Filme mostra o esforço linguístico da humanidade em tentar se comunicar com alienígenas recém-chegados à Terra. A questão: como fazer isso? | Foto: Reprodução

Quem foi ao cinema ver “Interestelar” provavelmente não se lembra de como saiu do local. Isso porque não há mente no mundo que consiga lidar com os muitos bugs que o filme dá no pensamento lógico de qualquer ser humano que tenha visto aquilo — até hoje acho que Christopher Nolan, revoltado com a pecha de ser um diretor demasiadamente explicativo, resolveu fazer “Interestelar” só para sacanear seus críticos.

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Os bugs promovidos por “Interestelar” têm um motivo: o filme leva a um nível sem noção o entendimento circular do tempo — algo que, aliás, não é nada novo. O longa é esteticamente impecável, tanto que ganhou o Oscar de Melhor efeitos visuais, em 2015, mas tenho certeza de que a Academia também não entendeu o filme. Se tivesse compreendido, “Interestelar” teria levado muitas outras estatuetas para casa. Dois anos depois, Denis Villeneuve parece ter tentado explicar “Interestelar” com “A Chegada”, voltando à ideia de tempo circular, mas agora trazendo isso para o campo da linguagem.

No conjunto da obra, “A Chegada” não chega nem perto de “Interestelar”, nem na falta de noção nem na trilha sonora (a trilha é ruim e chega a ser irritante, às vezes) e, muito menos, na fotografia. Isso torna o longa de Villeneuve bastante mediano, embora tenha recebido oito indicações ao Oscar, inclusive de Melhor filme. Porém, “A Chegada” é um ótimo filme do ponto de vista linguístico.

De certa forma, o filme defende a ideia de que a língua determina o pensamento. Isto é, que a estrutura e o vocabulário de uma língua são capazes de moldar os pensamentos e percepções de seus falantes. O conceito tem nome: hipótese de Sapir-Whorf. Edward Sapir, um antropólogo que associou língua e cultura, e Benjamin Lee Whorf, um engenheiro químico. Juntos, os dois moldaram a teoria de que cognição e língua são inseparáveis.

A teoria é citada no filme e representa um mote perfeito para explicar como a linguista estadunidense Louise Banks (Amy Adams) consegue entender a língua escrita dos heptápodes, como são chamados os alienígenas recém-chegados à Terra dado seus sete “pés”. É claro que o filme se utiliza de muitos artifícios sobrenaturais para tentar explicar ao espectador como ela passa a se comunicar com os aliens, mas o caminho linguístico escolhido é muito interessante.

Convidada a ajudar o governo dos EUA a entender o propósito dos heptápodes na Terra, Louise Banks é uma das primeiras a entender que os aliens têm dois tipos diferentes de comunicação, a falada e a escrita, e que as duas não são diretamente ligadas, uma vez que a escrita é simbólica — os símbolos feitos por eles representam sentenças inteiras e não palavras.

Contudo, “A Chegada” não consegue explicitar o caminho usado por Louise para entender o mecanismo da língua escrita dos heptápodes e isso é uma falha grave, pois confunde o espectador e faz com que quem assista tenha que assinar o pacto de confiança na história sob a pena de não conseguir continuar assistindo ao filme. Isto é, em certa altura do longa, o espectador precisa colaborar, desligar seu raciocínio lógico e comprar a ideia. É daí em diante que o roteiro deixa a desejar.

Uma vez comprada a ideia de que a língua molda o raciocínio do falante, o espectador assiste a uma Louise Banks que passa a sonhar e viver sob os símbolos da língua escrita heptápode que são circulares (veja a foto acima). É nesse ponto que o longa faz o salto, ligando a língua à noção circular de tempo, dando a Louise a capacidade de literalmente ver o futuro. É assim que “A Chegada”, em uma grande montagem linguística, une o presente ao futuro, “explicando” tudo a quem assiste.

Para quem faz o pacto, o filme é bom; para quem não faz, é péssimo. Para mim, que já vi centenas de milhares de filmes de ficção científica, “A Chegada” só é interessante do ponto de vista linguístico. O resto é só pano de fundo.

As apostas: não ganhará Melhor filme (que deve ficar com “La La Land”), não ganhará Melhor diretor (que deve ficar com Damien Chazelle), não ganhará Melhor fotografia (que pode ficar com “La La Land” ou “Moonlight”), não ganhará Melhor roteiro adaptado (está entre “Estrelas além do tempo” e “Fences”), mas tem chances de levar a estatueta de Melhor edição.