Baudelérias: traduções dos poemas de Charles Baudelaire em nova chave
21 março 2017 às 16h39
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Novas traduções de L’Albatros e Un voyage à Cythère, de Baudelaire, lavradas por Wladimir Saldanha
Wladimir Saldanha, poeta e tradutor baiano, verteu uma série de poemas de Charles Baudelaire para o português, sob uma ótica diferente, ou em uma «nova chave», por assim dizer, para a qual ele deu o nome de «Baudelérias». Já que Baudelaire é um dos poetas mais traduzidos no Brasil, a ideia, em linhas gerais, é a de não se aferrar tanto à ênfase na poética do autor, eliminando algumas nuances do original, o que, em dada medida, torna-o um poeta completamente sem humor e despido de prosaísmo. Assim sendo, recursos tradutórios como o uso do pronome você, rimas toantes, e maior atenção ao humor do autor de «As flores do mal» foram as diretrizes que Saldanha adotou para um projeto de traduzir Baudelaire – por isso, «Baudelérias», um exercício de fidelidade às avessas, modesta brincadeira a sério com o mestre da brincadeira a sério.
O leitor pode conferir, abaixo, duas traduções da série de Baudelérias, acompanhadas dos respectivos poemas originais. E já adianto que o Jornal Opção publicará, no domingo, 26, mais alguns exemplos.
Apreciem!
L’Albatros
Souvent, pour s’amuser, les hommes d’équipage
Prennent des albatros, vastes oiseaux des mers,
Qui suivent, indolents compagnons de voyage,
Le navire glissant sur les gouffres amers.
A peine les ont-ils déposés sur les planches,
Que ces rois de l’azur, maladroits et honteux,
Laissent piteusement leurs grandes ailes blanches
Comme des avirons traîner à côté d’eux.
Ce voyageur ailé, comme il est gauche et veule!
Lui, naguère si beau, qu’il est comique et laid!
L’un agace son bec avec un brûle-gueule,
L’autre mime, en boitant, l’infirme qui volait
Le Poète est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l’archer;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l’empêchent de marcher.
O ALBATROZ
Vai que, por distração, a boa marujada
Faz presa do albatroz, esse avejão dos mares,
Que vai, à toa e companheiro de jornada,
Atrás da nau vogante nos cruéis algares.
Baixados ao convés, que logo se atravanca,
Os reis do azul, malamanhados e cabreiros,
Dão dó de rir com a grande envergadura branca
Das asas como remos a arrastar remeiros.
O alado capitão, como é gauche e decrépito!
De belo, é uma comédia, com a aparência cava!
É um que o bico lhe arrelia com seu pito,
É outro a imitar, mancando, quem voava!
O Poeta assim faz crer um rei que tem de aias
As nuvens, e o trovão assombra, e ri da flecha;
No exílio sob o sol e em meio só de vaias,
Gigante, quer andar – e alado, não se deixa.
Un voyage à Cythère
Mon coeur, comme un oiseau, voltigeait tout joyeux
Et planait librement à l’entour des cordages ;
Le navire roulait sous un ciel sans nuages,
Comme un ange enivré d’un soleil radieux.
Quelle est cette île triste et noire ? – C’est Cythère,
Nous dit-on, un pays fameux dans les chansons,
Eldorado banal de tous les vieux garçons.
Regardez, après tout, c’est une pauvre terre.
– Ile des doux secrets et des fêtes du coeur!
De l’antique Vénus le superbe fantôme
Au-dessus de tes mers plane comme un arôme,
Et charge les esprits d’amour et de langueur.
Belle île aux myrtes verts, pleine de fleurs écloses,
Vénérée à jamais par toute nation,
Où les soupirs des coeurs en adoration
Roulent comme l’encens sur un jardin de roses
Ou le roucoulement éternel d’un ramier!
– Cythère n’était plus qu’un terrain des plus maigres,
Un désert rocailleux troublé par des cris aigres.
J’entrevoyais pourtant un objet singulier!
Ce n’était pas un temple aux ombres bocagères,
Où la jeune prêtresse, amoureuse des fleurs,
Allait, le corps brûlé de secrètes chaleurs,
Entre-bâillant sa robe aux brises passagères;
Mais voilà qu’en rasant la côte d’assez près
Pour troubler les oiseaux avec nos voiles blanches,
Nous vîmes que c’était un gibet à trois branches,
Du ciel se détachant en noir, comme un cyprès.
De féroces oiseaux perchés sur leur pâture
Détruisaient avec rage un pendu déjà mûr,
Chacun plantant, comme un outil, son bec impur
Dans tous les coins saignants de cette pourriture;
Les yeux étaient deux trous, et du ventre effondré
Les intestins pesants lui coulaient sur les cuisses,
Et ses bourreaux, gorgés de hideuses délices,
L’avaient à coups de bec absolument châtré.
Sous les pieds, un troupeau de jaloux quadrupèdes,
Le museau relevé, tournoyait et rôdait;
Une plus grande bête au milieu s’agitait
Comme un exécuteur entouré de ses aides.
Habitant de Cythère, enfant d’un ciel si beau,
Silencieusement tu souffrais ces insultes
En expiation de tes infâmes cultes
Et des péchés qui t’ont interdit le tombeau.
Ridicule pendu, tes douleurs sont les miennes!
Je sentis, à l’aspect de tes membres flottants,
Comme un vomissement, remonter vers mes dents
Le long fleuve de fiel des douleurs anciennes;
Devant toi, pauvre diable au souvenir si cher,
J’ai senti tous les becs et toutes les mâchoires
Des corbeaux lancinants et des panthères noires
Qui jadis aimaient tant à triturer ma chair.
– Le ciel était charmant, la mer était unie;
Pour moi tout était noir et sanglant désormais,
Hélas ! et j’avais, comme en un suaire épais,
Le coeur enseveli dans cette allégorie.
Dans ton île, ô Vénus ! je n’ai trouvé debout
Qu’un gibet symbolique où pendait mon image…
– Ah ! Seigneur ! donnez-moi la force et le courage
De contempler mon coeur et mon corps sans dégoût !
UMA VIAGEM A CITERA
No céu, como rodou, você que todo prosa
E solto – coração! – planava sobre amarras;
Como anjo embriagado pelo sol nas farras,
A nau quase rolava sob o céu de louça.
Que ilha é aquela, escura e triste? – “É Citera”,
Nos disse um tio, “era assunto em toda roda,
Dos jovens do meu tempo foi lugar da moda.
Repare, olhe a que ponto, ninguém diz que era.
– A ilha dos festins e ternas confidências!
Da antiga Vênus o fantasma ali assoma
E vai planar no mar como se fosse aroma
E encher o ser de amor e de malemolências.
Ilha aberta em flor, mirtais para sustança,
Louvada a mais não ser por tudo o que é nação,
Os ais dos corações em plena adoração
Rolando nos rosais como um incenso avança
Ou como rola eterno o arrulho da rolinha!”
– Citera não era mais que a terra devastada,
Um areal pedrento e azedo de zoada.
Mas uma coisa eu vi, que não se adivinha!
Não era mais o templo bom do interior,
Onde a moça vestal, a que amava as flores,
Lá ia, o corpo em brasa de íntimos calores,
Dando seus lances quando o vento faz favor;
Mas eis que, bordejando, a nau investe
Nosso velame branco de encontro às aves;
Vimos então aquela forca de três traves,
Retinta contra o céu, com agouros de cipreste.
As aves de rapina, sobre o mesmo cocho,
Destroem com furor um réu que já supura,
Calcando, cada qual, a sua broca impura
Ainda onde sangrava nesse corpo roxo;
Os olhos, duas fendas; a barriga em mossa
Com tripas recheadas a vazar nas partes
Que seus algozes, cheios de hediondas artes,
Já tinham a bicadas feito ser de moça.
Sob os dois pés, todo um tropel de quatro patas,
A farejar o ar, rodopiava em ronda;
No meio se agitava a besta mais redonda –
Carrasco e seus capangas invejando as catas.
Morador de Citera, ó filho do bom signo,
Você no seu silêncio padecia insultos
Como em expiação de seus infames cultos
E faltas que lhe negam um enterro digno.
Otário do cambão, as dores são amigas!
Eu sinto, vendo os membros a boiar pendentes,
Que já vou vomitar o que me sobe aos dentes:
O longo rio de fel das dores mais antigas;
Ante você, cabrão cuja memória é cara,
Senti os bicos todos e os maxilares
Dos corvos lancinates e seu negros pares –
panteras já freguesas de trinchar-me a cara.
– O céu encantador, o mar na maresia;
Pra mim de sangue e escuro ficou sendo o troço,
Pena! Eu tinha, como num sudário grosso,
O peito amortalhado nessa alegoria.
Na sua ilha, ó Vênus!, só achei a forca
Simbólica de pé, com minha pensa imagem…
– Ai, Deus! Pra contemplar meu corpo, dai coragem,
E o meu coração, sem nojo – dai-me força!
***
Wladimir Saldanha é poeta e tradutor. Doutor em Letras pela Universidade Federal da Bahia – UFBA, com tese sobre a poesia de Lêdo Ivo.
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