A terceira vértebra do escritor Wesley Peres

06 outubro 2022 às 12h25

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Ademir Luiz
Especial para o Jornal Opção
A prosa do escritor e psicanalista Wesley Peres é divisiva. Não que sua recepção crítica e popular possa ser resumida por um banal “ame ou odeie” ou um simplista “entenda ou não entenda”. Está mais para um “compre a ideia ou não compre a ideia”. Em grande parte, essa é a característica principal da literatura brasileira contemporânea. Desde a auto ficção que problematiza a auto ficção de Julián Fuks e Jacques Fux, o romance em forma de processo judicial de Ricardo Lisias e mesmo a dicção particular de Aline Bei. Se o leitor não embarcar na proposta, nem adianta abrir o livro. Esse tipo de proposta estética é muito diferente de obras calcadas na estrutura do melodrama tradicional, como “Torto Arado”, de Itamar Vieira Júnior, feitas literalmente para agradar gregos, troianos, ingleses, críticos condescendentes e comissões julgadoras.
No caso de Wesley Peres, então um poeta que muitos aproximavam de Manoel de Barros, sua prosa começou consagrada. Seu romance de estreia, “Casa Entre Vértebras”, de 2007, venceu o Prêmio Sesc de Literatura e foi finalista do Prêmio São Paulo. A estrutura do livro é baseada em uma série de tentativas de escrita de uma carta de amor, onde um narrador anônimo procura revelar-se para mulher amada, chamada Ana. Sempre sem sucesso. A carta jamais é enviada, a escrita jamais é interrompida, alimentando um círculo vicioso de estetização romântica.
Os personagens, sempre procurando ordem, só podem encontrar o caos, estado natural de toda história de amor não contaminada pelas regras ordenadoras do amor burguês. O enredo, se há, é levemente sugerido entre reflexões acerca dos sentimentos humanos e suas consequências. Tampouco se pode sugerir que “Casa Entre Vértebras” seja um estudo de personagem, uma vez que o narrador nunca é revelado, nem para o leitor e muito menos para a destinatária de sua nunca terminada carta de amor. Não por acaso, como citei, esse narrador não possui nome. Atribuir nomes, como veremos adiante, é fundamental na obra de Wesley Peres.
Dizem que todas as cartas de amor são ridículas, se não fossem ridículas não seriam cartas de amor. No livro de Wesley Peres é diferente. Suas cartas de amor não são ridículas, não podem ser ridículas. Talvez por isso não é possível terminá-las. São estudos de linguagem, onde fica sugerido que o narrador ama mais falar de amor do que ama a pessoa amada em si. Trata-se de um romance ensaio na acepção da palavra.
“As Pequenas Mortes”, seu segundo romance, publicado em 2013, possui um registro diferente. Agora sim, temos um estudo de personagem. O protagonista, o professor universitário e músico experimental Felipe Werle, é um homem quebrado que não tenta se reconstruir, pelo contrário, usa a linguagem para tentar codificar o universo em estado de podridão que o cerca. No meio da narrativa, sem deixar de ser músico, uma arte matemática por definição, torna-se escritor, artífice de uma arte onde não há regras, como o próprio Wesley Peres atesta em sua produção.
O enredo de “As Pequenas Mortes”, e há, coloca-se à sombra do acidente radiológico ocorrido em Goiânia em 1987. A memória da catástrofe impregnou cada célula do corpo do protagonista, uma criança de 12 anos na época dos eventos, tornando-o obcecado pela morte por câncer. As pequenas mortes do título, espécie de metáfora para o orgasmo, transfigura-se em pequenas doses de mortes que recebemos todos os dias, tendo orgasmos ou não. Felipe Werle busca-os como se fosse uma missão, como forma de compensar o inevitável. Entre suas amantes, uma mulher chamada Ana.
A recepção crítica de “As Pequenas Mortes” foi variada. Duas resenhas foram particularmente marcantes. A primeira, publicada na revista “Cult”, foi da filósofa e escritora Márcia Tiburi. Sua aprovação é veemente logo no primeiro parágrafo: “Ninguém se põe a ler um livro sem perguntar ‘o que o livro me diz?’. Qualquer leitor se autocompreende como destinatário da escrita que se põe a ler. É impossível ser indiferente. (…) O leitor é alguém que quer diálogo, que quer participar, que quer pensar junto”. Certamente uma perspectiva bastante idealista, sobretudo considerando as legiões de leitores de best-sellers de autoajuda e romances “água com açúcar” de modo geral. Em todo caso, Márcia Tiburi louva a tentativa de autocompreensão promovida pelo livro de Wesley Peres a partir da chave da psicanálise. Com certeza, a filósofa comprou a ideia.
Aconteceu o inverso com o crítico Rodrigo Gurgel, que resenhou “As Pequenas Mortes” em um artigo intitulado ironicamente de “Somente para lacanianos”, publicado no livro “Crítica, Literatura e Narratofobia”.
Segundo Rodrigo Gurgel, Wesley Peres nega a narrativa em prol de jogos de linguagens potencialmente interessantes e bem articulados, mas não necessariamente relevantes do ponto de vistas narrativo. Para o crítico, a narrativa de Wesley Peres “preocupada em alimentar seu niilismo, adepta de fórmulas de expressão herméticas e certa de que vocabulário chulo e malabarismos linguísticos podem substituir uma trama (…) fará a alegria dos lacanianos”. Certamente, o resenhista não comprou a ideia.
Existe um meio termo possível entre Márcia Tiburi e Rodrigo Gurgel? Se sim, contem comigo.
“Cartografias de um Doente de Nervos”
Por acompanhar de perto o trabalho de Wesley Peres, recebi com entusiasmo o lançamento de seu terceiro romance, publicado pela Editora 7 Letras: “Cartografias de um Doente dos Nervos”. As marcas de autoria são evidentes. De “Casa Entre Vértebras” o novo livro traz o protagonista anônimo que procura refletir sobre si mesmo a partir da experiência visceral da escrita. De “As Pequenas Mortes” herda o narrador inserido nas mesquinharias, mediocridades e paranoias da vida acadêmica do interior do Brasil. Alguns dos melhores trechos do livro são justamente as ironias destiladas contra esse universo tão pequeno que acha que se basta.

Diferente do narrador de “Casa Entre Vértebras”, os textos desse “doente dos nervos” não possuem um destinatário certo. Recém-saído de uma clínica psiquiátrica, ele sequer sabe o que pode acontecer no dia seguinte. Está muito longe de possuir a firmeza pessoal e o desprendimento mínimo que se se exige para tentar amar alguém. Seu cotidiano é assistir programas banais de televisão ao mesmo tempo em que reflete livremente sobre os grandes problemas do espírito universal e os pequenos problemas de seu espírito pessoal. No centro de suas preocupações está a relação problemática com o pai, a quem considera um Grande Natimorto, alguém que nasceu, mas não viveu. Mais Édipo, impossível.
Mas se o pai é um Natimorto, o próprio narrador viveu? O romance é um estudo de personagem, como “As Pequenas Mortes”? Em algum aspecto sim, uma vez que o protagonista é apresentado de diferentes formas em diferentes momentos, mas não há uma direção confiável. Sabemos que é um “professor do curso de psicologia da Universidade Federal de Goiás, no campus avançado da cidade de Cordisville” (provavelmente uma referência ao município de Catalão, Goiás, onde reside o autor), sabemos que está de licença médica, sabemos que não gosta do ambiente acadêmico, que despreza os colegas, sabemos que escreve artigos científicos que considera inúteis, sabemos que inferniza a vida de seu analista, que não tenta seduzir em série suas alunas muito mais por incompetência do que por ética. Não sabemos muito mais do que isso. Esse “doente dos nervos” não é um narrador confiável. Não porque tenta esconder algo ou porque mente deliberadamente, mas apenas porque ele mesmo não tem certeza de nada. Pode ter um colapso a qualquer momento. E de fato tem.
Efetivamente, ele sequer tenta ser um narrador. Afirma que “aqui jamais prometi narrar minhas aventuras por narrar, se é que irei narrar — aqui se trata de entender” (p. 78). O romance só possui capítulos 1. Está sempre por começar. Cada capítulo é o pedaço de um mapa gigantesco que foi rasgado, formando uma cartografia fragmentada, que se tenta precariamente colar. O próprio narrador reconhece essa natureza fragmentária de seu texto ao confessar que é um “teatro linguístico, recursivo, em que falo e falo e trocadilhos e me integro à sedição das palavras, como se as imensas orelhas estivessem ali, e eu, no divã, a olhar para o teto e a falar” (p. 57). Naturalmente, mais uma vez a questão da psicanálise é evocada na obra de Wesley Peres. Desta vez com direito a pequenos ensaios sobre Freud e Lacan inseridos na narrativa.
Narrativa, é modo de dizer, claro. Para desgosto de Rodrigo Gurgel, Wesley Peres recusa à narrativa. Não por “narratofobia”, mas por opção estética. Atesta isso o aparecimento de um personagem feminino exatamente na página 100 desta edição. O livro possui um total de 138 páginas. Chamada simplesmente de A Aluna, ela chega prometendo estabelecer um conflito, fomentar peripécias, criar um jogo de sedução, ao menos dar um norte para o exercício de escrita do narrador. “A Aluna é ruiva, ruiva falsa”. Também é uma pista falsa.
Depois de algumas poucas páginas, fica claro que nada vai acontecer. Qualquer interesse por outro ser humano é demais para o narrador, que se recusa a torná-lo narrativa, logo retornando ao exercício de girar em torno de si mesmo, em voos rasantes sobre a própria cartografia esfacelada. Somente no final do livro, quando se recupera de um colapso, sobrevivente de si mesmo, dedica-se a seduzir A Aluna. Com sucesso.
Esse ato a normaliza. A personagem perde o A e se torna apenas “uma aluna”, e depois ganha o nome de Ana. Talvez não se chame Ana de fato. Em uma sessão de análise planejou apaixonar-se por uma Ana, fazendo d’A Aluna uma Ana programada. Outra Ana na obra de Wesley Peres (será a mesma Ana?). Mas, sem a letra maiúscula, Ana vira cotidiano, cabendo-lhe apenas fazer chá e comprar a pílula do dia seguinte. “Não haveria mais nada entre ele e Ana, pois ele surtou naquele mesmo dia (…) perto da morte, já muito velho, ainda se lembrava de como Ana o libertara para dentro do mundo”. Ana, A Aluna, deixou de ser linguagem e tornou-se memória. A linguagem pode descrever a memória com precisão? Esse é um dos desafios da literatura, compremos ou não a ideia. Depois de James Joyce, figura muito citada no romance, não há outra opção.
A cartografia da prosa de Wesley Peres não possui um X para marcar o local do tesouro. As peças preciosas estão espalhadas nas entrelinhas das páginas. Tropeçamos nelas aos montes enquanto caminhamos na leitura. Cabe a cada leitor carregar o que puder nos braços. Muitas vão cair durante o caminho. As que ficarem se cristalização em memória.