Sumiço de grávida completa 14 anos em Goiânia; caso foi arquivado

01 junho 2023 às 06h21

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O último toque identificado pela polícia no aparelho celular da jovem Mayra Silva Paula, na época com 20 anos, e grávida de seis meses, foi às 00:45h, do dia 4 julho de 2009, no sábado. A ligação foi realizada por um telefone público (orelhão), localizado do outro lado da rua, em frente ao apartamento em que Mayra morava. A jovem teria descido do prédio neste momento, e depois desapareceu sem dar mais notícias a família. A vizinha dela e dona do apartamento, que Mayra dividia com outras três amigas, disse em depoimento ter visto a locatária pela última vez às 23h15, na sexta-feira, um dia anterior do desaparecimento, já com pijama para dormir. O Jornal Opção teve acesso à íntegra de todo o processo, que teve investigações da Força Nacional, que atuava no Estado naquele período, do Ministério Público Federal (MPF) e da Polícia Federal (PF).
Conforme consta no documento, a partir de depoimentos, naquele dia Mayra vivia um dilema. Teria que revelar para a mãe, Edlamar Rosária da Silva, de 57 anos, que estava gestante, pois com a barriga já evidente, não teria mais como esconder. Como acontecia em todas as férias da faculdade, ela retornaria para casa da mãe, na cidade de Nova Glória, região do Vale de São Patrício, no interior de Goiás. Com encerramento das aulas, aquele era o momento para passar um mês com a família. De costume, Edlamar combinou com o dono de uma Van, que fazia transporte da cidade a Goiânia, conhecido deles, para passar no apartamento em que a filha morava para buscá-la, no dia 3 de julho de 2009. No entanto, a própria Mayra ligou e cancelou a viagem. Para a mãe, a jovem disse que iria com o namorado no sábado, 04 de julho.
Na sexta-feira, 03 de julho, pela manhã, data da viagem de Mayra, a proprietária do apartamento disse que conheceu o rapaz que Mayra já havia lhe contado, que estava namorando. Ela o encontrou entrando no prédio. O próprio jovem em vários depoimentos confirmou ter ido ao local. No primeiro deles, que apenas teria ido uma única vez, para oferecer carona para ela. Na conversa, de acordo com ele, Mayra estaria muito nervosa e teria dito: “Ou você me leva, ou deste jeito [grávida] eu não apareço na casa da minha mãe sozinha”. No depoimento do dia 21 de outubro de 2009, o namorado confirmou que tinha ido pela segunda vez ao apartamento, por volta das 11 horas da manhã. De lá, teria retornado para casa, almoçado e seguido para um plantão na Festa de Trindade, que iniciou às 13h e terminou às 23h, conforme escala de trabalho. O homem é policial militar.
O namorado conta que saiu de Trindade às 23h15, na companhia de um colega, que confirmou a informação. Ele teria passado e deixado o companheiro na casa dele, no Setor Crimeia Oeste. Isso por volta da meia noite. Neste intervalo, ele troca um torpedo com Mayra. No extrato telefônico, o registro foi feito às 23h49. Foi por volta desta hora que a dona do apartamento relatou à polícia ter visto o carro dele na frente do prédio. Nos últimos depoimentos, a mulher não comentou mais sobre o assunto. Depois do desaparecimento, foi ela quem recebeu o último torpedo do celular de Mayra, isso no dia 06 de julho, às 11h53. Antes, no dia 4 de julho de 2009, houve uma recarga no aparelho da então desaparecida. Nenhum desses registros foi possível ser localizado pela Estação Rádio Base (ERB). Foi por esse mecanismo que a polícia identificou e constatou que o celular de Mayra foi usado pela última vez dentro do apartamento, localizado na Vila Maria José, setor próximo ao Pedro Ludovico.
Desaparecimento
O sumiço de Mayra foi notado pela mãe, quando no sábado, 04 de julho de 2009, ela não chegou a Nova Glória e também não atendia mais o celular. Ao ficar sabendo que o namorado da filha já estava na cidade, Edlamar foi buscar notícias dela. Mas o jovem afirmou que não sabia da moça e que nem eram namorados. Com muita insistência, ele teria confirmado que ambos estavam mantendo um relacionamento amoroso.
A partir daquele momento deu-se o início do que Edlamar chama de pesadelo. Incansavelmente, ela começou a procurar pela filha. Foram inúmeros telefonemas. “Não tinha hora para ligar. Eu varava as madrugadas discando, até cair na caixa de mensagem”. Embora com uma filha recém-nascida, a mãe partiu para Goiânia em busca de notícias do paradeiro de Mayra. Foi ao apartamento onde ela morava, mas apenas encontrou alguns embrulhos sobre a cama. “Ela tinha comprado presentes para a irmãzinha”, recorda. Sobre o aparelho de telefone fixo encontrou uma carta manuscrita. Foi ao ler o documento que a mãe descobriu que a filha estava grávida. A carta foi periciada e constatou que realmente foi escrita por Mayra. No local, Edlamar também conversou com a dona do apartamento, de quem colheu muitas informações que até então não tinha conhecimento.

Sem notícias, Edlamar registrou um boletim de ocorrência na polícia. Na delegacia, várias testemunhas foram chamadas, inclusive, o namorado de Mayra. Acusado pela família da jovem como principal suspeito em saber do paradeiro dela, o rapaz contou sua versão sobre o caso. Conforme ele, a discussão com a moça envolvia a revelação da gravidez. Para ela, o jovem argumentou que precisaria conversar com a família dele antes do assunto ser tratado com a família dela, o que Mayra não teria aceitado.
Na delegacia, o militar disse que na noite do dia 04 de julho de 2009 teria dormido na casa de outra namorada, com quem teria uma relacionamento de mais de três anos. No apartamento dela, ele teria chegado por volta de meia noite. Entretanto, a quebra de sigilo telefônico dele revelou um registro de ligação para o aparelho dessa namorada às 3h40. “Fato que causa estranheza já que tanto ele como ela afirmaram que pernoitaram juntos”, constatou um dos investigadores do caso. Em resposta, ele teria alegado que o aparelho havia sumido na casa e ligou para o encontrá-lo.
Por sua vez, a inquilina relatou à polícia que Mayra chegou a confidenciar que o namorado havia sugerido que fosse feito um aborto. Mas a mulher buscou tirar essa hipótese da cabeça de Mayra, se oferecendo para ficar com a criança, fato que aconteceu semanas antes do desaparecimento da jovem. De acordo com a proprietária do imóvel, a moça chegou a dizer que havia decidido manter a grávidez. Já as colegas de apartamento afirmaram que Mayra chegava a fazer muitos planos, acreditando que teria um futuro com o pai do bebê.
Quebra de sigilo
A polícia pediu e a Justiça autorizou a quebra de sigilo telefônico dos principais envolvidos no caso, o que inclui o número de telefone de Mayra. Porém, o período foi bastante curto, do dia 02 a 07 de julho de 2009. Um extrato da conta de celular, solicitado por Edlamar e anexado no processo, mostram ligações para o telefone dela até 31 de julho. A quebra de sigilo de um período maior foi solicitada e novos pedidos foram feitos para quebra de sigilo do contato de Mayra. Porém, para as operadoras foram informados com erro o número de IMEI (International Mobile Equipment Identity ou Identificação Internacional de Equipamento Móvel, ou seja, é um número composto normalmente por 15 dígitos – únicos e globais – permitindo a identificação de qualquer celular).
Informações que constam no próprio processo mostram que a operadora de telefone do qual Mayra possuía linha, destaca que o final de IMEI era 418. Mas em pedidos da polícia para quebra de sigilo, no intuito de localizar o celular, era citado o final 410. Assim também houve falhas no número do namorado dela, o qual o pré-fixo era 62, e a solicitação de informações era para o pré-fixo 64. Pela lógica, as operadoras informaram que não haviam registros para as solicitações.
Edlamar recorda que por muito tempo o número de Mayra chamava, até que em 2010, o número foi cancelado e passou para outra pessoa. Em 2014, novos pedidos de quebra de sigilos foram solicitados, mas as companhias ressaltaram que não era mais possível atender ao pedido, pois são obrigadas por lei a manter dados por até cinco anos. Foi também neste período que se registrou o pedido de vistoria no veículo do namorado de Mayra.
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Federação do caso
Paralelamente à investigação policial, a mãe de Mayra ia atrás de qualquer informação sobre a filha. Até hoje, ela divulga diariamente um cartaz da foto dela e telefones para contatos. Em vários supostos locais em que Mayra poderia ter passado, Edlamar comparecia. Esteve no Cais do Jardim América e Cais Chácara do Governador. Nessas unidades, de acordo com ela, ao apresentar documentos da filha, acabava gerando registros no sistema de Saúde, o que alimentavam esperanças e gerava mais pedidos de informações por parte dos investigadores. Consultas do CPF da desaparecida ao Serasa também foram alvos de diligências.
Todavia, a procura de Edlamar por Mayra não se resumia aos locais físicos. Desconfiava de que a filha poderia ter sido vítima de tráfico humano para prostituição. Ela começou a pesquisar sites com conteúdos adultos até fora do país, chegando a ver uma imagem que parecia ser de Mayra. Sem um print da tela ou link do endereço eletrônico, voltou a procurar a polícia com essa tese. O caso foi transferido para a instância federal, que incobiu a PF para apurar o caso. A polícia brasileira chegou a acionar a Interpol, mas nada ficou comprovado de que a moça tenha deixado o país, constando que ela não possuía passaporte.
Com a negativa de indícios do paradeiro de Mayra no exterior, em 2019, o caso retornou para o estágio inicial. Assim, foi-se determinada a busca de registros de crianças em todos os cartórios em nome de Mayra e da inquilina do apartamento, que havia pedido o bebê para ela, caso houvesse a opção pela interrupção da gestação. Nada foi encontrado. Novamente, o então namorado de Mayra foi ouvido e ratificou o que havia contado no segundo depoimento. O processo foi arquivado no MPF por “antiguidade do fato investigado e esgotamento de diligências investigatórias”, em 22 de outubro de 2019.
Acerca de erros de pedidos sobre número de IMEI e prefixo de celular, o MPF respondeu, por meio de nota. Segundo o órgão, foram realizadas várias diligências com reforço da PF que não resultaram em provas, que sustentam a continuação do caso. O órgão não esclareceu a demora em periciar o veículo do principal suspeito.
O MPF finaliza o comunicado compadecendo com a “situação da sra. Edlamar Rosária da Silva Oliveira, que há quase 14 anos busca incansavelmente por sua filha, mas tanto a Polícia Civil, quanto a Polícia Federal e o Ministério Público Federal envidaram esforços na realização de diversas diligências para solucionar o caso, não havendo mais linha investigativa potencialmente idônea que possa levar à comprovação de materialidade e autoria de alguma conduta delitiva”.
Prova material
Outros casos parecidos no Estado tiveram desfechos diferentes. Apesar de nunca ter sido encontrada, a mãe de Priscila Brenda conseguiu na Justiça, após 11 anos, a condenação do então namorado da filha e o amigo. A adolescente sumiu aos 14 anos, no ano de 2012, em Catalão.
Desaparecida em 2020, após desembarcar no Aeroporto Internacional de Goiânia, Lilian de Oliveira, de 40 anos, até o momento, não foi encontrada. O casal acusado de homicídio qualificado por motivo torpe irá a júri popular. A decisão saiu em maio.
Agora sobre o julgamento onde o corpo não é encontrado, isto é, a prova material, o caso mais conhecido no país é do goleiro Bruno, que foi condenado pela participação na morte de Eliza Samudio. O corpo nunca foi encontrado.

O presidente da Comissão de Direito Criminal, Eder Porfírio, esclarece que isso é possível diante de vários indícios, porém, sem a prova material, fica mais fácil de ser derrubado. “Nós julgamos onde não há corpo, eles vão trabalhar pelo indícios de provas. Uma série de elementos que a promotoria e a investigação embasam para poder verificar essa questão, pelo menos, do indício de materialidade. Em tese, se não existir o corpo, não há crime. Então, assim, a questão vai ver o que? Se teve filmagem, se teve ligações, se teve conversas, ou alguma testemunha que viu alguém cometendo tal fato”
Nota do MPF sobre o caso na íntegra
O inquérito policial n. 0033353-80.2016.4.01.3500 foi instaurado primeiramente perante a Polícia Civil a fim de apurar o desaparecimento de MAYRA DA SILVA PAULA, ocorrido em 03 de julho de 2009. A investigação foi motivada pelo fato de as circunstâncias não indicarem que MAYRA, então com 20 (vinte) anos e grávida de 6 (seis) meses, quisesse se ausentar, bem assim pela maneira furtiva que desapareceu, suspeitando-se, inclusive, de eventual homicídio.
Da análise dos autos, verifica-se que foram realizadas inúmeras diligências a fim de se apurar os fatos, nenhuma delas tendo logrado êxito em localizar MAYRA ou ao menos esclarecer seu desaparecimento.
Esgotadas as investigações no âmbito estadual e tendo surgido notícias de que MAYRA supostamente estivesse em Portugal, exercendo prostituição, foi declinada a competência à Justiça Federal, que recebeu os autos apenas em 04/10/2016, com a finalidade de se verificar a materialidade do crime previsto no artigo 149-A, V e § 1 º , IV do Códi go Penal (tráfico de pessoas).
As diligências foram realizadas por meio de esforços conjuntos da Policia Federal e do Ministério Público Federal, que resultaram as mais diversas tentativas de elucidação dos fatos, destacando-se:
i) a juntada de informações acerca dos movimentos migratórios de MAYRA (fls. 457-458), dos quais não constam nenhuma movimentação de saída do país;
ii) a juntada de informação que demonstra que MAYRA sequer possui passaporte expedido (fl. 459);
iii) a reinquirição de C (fl. 468), que resultou infrutífera, porquanto não acrescentou nada de novo;
v) a juntada da confirmação de que o nome da MAYRA está incluso na base de dados da Difusão Amarela da Interpol (fl. 476);
v) a juntada da informação de que, em consulta ao Sistema AFIS – Automated Fingerprint Identification System (fl. 480), não houve nenhuma positivação com as impressões digitais de MAYRA;
vi) a juntada da Informação de Polícia Judiciária no 1480/2018-SR/DPF/GO (fls. 505-510), que afasta a suspeita de que MAYRA exercia a prostituição; bem assim dão conta da existência de consultas médicas realizadas por MAYRA, perante o SUS, todas em datas posteriores ao seu desaparecimento, mais precisamente nos anos de 2010 e 2011; e
vii) a elaboração do Relatório Policial de fls. 571-574, tendo a Autoridade Policial concluído enfaticamente que não há elementos que demonstrem que MAYRA tenha saído do país e que nem mesmo há a possibilidade de ela ter obtido passaporte, ainda que com qualquer outra identificação.
Como se vê, as investigações levadas a efeito pela Polícia Federal tampouco foram frutíferas no sentido de elucidar os fatos, razão pela qual promoveu-se o arquivamento do feito, o qual foi devidamente homologado pela 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF.
Até o momento, não há notícia de que tenha surgido algum elemento novo que, à luz do artigo 18 do Código de Processo Penal, possa justificar eventual desarquivamento do feito e sua consequente remessa à Justiça Estadual para continuidade das investigações.
Nós nos compadecemos da situação da Sra. EDLAMAR ROSÁRIA DA SILVA OLIVEIRA, que há quase 14 anos busca incansavelmente por sua filha, mas tanto a Polícia Civil, quanto a Polícia Federal e o Ministério Público Federal envidaram esforços na realização de diversas diligências para solucionar o caso, não havendo mais linha investigativa potencialmente idônea que possa levar à comprovação de materialidade e autoria de alguma conduta delitiva.