juscelino é o maior presidente que o Brasil já teve. A construção de Brasília e o que virá depois dela irão consagrá-lo perante a História”.

Na sequência, a historiadora descreve Caria, localizada na região da Beira Alta, em Portugal, terra natal de Manuel Cayado de Sousa, o primeiro da família a fincar os pés em Goiás na década de 1760. Filho de Manuel Dias e de Maria Cayada (o gênero flexiona o nome), o imigrante estabeleceu-se na sesmaria acima mencionada. Casou-se com Brígida de Almeida, filha do português Manoel Coelho de Almeida e também sesmeiro das “matas da Paciência”. Sobre Coelho de Almeida, consta que certa feita ele decidiu sair pelo sertão. Durante sua ausência, se alguém perguntava aos parentes sobre o seu paradeiro, recebia jocosamente a seguinte resposta: “Viajou. Foi para a Europa”. Dessa maneira teria surgido o nome da fazenda Europa, ainda hoje nas mãos dos Caiado.

No capítulo inaugural do livro sob epígrafe “De Caria a Vila Boa”, além das origens portuguesas e da chegada do patriarca a Goiás, esquadrinha-se a economia da jovem capitania goiana, em grande parte pertencente à Espanha até bem pouco tempo (1750), ano da celebração do Tratado de Madri, convenção internacional revogadora do conhecido Tratado de Tordesilhas (1494). É nesse contexto que se insere o empreendedorismo de Manuel Cayado de Sousa, que optou pela agricultura e pecuária, quando a maioria da população laborava na atividade mineradora.

Ao longo dos dois tomos, Lena Castello Branco pontifica a situação de pobreza vivida em Goiás. A esse respeito, convém mobilizar duas passagens, ambas sucedidas na fase imperial. A primeira, refere-se à frase do governador D. José de Vasconcelos: “O quinto empobreceu Goiás, o dízimo acabou de matá-lo”. O dízimo significava uma espécie de tributo cobrado pela Real Fazenda sobre produtos agropastoris.

A segunda envolve uma situação um tanto quanto simbólica, mas de fácil compreensão: as filhas legítimas oriundas do casamento de D. Pedro I com a princesa Leopoldina receberam os nomes de Januária, Paula e Mariana, em homenagem às províncias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Já às filhas Isabel Maria e Maria Isabel, advindas da relação extraconjugal mantida com a marquesa de Santos, o Imperador concedeu-lhes, respectivamente, os títulos nobiliárquicos de duquesas de Goiás e do Ceará.

Na planície e Antônio José Caiado

Antônio José Caiado: o primeiro do clã a entrar para a política | Foto: Reprodução

O capítulo 2, intitulado “Na planície”, apresenta como personagem central Antônio José Caiado, neto do patriarca Manoel Cayado de Sousa, e relata os acontecimentos no pós-1822, data da Independência do Brasil. Lena Castello Branco mostra a gênese da primeira oligarquia goiana — a dos Jardim —, a partir da descrição do quarto governador da província, José Rodrigues Jardim, e de sua mulher, Ângela Ludovico de Almeida. O casal é qualificado como “a primeira família goiana a atuar continuadamente na política”. A autora esclarece que “duas gerações depois, seus netos Bulhões e Jardim retomariam as rédeas do poder em Goiás, tendo como aliados os Caiado”.

Antônio José Caiado, o primeiro do clã a imiscuir-se na seara política, nasceu em 1826 e ingressou no Exército aos 18 anos. Designado para auxiliar na escolta do governador do Mato Grosso em sua viagem de regresso a Cuiabá — o percurso de Vila Boa a Cuiabá demorava à época em média de 30 a 40 dias —, o jovem Caiado buscou cumprir diligentemente sua missão, o que despertou a simpatia do poderoso viajante. Tempos depois, mercê da interferência do aludido mandatário, Antônio conseguiu desligar-se das fileiras castrenses e seguir sua vocação para as atividades agropecuárias e comerciais.

Tornou-se, posteriormente, empreiteiro de obras públicas, amealhando com seu trabalho, considerável patrimônio. Afável, conquistou a amizade dos políticos, inclusive ajudando alguns em suas pretensões eleitorais. Daí até mergulhar de corpo e alma no universo da política foi um pulo. Firmou-se como o “baluarte agrário” do grupo bulhonista (em alusão à corrente liderada por José Leopoldo Bulhões Jardim).

Lena Castello Branco reconstitui a trajetória de Antônio José Caiado como vice-governador, no ocaso do regime imperial, quando chegou a assumir a chefia do Executivo por 320 dias no total, filiado ao Clube Liberal. Mostra sua eleição para a primeira Constituinte Estadual de 1891, já agora nas fileiras do Partido Republicano, e vice-governador na chapa encabeçada por Leopoldo de Bulhões. Como o prócer da oligarquia bulhonista preferiu ocupar o mandato no Congresso Nacional no Rio de Janeiro, Caiado acabou exercendo a governadoria entre 17 de julho de 1892 a 30 de julho de 1893, apesar de se dizer pouco preparado para o posto. Faleceu em 1899 como senador da República.

Galgando a encosta e Torquato Ramos Caiado

Claudina Fagundes Caiado e Torquato Ramos Caiado, em 1871 | Foto: Reprodução

O terceiro capítulo, “Galgando a encosta”, retrata sobretudo Torquato Ramos Caiado, filho primogênito de Antônio José Caiado, nascido no domingo de Ramos de 1848. Deriva daí o sobrenome “Ramos”. Após concluir o ensino secundário no Liceu de Goiás, Torquato rumou para São Paulo, com o objetivo de ingressar na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Atingiu seu objetivo, porém cursou apenas o primeiro ano do curso jurídico.

Na capital paulista, Torquato casou-se com a paulista Claudina Fagundes, com quem teria onze filhos. Enérgica e de temperamento forte, Claudina contrapunha-se à natureza apaziguadora do esposo. A propósito, em 1927, os primos Totó e Mário Caiado protagonizaram pela imprensa uma áspera discussão. Na oportunidade, Mário chamou Antônio Ramos Caiado de Antônio “Fagundes”, sobrenome materno que ele sabidamente não ostentava. Subliminarmente, o que ele queria afirmar era que Totó herdara as características da linhagem da mãe, e não da família Caiado.

Claudina Fagundes, certamente, desempenhara notável papel na preparação educacional de sua prole. Muito por isso o diploma de ensino superior que faltara ao esposo, não se repetiria com os filhos varões: o primogênito, Totó, concluiria o curso jurídico em São Paulo; Leão, na Faculdade de Direito de Goiás; Arnulpho, de Odontologia no Rio de Janeiro; e Brasil, de Medicina em São Paulo.

Lena Castello Branco, citando o historiador Edgard Carone, menciona uma “Geografia das oligarquias”, presente em todos os Estados brasileiros, dominando o cenário político: “Sua força repousava na consanguinidade, na posse de terras e na hegemonia econômica e cultural dos elementos que a compunham”. E completa: “Com acesso à propriedade rural e a níveis elevados de instrução, os oligarcas perpetuavam-se no poder, até que o grupo rival ascendente passasse a questioná-la e os sucedesse — pouco se alterando, contudo, o contexto socioeconômico e político no qual se inseriram”. Assim, se sucedem as oligarquias Bulhões, sua dissidência xavierista e a sucedânea Caiado-Jardim, durante toda a Primeira República. Por último, a diferença entre o oligarca e o coronel incide apenas na escala, porquanto o primeiro domina o Estado e o segundo chefia o município.

Não apenas a formação universitária desempenhou inquestionável contribuição para o fortalecimento da projeção social e política do clã, como também o casamento. Segundo Lena Castello Branco, os rebentos do casal Torquato e Claudina “aumentaram seu prestígio social e força política através de casamentos com integrantes de famílias de prol na sociedade goiana, dentre outras: os Amorim, os Rodrigues Jardim, os Alves de Castro, os Abrantes, os Perilo, os Albernaz”.

Cumpre assinalar que a atuação política de Torquato, menos subserviente aos Bulhões que a do seu genitor, rendeu-lhe dissabores e impactou inclusive em sua carreira no serviço público federal. Lotado na Delegacia Fiscal em Goiás, Torquato foi removido para o Ceará, Amazonas e depois São Paulo, local onde, aliás, aposentou-se. Esse tipo de perseguição seria décadas mais tarde igualmente usada pelo senador Totó Caiado, filho primogênito de Torquato, com o adversário Augusto Jungmann, consultor jurídico do Tesouro Nacional.

Aposentado, Torquato regressou a Goiás. Ao retomar o convívio com os familiares e amigos, elegeu-se senador estadual em 1903. Faleceu em 31 de dezembro de 1906.

A trilha ascendente do jovem caminhante

Os seis capítulos das partes 2 e 3 (do volume 1) têm como figura central Antônio (Totó) Ramos Caiado, nascido em 15 de maio de 1874, na Cidade de Goiás, filho primogênito de Torquato e Claudina. De acordo com a historiadora Lena Castello Branco, do avô e padrinho herdara o nome e a vocação política. Ato contínuo, complementou: “No temperamento eram, contudo, muito diferentes pois, enquanto Antônio José destacava-se pela mansuetude, o jovem Caiado — Totó, para os familiares — em sua trajetória deixou marcas de arrebatamento e paixão”.

Após concluir o curso clássico no Liceu de Goiás, Totó mudou-se para São Paulo a fim de estudar Direito na Faculdade do Largo do São Francisco. Na capital paulista, dividiu uma república com outros conterrâneos, dentre os quais estava José Xavier de Almeida, que no futuro tornar-se-ia governador.

Ante a sublevação da Marinha no Rio de Janeiro, em 1893, Totó alistou-se nas fileiras do Batalhão Acadêmico para defender o regime republicano, supostamente ameaçado por uma restauração monárquica. Nas trincheiras, deu expansão ao seu espírito aguerrido, cultivando uma característica familiar que Lena Castello Branco classificou como “ética do desassombro e da coragem pessoal.” Do conflito, legou uma cicatriz na fronte, bem como a patente de tenente honorário do Exército.

No entanto, o título que parecia mais lhe envaidecer era o de alferes — posto inferior ao de tenente, na hierarquia militar —, tanto que, ao ser chamado de “coronel”, denominação comum aos chefes políticos da época, redarguia: “Sou e nunca seria mais do que alferes”. A experiência militar na denominada Revolta da Armada de 1893, ser-lhe-ia de grande valia futuramente, já que, frequentemente, o líder político precisava convolar-se em chefe militar, consoante sucedido nas Revoluções de 1909 e 1930, e nas duas passagens da Coluna Prestes por Goiás, nos anos 1920.

Abafado o levante da força de mar, Totó regressou a São Paulo. Posteriormente, no intuito de acelerar a sua formatura, transferiu momentaneamente o seu curso para Ouro Preto, no início de 1895. Apesar de a autora não mencionar, a ainda capital de Minas Gerais estava em vias de perder o trono de sede governamental para Belo Horizonte, cidade em construção. Assim, o jovem Caiado vivenciou a fundo os acontecimentos mudancistas que, quarenta anos depois. serviriam de modelo para Goiás. Na terra dos inconfidentes, Totó notaria que a transferência ocorria com respeito às tradições ouro-pretanas, sobretudo com a preservação de seus principais estabelecimentos de ensino, padrão destoante do perpetrado no território goiano.

Leopoldo de Bulhões liderou uma oligarquia por mais de 30 anos, substituída pela oligarquia Caiado| Foto: Reprodução

Retornando novamente à cidade paulista, Totó colou grau em 8 de dezembro de 1895. Recém-formado, voltou para Goiás. Na oportunidade, no Estado, pairava uma séria tensão política entre os Caiado e os Bulhões, relacionada ao veto de Leopoldo de Bulhões à pretensão de Antônio José Caiado ocupar a vaga no Congresso Nacional, aberta com o falecimento do senador Antônio Amaro da Silva Canedo. Após marchas e contramarchas, prevaleceu a vontade caiadista, malgrado abalar a longeva parceria firmada entre os clãs.

Empossado como senador da República, no dia 15 de maio de 1896 — curiosamente a mesma data em que Totó completava 22 anos —, Antônio José Caiado escreve um mês depois ao neto, informando-lhe da possibilidade de ele tornar-se deputado federal no lugar de João Alves de Castro. Na sequência, a hipótese aventada não se confirmaria, e Totó terá de esperar mais 13 anos para galgar a cobiçada vaga parlamentar.

Diante do contexto político conflagrado em 1896, a imprensa bulhonista transforma o antigo “inteligente estudante” e “herói republicano” em “Totó Brabeza”, insinuando ainda ter ele conseguido o diploma de bacharel apenas por presentear os professores com exóticos “couros de onça” oriundos de Goiás. Nesse contexto, logo Antônio Ramos Caiado perceberia a dificuldade para o exercício da advocacia. Ademais, destaca a historiadora, baseada em relatos orais da família, ele “sentia-se ultrajado por ser obrigado a comprovar documentalmente o que afirmava nos autos, quando sua palavra deveria bastar”.

Desse modo, pragmaticamente, Totó opta pela profissão de tropeiro, transportando cargas pelas mais diversas rotas brasileiras e até mesmo para a Bolívia. Desse modo, ficou conhecido como “doutor da mula preta”. Entretanto, não se descurou do mundo político, a ponto de eleger-se deputado estadual, em 1897.

Em uma de suas viagens ao Rio de Janeiro, conheceu Iracema Pimentel de Carvalho, da alta sociedade carioca, com quem viria a se casar. A moça refinada morara por sete anos na Itália, quando seu genitor fora designado comissário-geral da imigração no país. Embora Iracema e Totó Caiado tivessem seis filhos, ela nunca se adaptou a Goiás, ambiente mais modesto do que estava acostumada. Adoentada, Iracema faleceu no Rio de Janeiro, em 1907.

José Xavier de Almeida em 1900, pouco antes de se tornar presidente (1901-1905) de Goiás | Foto: Acervo de Maria Dulce Loyola Teixeira

Eleito governador pela agremiação bulhonista (Centro Republicano), em disputa sem concorrente, José Xavier de Almeida assumiu o cargo em 1901, sob a bandeira da implementação de uma política conciliadora. Nesse sentido, nomeou quadros da oposição, a exemplo de Totó Caiado para a Secretaria de Justiça.

No entanto, em 1904, Xavier de Almeida e Leopoldo de Bulhões, este então ministro da Fazenda do presidente Rodrigues Alves, romperam. No jogo de recomposição de forças do tabuleiro político, a legenda oposicionista passa a respaldar definitivamente o governo xavierista. Totó Caiado é mantido no comando da pasta até 1908, quando a conjuntura mudaria novamente.

A Revolução de 1909

De acordo com Lena Castello Branco, as eleições de 1909, para o Congresso Nacional, cujo resultado foi apontado como “fraudulento” pela oposição, desencadeou o movimento armado daquele ano. As versões desconexas são sublinhadas pela historiadora: “em apuração feita pelo partido [democrata], José Leopoldo de Bulhões estaria eleito para o Senado Federal, com 4.538 votos, o que contrapunha ao resultado oficial, que proclamava vitorioso José Xavier de Almeida, com 2.767 votos.” Para a Câmara Federal, a situação não é diferente: “mais uma vez, são discrepantes os números do governo e os da oposição”.

Entrada da Legião Democrata na capital de Goiás em 1° de maio de 1909, durante a Revolução

Abre-se um parêntese na leitura de “Poder e Paixão” para uma rápida exposição — pelos autores deste texto — sobre os pressupostos da denominada Revolução de 1909, no dizer do professor Itami Campos “a única tomada de poder pela força, por um grupo estadual, em todo o período republicano”.

Urge, em primeiro lugar, frisar que em um período de pouco mais de seis meses ocorreram três eleições: i) em setembro de 1908, para o bicameral Congresso Legislativo Estadual; ii) em janeiro de 1909, para a representação goiana no Congresso Nacional; iii) em março de 1909, para governador. As eleições eram um fator de imprevisibilidade e de grande agitação política.

Ainda, nesse parêntese, é preciso dizer que, mesmo com todas as dificuldades inerentes ao pleito, a vitória nas urnas não garantia automaticamente a posse do eleito, pois, durante a Primeira República, vigia, no âmbito do Poder Legislativo, um mecanismo chamado de “verificação dos poderes”, baseado no princípio constitucional da independência dos poderes. Grosso modo, era um filtro pelo qual deveriam passar todos os vencedores nos sufrágios, o que, na prática, dificultava o ingresso das oposições nos parlamentos (nas três esferas — municipais, estaduais e federal). A melhor síntese para explicar o sistema foi a criada pelo governador pernambucano José Bezerra: “Ser eleito é uma coisa, ser reconhecido é outra”. A dualidade de etapas fica patente. Por fim, acrescente-se que o preterido recebia a irônica alcunha de “degolado”.

E, finalizando a intervenção destes autores, em meados de 1908, o desembargador Luiz Gonzaga Jaime decide romper com José Xavier de Almeida por conta de sua preterição para concorrer ao Senado Federal pela legenda governista. Ao deixar o governo, o magistrado meia-pontense publicou no jornal “Goyaz”, de 20 de junho de 1908, o “Manifesto aos meus conterrâneos”, conhecido como “manifesto Gonzaga Jayme”, não referido nesse livro, mas mencionado pelos historiadores Maria Augusta Sant’Anna Moraes (“História de uma Oligarquia: os Bulhões, 1974 e 2018” — 2ª ed.); Maria Luiza Araújo Rosa (“Dos Bulhões aos Caiado”, 1984); Jales Guedes Coelho Mendonça (“A Invenção de Goiânia: O Outro Lado da Mudança”, 2013 e 2018 — 2ª ed.) e Victor Aguiar Jardim de Amorim (“Pelo Sangue: A Genealogia do Poder em Goiás”, 2015), como um dos fatores a dar impulso à combalida oposição, unindo de um mesmo lado os grupos Bulhões, Abrantes, Jardim, Jayme, Fleury Curado e Caiado, todos participantes da Revolução de 1909.

Ante a dissidência, Totó Caiado exonera-se da pasta que ocupava, em solidariedade a Gonzaga Jaime. Na sequência, os dissidentes iniciam a rearticulação da oposição, reaproximando-se do grupo bulhonista. A tempestade perfeita estava formada, ou seja, três eleições consecutivas em curto espaço de tempo, associada ao fortalecimento dos oposicionistas.

Os resultados eleitorais dos pleitos são por demais desencontrados. Cada agremiação proclama um número e apresenta uma versão. Esses dados, porém, parecem pouco importar, considerando que a decisão, em última instância, caberia ao Congresso Legislativo Estadual, que se reuniria apenas em maio de 1909.

Antonio Ramos Caiado, o Totó: um dos principais líderes da política de Goiás nas primeiras décadas do século 20 | Foto: Reprodução

O que se segue é um trecho do pronunciamento de Totó Caiado na Câmara dos Deputados, transcrito no livro: “… só restava um alvitre, um recurso, depois de haver apelado para o governo do estado, depois de haver apelado para o governo federal: lançar mão das armas, fazer valer seus direitos, fazer valer a soberania popular”.

Assim, justamente no primeiro dia de maio de 1909 uma numerosa milícia armada, liderada por Eugênio Jardim, cunhado de Totó Caiado, entra na capital goiana com o objetivo de reconhecer os parlamentares alinhados com o movimento e empossar o terceiro vice-governador. Eis a Revolução de 1909.

No Rio de Janeiro, ao mesmo tempo, escreve Lena Castello Branco, a briga nos bastidores do Congresso Nacional é para saber quais serão os reconhecidos e os degolados. A disputa antagoniza o presidente da Câmara dos Deputados — que igualmente presidia a Comissão de Verificação de Poderes —, deputado Carlos Peixoto, simpático à causa de Xavier de Almeida, e o senador Pinheiro Machado, ligado a Leopoldo de Bulhões. Ao final, vence a tese do reconhecimento de dois deputados federais de cada facção anhanguerina, o que significa uma vitória bulhonista. Entre os reconhecidos, encontra-se o “bulhonista” Antônio (Totó) Ramos Caiado, “cuja estrela política entrava em ascensão,” assevera a autora.

Derrotada pelas armas, a grei xavierista pede intervenção federal no Estado ao adoentado presidente Affonso Penna — inimigo de Leopoldo de Bulhões, segundo Carone —, que incontinenti determina o envio de tropas do Exército a Goiás. Entretanto, poucos dias depois, o citado presidente falece, assumindo o vice Nilo Peçanha, que convida Leopoldo de Bulhões a reassumir o Ministério da Fazenda. As forças federais, enfim, chegam à capital goiana, mas a revolução já era fato consumado.

Lena Castello Branco aproveita para, ao final desse capítulo, narrar o casamento, em 17 de agosto de 1909, de Totó Caiado, 35 anos, com Maria Adalgisa de Amorim (Mariquita), de 22 anos, vergôntea de tradicional família goiana, com ancestralidade na linhagem Sócrates e Fleury. Desse enlace, que durou mais de meio século, nasceram onze filhos, alguns com a mesma verve política do pai.

A hegemonia do Partido Democrata até 1930

No dia 10 de janeiro de 1909, na residência de Arnulpho Caiado, localizada na Praça da Matriz, na capital de Goiás, realiza-se o conclave fundacional do Partido Democrata. Entre os presentes, o líder político de maior expressão é, sem dúvida, Leopoldo de Bulhões, ex-ministro da Fazenda, que visita sua terra natal após sete anos de ausência. Além dele e de Totó Caiado, chama a atenção a presença do jovem Pedro Ludovico. O evento representa a única reunião partidária em que os três oligarcas sucessivos (Leopoldo de Bulhões, Totó Caiado e Pedro Ludovico) encontram-se congregados. A melhor periodização da política de Goiás reforça a dimensão do singular acontecimento: i) ciclo bulhonista (1878– 1912); ii) ciclo caiadista (1912–1930); e iii) ciclo ludoviquista (1930 – novembro 1964). A coincidência entre os ciclos bulhonista e ludoviquista não se resume ao tempo de 34 anos, mas também, respectivamente, à ocorrência de um hiato, em ambas as fases: período de Xavier de Almeida (1901-1909) e consulado de Coimbra Bueno (1947-1950).

Içado ao poder pelas armas em maio de 1909, o Partido Democrata permanecerá ininterruptamente no governo até ser abatido por outra insurreição, a de 1930, essa de caráter nacional. Em 1912, irrompe uma crise na legenda que afasta os bulhonistas e os jaimistas e enfeixa o comando nas mãos dos cunhados Eugênio Jardim e Totó Caiado e, ainda, de Sebastião Fleury Curado. Este, porém, dois anos depois (1914), rompe com a dupla de parentes e abandona a agremiação. Em meados de 1926, ante a morte de Eugênio, o controle passa a ser exclusivamente de Totó. A partir daí, consolida-se definitivamente a expressão “caiadismo”.

Nos 21 anos da hegemonia democrata, ocorreram cinco eleições para governador (1913, 1917, 1921, 1925 e 1929) e em nem uma delas a oposição apresentou candidato, o que avulta a pujança da sigla situacionista. Dos governadores do período, apenas dois cumpriram integralmente os seus mandatos: João Alves de Castro (1917-1921) e Brasil Caiado (1925-1929). Lena Castello Branco menciona, ainda, Miguel da Rocha Lima. Todavia, ele na verdade elegeu-se vice-governador e, em 1922, assumiu, com a renúncia de Eugênio Jardim.

Parte da representação goiana no Senado e Câmara Federal em 1918: de pé, da esquerda para a direita, os deputados Francisco Ayres, Totó Caiado, e Tullo Hostílio Jayme. Sentados, os senadores Gonzaga Jayme, Eugênio Jardim e Hermenegildo Lopes de Moraes, seguido do deputado Olegário Pinto | Foto: Reprodução

Abre-se novamente um parêntese na leitura de “Poder e Paixão” para uma rápida exposição — pelos autores deste texto — sobre a oposição e as eleições parlamentares. No plano legislativo, particularmente na representação goiana no Congresso Nacional, aconteceram na fase democrata sete sufrágios (1912, 1915, 1918, 1921, 1924, 1927 e 1930). Nos quatro primeiros, a sigla manteve o costume anterior de reservar uma vaga para a minoria na Câmara dos Deputados, comprovada pela presença parlamentar de Marcelo Silva (1912 e 1915), Tullo Hostílio Gonzaga Jayme (1918) e Artur Napoleão (1921).

Entretanto, em 1924, tal tradição é quebrada, sob a alegação de não existir “oposição alguma” no Estado. Mas, mesmo quando ela passa a formalmente existir, em 1927, diante da fundação do Partido Republicano de Goiás, o costume não repristina. Apenas a justificativa sofre uma leve alteração: agora a sigla antigovernista não teria “quociente eleitoral de representação da minoria”, ou seja, votação proporcional suficiente. (cf. “O Democrata”, Goyaz, 1º de setembro de 1928).

Ainda, nesse parêntese, ressalte-se: é nessa perspectiva que se deve interpretar a missiva escrita por Colemar Natal e Silva e endereçada a Totó Caiado em 1929, extratada no livro: “A Pretensão e o ‘Placet’ de que tratam a carta do nosso comum amigo, Dr. Vianna, se referem ao meu desejo e à possibilidade de urna livre para a disputa do 4º lugar da chapa, no próximo pleito”. Em outras palavras: Colemar não queria integrar, na eleição de março de 1930, a chapa do Partido Democrata, mas sim disputar a vaga hipoteticamente reservada à minoria (“quarto lugar da chapa”). Em caso similar, envolvendo Joviano de Moraes em 1924, a imprensa governista ironizou o pleito: “O ex-candidato queria um lugar vago, ou queria a simpatia do partido, ou queria um lugar na chapa — que é tudo a mesma coisa” (cf. “O Democrata”, Goyaz, 14 de março de 1924).

Finalizando a intervenção destes autores, acrescente-se que, no bicameral Congresso Legislativo Estadual, o roteiro seguiu mais ou menos a mesma lógica do da esfera federal, com uma variação: a participação oposicionista não foi renovada a partir das eleições de 1920, e não 1924. No entanto, é imperioso assinalar que, no sufrágio de setembro de 1920, a legenda democrata apresentou inicialmente chapa incompleta (18 candidatos, dos 24 possíveis para a Câmara, e 5 das 6 cadeiras em disputa para o Senado). Como a minoria absteve-se de registrar seus postulantes, sobretudo por seu estado caquético após a morte do ex-governador Francisco Leopoldo Jardim e o posterior fechamento do jornal “Goyaz” — de circulação ininterrupta desde 1885 —, os governistas complementaram então sua lista, preenchendo integralmente todas as vagas em disputa.

Apesar de Totó Caiado ter exercido quatro mandatos de deputado federal (de 1909 a 1921) e dois de senador da República (1921 a 1939, suspenso pela Revolução de 1930), isso não significa a superioridade dos cargos federais sobre o de governador. Tal leitura parece inverossímil. Em abono ao afirmado, vale recordar que Urbano Coelho de Gouvêa (por duas vezes), Eugênio Jardim, Xavier de Almeida, Olegário Pinto e Alfredo de Moraes renunciaram às suas respectivas cadeiras no Congresso Nacional para assumirem a chefia do Executivo de Goiás.

Nuvens no horizonte e a borrasca anunciada

Brasil Ramos Caiado, médico e presidente (governador) do Estado de Goiás de 1925 a 1929 | Foto: Reprodução

O primeiro capítulo da parte 4 (“Nuvens no horizonte”) de “Poder e Paixão”, aborda a figura de Brasil Ramos Caiado, filho do casal Torquato e Claudina, e irmão de Totó, embora quase vinte anos mais moço. Médico formado em São Paulo em 1920, Brasil casou-se com a jovem paulista (de Campinas) Noêmia Rodrigues, com quem teve onze filhos. Foi eleito governador de Goiás em 1925 e senador da República em 1930.

A posse de Brasil Caiado, em 14 de julho de 1925, apesar de muito concorrida e até inusitadamente filmada por Aristides Junqueira — avô e homônimo do futuro procurador-geral da República (1989-1995) —, ocorreu em circunstâncias dramáticas, em razão da ameaça de invasão da capital goiana pelos integrantes da Coluna Prestes.

Senador Antônio Ramos Caiado (Totó) e o tenente Aguinaldo Caiado de Castro (futuro marechal e senador) no comando da Coluna Caiado, em 1925 | Foto: Reprodução

A esse respeito, no envolvente capítulo intitulado “Caminhos sem fim”, Lena Castello Branco descreve pormenorizadamente as duas passagens dos comandados de Luiz Carlos Prestes por Goiás, sem prejuízo da reação gestada pelo tenente honorário do Exército Totó Caiado e seu sobrinho Aguinaldo Caiado de Castro — no futuro, general (lutou na Segunda Guerra Mundial, em 1944, na Itália) e senador da República. Nessa mesma parte, já que cronologicamente inserido também no primeiro ano do governo Brasil Caiado, a historiadora analisa os trágicos acontecimentos perpetrados no povoado de Lagolândia, em Pirenópolis, envolvendo Benedita Cypriano Gomes, conhecida como Santa Dica, em que seis de seus seguidores foram mortos em tiroteio com as forças militar estadual, outros seis feridos e 83 presos, além de número indeterminado de policiais com ferimentos diversos.

Outra crise eclodida no governo Brasil — e iniciada publicamente na edição de 7 de maio de 1926 do jornal “O Democrata”, de propriedade de Totó Caiado —, foi o conflito com o Poder Judiciário, esquadrinhado por Lena Castello Branco no capítulo “Tramas e urdiduras”. A desinteligência desencadeou a solicitação de intervenção federal ao presidente da República, assinada por quatro dos cinco desembargadores. O pleito não vingou, mas contribuiu decisivamente para que o governador seguinte não fosse da família Caiado — tal qual foram os eleitos anteriormente (Olegário Pinto, João Alves de Castro, Eugênio Jardim e o próprio Brasil) —, além de reorganizar a oposição, que encontrava-se desarticulada desde 1920, “em escala estadual”.

É necessário ressalvar, entretanto, que o Partido Republicano de Goiás (PRG), criado em novembro de 1927, na capital goiana, era uma legenda de dimensão estadual, e não simplesmente municipal, a congregar três tendências: bulhonismo, magistratura e dissidências do Partido Democrata de várias localidades, a exemplo de Itaberaí, Itumbiara, Luziânia, Pirenópolis, Rio Verde e da própria Cidade de Goiás, dentre outras.

Atente-se que esse PRG não pode ser confundido, como aparentemente defendido no livro, com o Partido Republicano Independente, organizado em Rio Verde em 1924 pelo senador estadual (dissidente) Antônio (Totonho) Martins Borges, sogro de Pedro Ludovico. Tal partido, de caráter meramente local ou, quando muito, da região Sudoeste de Goiás, teve vida fugaz, atestada pela efemeridade de seu órgão de propaganda, o jornal “O Sudoeste”. O real alcance da citada sigla sudoestina, e mesmo dos acontecimentos sucedidos da respectiva zona nos anos 1920, precisam ser mais bem compreendidos, sobretudo por suas implicações futuras, inclusive relativas à transferência da capital goiana. Não por outro motivo, que a legenda rio-verdense é esquadrinhada no livro “A Invenção de Goiânia: O Outro Lado da Mudança” (UFG, 2013 e 2018 — 2ª ed.), do segundo autor (Jales Guedes) da presente resenha.

A despeito de todo esse ambiente conturbado, a historiadora não esquece de descrever uma série de realizações empreendidas no governo Brasil Ramos Caiado, a começar pela criação do serviço sanitário e do fortalecimento das Faculdades de Farmácia e Odontologia, fundadas sob a sua liderança, registre-se. A gestão do primeiro médico a assumir a chefia do Executivo de Goiás foi concebida sob binômio “Instrução e Viação”. Isso explica a construção do belo prédio do Palácio da Instrução na antiga capital, recentemente “redescoberto” pela população, após a demolição de uma quadra que o ocultava, bem como a abertura de várias estradas.

Consuelo Caiado com o pai, Totó Caiado, em São Paulo, em 1928 | Foto: Reprodução

Letras e flores e carta a Consuelo

Finalizado o capítulo “A borrasca anunciada”, Lena Castello Branco fecha o primeiro volume com dois capítulos intitulados “Letras e Flores” e “Cartas a Consuelo”, que retratam a vida social da família Caiado: as festas, os saraus, os banquetes, o gosto pela literatura de Consuelo Caiado e o carinho da filha mais velha de Totó Caiado pelo Gabinete Literário Goiano. Tais enfoques, que serão mais bem detalhados no próximo ensaio, atinente ao segundo volume, no fundo, ressaltavam a supremacia cultural vilaboense em comparação aos demais municípios anhanguerinos. Por isso, o imortal escritor Bernardo Élis (1915-1997) gostava de lembrar que o vilaboense se sentia “um heleno entre bárbaros”.

Pela exaustividade e acurácia das pesquisas, rigidez metodológica e o notório saber histórico e cultural demonstrado, uma vez mais, por Lena Castello Branco, “Poder e Paixão: a saga dos Caiado” é uma obra maiúscula, talvez a maior do gênero já produzida em Goiás. Sua importância extrapola as fronteiras goianas. É um clássico da historiografia brasileira, escrito de forma literária não-ficcional por uma grande escritora.

Nilson Jaime, mestre e doutor em Agronomia, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG), vice-presidente do Instituto Bernardo Élis (Icebe), presidente da Academia Palmeirense de Letras, Artes, Música e Ciências (Aplamc), prepara o livro “Família Caiado — Genealogia e História”. É colaborador do Jornal Opção.

Jales Guedes Coelho Mendonça, promotor de Justiça, doutor em História (UFG), autor do livro “A Invenção de Goiânia: O Outro Lado da Mudança” (UFG, 2012 e 2018 – 2ª edição), membro do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG), do Instituto Cultural Bernardo Élis (Icebe), é colaborador do Jornal Opção.