A Hora dos Ruminantes, de J. J. Veiga, faz pensar no desconhecido que se instala e gera incômodo
26 março 2023 às 00h00
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Edmar Monteiro Filho
O querido amigo Marcelo Burgos fez-me lembrar um poema que escrevi décadas atrás, intitulado “Plim Plim”. Esses versos, meramente bem-intencionados, mencionavam a exploração ilegal de cassiterita e ouro em terras ianomâmi, essa etnia indígena que vive nos limites entre Brasil e Venezuela.
Marcelo trouxe à baila esse velho poema para destacar sua triste atualidade. Falávamos sobre isso nos anos 1980, quando vieram à tona denúncias contra madeireiros, garimpeiros e mineradoras invadindo as terras demarcadas, com consequências trágicas sobre a cultura e a própria sobrevivência dos ianomâmi. Neste momento, os noticiários voltam ao assunto, exibindo imagens de crianças esquálidas, homens e mulheres de faces encovadas, às margens de rios contaminados e destroços das florestas arrasadas, as mesmas que tocaram nossos corações no passado. Para os ianomâmi, a lei enunciada por Lavoisier se contradiz: tudo se perde, nada se transforma.
Ailton Krenak, voz maiúscula dos povos indígenas, denuncia a dificuldade de convivência entre dois mundos “que têm tanta origem comum, mas que se descolaram a ponto de termos hoje, num extremo, gente que precisa viver de um rio e, no outro, gente que consome rios como recurso”. De um lado, comunidades cuja relação com a natureza adota práticas de antigos povos caçadores e coletores e, de outro, gente que, conforme afirma Krenak, gasta “toda a força da Terra para suprir a sua demanda de mercadorias, segurança e consumo”. Assistimos ao conflito entre essas duas concepções distintas de mundo em diversos momentos da história humana e o resultado é inevitavelmente o mesmo: a derrota daqueles apontados como “inimigos do progresso”, mesmo que a concepção de progresso inclua a pérfida mistura de ambição desenfreada, desrespeito à diversidade e violência.
Ambição. Incompreensão. No contato entre povos de culturas distintas, a assimilação recíproca e pacífica de costumes, ideias e crenças raras vezes ocorreu, sendo de praxe as disputas trágicas e duradouras. Somos o resultado de séculos de dominação e exploração desenfreada do mais fraco pelo mais forte, sob a égide de interesses e ambições de diferentes naipes. Desse conflito multiforme, a literatura apropriou-se em muitas ocasiões e com os mais diversos enfoques. O escritor goiano J. J. Veiga abordou o tema em alguns de seus romances e novelas, como “Sombras de Reis Barbudos”, “Aquele Mundo de Vasabarros” e mesmo “Os Pecados da Tribo”, sempre em enredos inusitados, permeado pelo absurdo e pela fantasia. “A Hora dos Ruminantes” é um de seus textos mais notáveis.
O estranhamento entre dois grupos humanos, o conflito que se anuncia e se aproxima como misteriosa ameaça, a crescente tensão: essa a atmosfera que se adensa página a página. A chegada de um grupo de estranhos à pacata vila de Manarairema suscita, a princípio, uma irrefreável curiosidade. Os locais mobilizam-se para conhecer os recém-chegados e descobrir suas intenções, mas todas as tentativas nesse sentido são rechaçadas. Estabelecidos nas proximidades, os estranhos desenvolvem atividades que fogem à compreensão de todos. Autossuficientes, não recorrem ao comércio da vila, recusam todo tipo de ajuda e desestimulam aproximações, senão aquelas que lhes convêm. A curiosidade insatisfeita vai trazendo efeitos deletérios sobre o relacionamento entre os habitantes, especialmente quando alguns dentre eles começam a receber maiores atenções dos estranhos. Aqueles privilegiados, a quem é permitido visitar o acampamento, mantêm um sigilo que parece sustentado pelo medo. E é então que inexplicáveis invasões de animais começam a ocorrer na vila. Cães às centenas aparecem repentinamente. Depois, o gado aglomera-se pelas ruas em quantidade tal que impede os moradores de transitarem, bloqueia as portas e janelas, destrói cercas, muros, plantações. Qual seria a relação desses fatos com a chegada dos intrusos? O inusitado vai pouco a pouco se apoderando da vida dos moradores, apontando para um desfecho ameaçador.
Um dos mais bem acabados exemplares da literatura fantástica das letras brasileiras, “A Hora dos Ruminantes”, como esperta alegoria, faz pensar no desconhecido que se instala, gerando curiosidade e pequeno incômodo. Depois, o desconforto cresce e, quando a genuína ameaça se revela, é tarde para reagir. Aliás, por quê, por quem reagir?
“… ianomâmi ganhou chupeta / perdeu cassiterita, ouro e rio / mas não perde um capítulo / perdeu lugar na fila de emprego / pra waimiri-atroari / mas ganhou fotografia / radiografia / chegou ao fim da picada / e quando viu a estrada / de gente tão engraçada / acabou a novela…”.
Edmar Monteiro Filho é crítico literário. E-mail: [email protected]