Arquiteta que faz doutorado sobre áreas públicas diz que só no contato com a população é possível que uma administração seja realmente bem-sucedida

Na foto Maria Ester
Foto: Renan Accioly/Jornal Opção

Antes de ser arquiteta e professora, Maria Ester de Souza é uma cidadã na acepção mais ampla da palavra. Acredita na cidade como um projeto a ser construído por quem mora nele, de baixo para cima e não algo imposto pelas autoridades. E nesse sentido, faz uma declaração interessante sobre Goiânia. “Os prefeitos desta cidade não têm tido um olhar para a relação de identificação — e estou falando dos prefeitos dos últimos 80 anos.”

Ela fala de experiência própria. Depois de trabalhar por quase duas décadas em seu próprio escritório, como profissional liberal, Maria Ester foi convidada para a administração pública, na Secretaria do Meio Ambiente de Aparecida de Goiânia. Ao apresentar seu primeiro projeto — a urbanização de uma área pública —, foi questionada por uma moradora: “Mas cadê a creche?”. Pega no “contrapé”, ela desligou o computador, voltou para a sala de trabalho e fez um novo projeto. “Foi um choque para mim. Naquele momento percebi que tinha de ouvir as pessoas antes de fazer qualquer coisa para elas”, lembra.

Nesta entrevista ao Jornal Opção, a arquiteta — que também é vice-presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Goiás (CAU-GO) — expõe seu trabalho pioneiro no doutorado em Geografia pelo Instituto de Estudos Socioambientais (Iesa) da Universidade Federal de Goiás (UFG), sobre venda de áreas públicas em Goiânia. É uma compilação de quase 600 leis municipais sobre o tema desde 1940. No total, o poder público já doou ou negociou 3 milhões de metros quadrados — uma área que pegaria boa parte do Centro, do Setor Sul e do Setor Oeste.

Elder Dias — Como foi sua trajetória profissional, que junta a experiência prática como profissional liberal com a vida acadêmica e o trabalho no setor público?
Minha carreira como professora é muito recente, só a comecei há quatro anos. Experimentei a docência por um convite de um professor da PUC [Pontifícia Universidade Católica de Goiás] e, por causa do ambiente que encontrei, resolvi que tinha de estudar e fui para o mestrado. Antes, tinha trabalhado para a Prefeitura de Aparecida de Goiânia durante seis anos, como arquiteta da Secretaria de Meio Ambiente. Foi isso que me deu o tema de minha pesquisa acadêmica. Não sou professora da área de Cidade, mas de Projetos de Edifícios — dos 25 anos de carreira, foram 20 anos de experiência nesta área.

Comecei a estudar as cidades quando encontrei Aparecida. Fiquei li­teralmente abalada quando comecei a trabalhar e encontrei aquele cenário. Descobri que eu fazia algo que era totalmente o avesso do que eu pen­sava, que vi ser tudo errado. Esse professor, que encontrei por acaso, me chamou para lecionar, mas não em Cidades, mas em Edifícios. O so­ma­tório do que vi em Aparecida, mais alguns projetos urbanos de que eu tinha participado e o mestrado em Geografia, em que estudamos as relações sociais, políticas e econômicas, tudo isso se desdobrou no doutorado. Então, há seis anos eu estudo especificamente cidades e áreas públicas. Mas posso dizer que ser professora é ainda o que menos sei fazer. (risos)

Cezar Santos — Quando exatamente foi sua experiência em Aparecida?
De janeiro de 2009 a janeiro de 2014, desde o começo da gestão de Ma­guito Vilela (PMDB). Eu não co­nhecia o prefeito, nunca tive nenhuma relação política com ele, mas um cliente meu tinha contato com o se­cre­tário de Meio Ambiente, que lhe per­guntou se não conheceria alguém para ajudá-lo na área de projetos. Es­se cliente então me contatou e participei da gestão, como contratada.

Elder Dias — Por que a sra. diz que estava pensando “tudo errado” ao começar sua experiência na cidade?
Sou formada aqui em Goiânia, por uma escola tradicional, que ensina arquitetura moderna, em um urbanismo com linhas de pensamento modernistas. Ao sair da faculdade e ir diretamente para um escritório pa­ra ser profissional autônoma, fi­quei um tanto isolada. Éramos eu e meu escritório.

Nesse isolamento, todas as decisões do projeto acabam sendo decisões do arquiteto. Quando comecei a projetar em Aparecida, percebi logo no primeiro trabalho que, se meu cliente era a cidade, teria de conversar diretamente com a população. Errei de forma absurda logo de cara e isso me sacudiu.

Marcos Nunes Carreiro — Como foi isso?
Gosto muito de contar essa história, porque, para mim, foi muito emblemática. Elaborei o projeto de uma praça, toda empolgada, montei uma apresentação em Power Point, com maquete eletrônica e tudo o mais. Parecia ser tudo o que o prefeito queria para uma área verde pública. Era maravilhoso. Fui então à associação dos moradores do bairro beneficiado e fiz a apresentação. Assim que eu terminei, abri para as perguntas. Então, uma mulher moradora de uma casa em frente à área, me questionou: “Onde está a creche no seu projeto?”. Respondi: “Neste projeto não tem creche.” Ela reagiu assim: “Então seu projeto não serve para mim”. Perdi o rumo completamente, não consegui falar mais nada. Pedi desculpas a ela, desliguei tudo, fechei a exposição e disse que faria um novo projeto.

É nesse momento que cai uma teoria que se estuda. Vi que estava fazendo tudo errado. A partir de então, reverti totalmente o processo. Abandonei a ideia de iniciar pelo projeto para começar sempre com audiências públicas, que passei a chamar de consultas públicas. Só depois eu passava para o projeto.

A partir daí surgiu a pesquisa para o mestrado, com o entendimento da relação das pessoas com a área pública. Antes, era como se eu chegasse di­zendo: “Este é o projeto bom para vo­cê, porque Aparecida é uma cidade péssima.” Só que era tudo ao contrário, porque, para aquela pessoa, A­parecida era e é uma cidade maravilhosa. É ela quem mora lá e pensa assim.

Elder Dias — Como interpretava o quadro quando a pessoa falava isso, achando maravilhoso aquilo que a sra. imaginava de forma bem diferente?
Eu percebi que as pessoas não eram tristes, nem infelizes, nem revoltadas. Nenhuma delas queria fazer a revolução que eu desejava (risos). Elas estavam satisfeitas com o que tinham ali. Não era fácil dizer a elas que a calçada em frente à casa poderia ser muito melhor, poderia ser compartilhada.

Da mesma forma era complicado dizer a elas que não era bom ter o lote totalmente cimentado. Afinal, é uma realidade que vivem há décadas, o “cimentar tudo” é uma ex­pressão do desenvolvimento, de que está tudo urbanizado. Falar que era preciso deixar uma área permeável, ou não colar uma janela à divisa do lote do vizinho. Eu trabalhava na Secretaria de Meio Ambiente e vi um homem chorar porque suas cabras tinham sido apreendidas. Não era 1 ou 2, mas 20. E ficam na sala da casa. Esse tipo de situação acontecia.

Então, por que eu tenho de chegar a um lugar, me sentindo toda cheia de conhecimento urbanístico, e determinar o que é bom, onde instalar o comércio, a indústria, a largura das avenidas? Não é assim. Um lugar é bom por causa das pessoas, não por causa das coisas.

Mas a maior dificuldade em Aparecida era que as coisas por lá são fragmentadas. São 500 mil habitantes espalhados em várias centralidades. Entre os conjuntos urbanos, há vazios urbanos diversos, pastos, áreas verdes, não é uma coisa coesa — entre o Centro e o Setor Ga­ra­velo, por exemplo, ou entre o Ga­ravelo e a Vila Brasília, cada lugar é uma cidade à parte. São várias cidades em uma só. No Centro, a presença das famílias tradicionais, fundadoras da cidade, e têm uma relação de vizinhança da forma deles. Eles gostam de viver lá e lá é bom de viver. O que é ruim, às vezes, é o aspecto técnico de infraestrutura a que as pessoas não foram educadas para assimilar. É como uma estratégia de gestão: é melhor não saber para que não possam exigir. Por isso, elas consideram normal ter uma fossa em vez de rede de esgoto.

Aparecida tem hoje 30% de colega de esgoto. Se têm 100 mil lotes, 70 mil não têm esgotamento. Mui­tos desses são de conjuntos aden­sados, com prédios de 40 ou 50 unidades, com fossas que recolhem tudo. São tanques que transbordam toda semana e causam uma série de problemas. As pessoas reclamam? Sim, mas não percebem a gravidade. E isso é compreensível, pois nunca viveram de outra forma.

Marcos Nunes Carreiro — A sra. estava trabalhando para o poder público e percebeu o que a população demandava. Isso parece ser uma dificuldade para os políticos. Por que eles não conseguem enxergar assim?
Pelo contrário, eu acho que os políticos entendem tudo muito bem, talvez só não queiram fazer. Eles têm o contato direto com a população ao pedir o voto, e as pessoas dizem o que querem. Então, o político sabe qual é o problema. Mas, quando assume o cargo, outras demandas passam a ser prioridade em sua cabeça.

Quando comecei o trabalho na gestão, a primeira coisa que recebi foi o plano de governo. Achei lindo isso, pensei “vou trabalhar em uma prefeitura em que o plano de governo é executado”. Na parte de meio ambiente, tinham umas três folhas que falavam de minhas atribuições, entre elas desenhar os parques urbanos e proceder o tratamento das áreas verdes. Fiquei lá seis anos; concretizaram um parque.

Cezar Santos — Depois de sofrer esse choque de realidade, a sra. considerou seu trabalho satisfatório para si?
Para mim, foi — e nas pequenas ações. Em vários projetos de praça que eu fiz, usei esse processo inverso. Bati na porta das pessoas e perguntei o que elas queriam ali para elas. Depois, executei. Assim ocorreu em várias praças. No Jardim Helvécia, fizemos um trabalho que foi financiado pela própria população. Os moradores compraram o cimento para a execução. Demos as palmeiras e a prefeitura colocou também equipamentos de ginástica para idosos. Desenhei o projeto de acordo com os desejos da comunidade, com planta baixa e tudo, e o entreguei para os moradores. A gente se encontrava três vezes por semana com todos os que moravam ao lado da praça. Fizemos a caixa de areia em um dia, o playground em outro, o calçamento depois, e assim por diante. O resultado é que hoje tudo ainda está lá. Em meus 25 anos de formada, foi a melhor experiência que tive foi nesse trabalho.

Fizemos também uma obra em parceria com a iniciativa privada, que foi um parque no Setor Santa Rita, um projeto diferenciado de urbanização. Em vez de separar a gleba em quadras de lotes pequeninos, fez-se um projeto de quadras tendo um miolo com uma área verde. Teve muito problema de execução por conta da topografia, mas foi uma grande experiência. Nos projetos do Setor Mansões Paraíso — com uma área de esportes e um playground — e do Setor Colina Azul executei as obras que são o teor de minha pesquisa de mestrado.

Cezar Santos — E o que aconteceu para a sra. deixar o trabalho em Aparecida?
Eu comecei trabalhando com Juliano Cardoso, da ONG Anjos Verdes, como secretário da pasta. Ele foi substituído depois por Lafaiete Campos Filho, que morreu em fevereiro de 2013. Lafaiete tinha vários projetos, aos quais não foram dada a devida sequência. Seu sucessor resolveu acabar com o De­partamento de Projetos e também o de Educação Ambiental. Não gostei, briguei muito por causa disso e decidi não ficar mais. Então, fui para a Secretaria de Desenvol­vimento Urbano, equivalente à Comurg de Goiânia. Mas o problema é que praticamente não tinha como trabalhar — sem sala, sem computador etc. Mesmo assim, projetei várias praças nesse período.

Mas chega um momento em que isso vai perdendo o sentido: os projetos passam a não ser mais prioridade, tudo se volta para a campanha e a eleição. Isso aconteceu em 2014. O próprio prefeito Maguito Vilela tinha começado uma nova gestão em 2013, reeleito, mas a secretaria deixou de ter importância para fazer os projetos de urbanização. Em paralelo, eu tinha acabado de fazer o mestrado e passei no concurso da PUC. Aí, fui ser professora e mantive meu escritório de arquitetura.

Uma vez o decreto publicado, a gestão pode fazer o que quiser, junto com a Câmara e seus vereadores, em relação à destinação de áreas públicas" | Foto: Divulgação Câmara Municipal de Goiânia / Marcelo do Vale
Uma vez o decreto publicado, a gestão pode fazer o que quiser, junto com a Câmara e seus vereadores, em relação à destinação de áreas públicas” | Foto: Divulgação Câmara Municipal de Goiânia /Marcelo do Vale

Elder Dias — Isso dá uma visão do que é o ambiente público. Como a sra. vê o caso da Comissão Especial de Inquérito (CEI) das Pastinhas, na Câmara de Goiânia? Há questões técnicas e políticas envolvidas ali? Há comprometimento dos dois lados?
Não tem como não ter os dois lados, é um conjunto, um papel que está posto para ser assinado, e é assinado ou não. Mas acho que existe uma pressão muito, muito forte (en­fá­tica), do mercado imobiliário em ci­ma do gestor, em cima da cabeça do secretário, para ele fazer: “Você tem de fazer, você tem de aprovar, tem de resolver isso pra mim”. E o ges­tor, às vezes, fica refém, porque foi financiado por esse mercado. O té­cnico fica em uma situação dificílima, com o emprego em risco; como julgá-lo, achar que está conivente ou não?

Eu não julgaria isso de jeito nenhum. Uma das coisas que mais estou estudando agora é a legislação urbanística, estou entendendo como a cidade tem a forma que tem a partir daí. E a legislação é totalmente frágil, dá abertura, deixa correr. Não tem nada de errado, o que há é uma interpretação da forma como foi feita. Não teria como eu dizer que um lado está mais comprometido que o outro. Tudo está embasado, tem formato de lei, alvará de construção, código de edificações etc.. Os caminhos que se tem de percorrer para aprovar um projeto mudam de dois em dois anos, é uma loucura.

Se for para procurar justificativa, então, limpa todo mundo. Mas não tem como dizer que não há comprometimento. Isso é histórico, estrutural, na nossa cultura. Nos primeiros projetos que aprovei, logo que me formei, por volta de 1994, havia os despachantes que ficavam ali na Cidade Jardim. Já os conhecíamos, eles portavam pastinhas e faziam os projetos serem aprovados bem rapidamente, porque tinham seus “conhecidos” dentro da Prefeitura, para facilitar o trâmite. Isso há 20 anos. Aí, o técnico que está lá dentro, tentando fazer um bom trabalho — e o pessoal é ótimo, os profissionais que trabalham na área de aprovação, gente que sabe tudo de urbanismo — não tem saída, porque se aprova tudo de cima para baixo.

Marcos Nunes Carreiro — A Câmara enviou ao CAU-GO o relatório final da CEI?
Não chegou ainda, houve um pedido de vistas do vereador Carlos Soares (PT). Eles avisaram que iriam mandar o relatório, mas só vimos alguns escopos. O que eu pessoalmente vi e sei foi na sala do vereador Elias Vaz (PSB), o que ele me mostrou. Acho que tudo é muito dúbio, muito passível de interpretação, precisa-se ter muito cuidado para ver quem vai sair resguardado.

Marcos Nunes Carreiro — Então o problema sempre é na formatação da legislação?
Claro, a nossa legislação urbanística foi construída no início do século 20, segundo teoria de Raquel Rolnik [arquiteta e urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urba­nis­mo da Universidade de São Paulo], em cima do desejo do mercado imobiliário.

Eu estava pensando: por que uma área pública pode ser vendida? Mas está lá claro, pode, sim, ser vendida. Mas quem deu essa ideia? Quem deixou isso escrito dessa forma na Lei 6.766, de 1979, a lei de parcelamento? A única pessoa que não pode alterar a destinação primitiva de uma área pública é o loteador, mas, uma vez o decreto publicado, a gestão pode fazer o que quiser, junto com a Câmara, com os vereadores e seus representantes. “Fazer o que quiser” assim, meio entre aspas, mas já se tem na lei o termo legal de desafetação. A gestão aliena essa área, a destinação perde sua função primitiva e o poder público dá outra função.

Marcos Nunes Carreiro — Os vereadores procuram os técnicos do CAU-GO para fazer algum tipo de consulta antes de fazer uma legislação?
O CAU não existia na época do Plano Diretor, só tem quatro anos e existe essencialmente para regulamentar a profissão. O que você pergunta seria papel do Instituto dos Arquitetos do Brasil, das universidades, e da própria Prefeitura, que tem um corpo técnico muito importante e sabe muito da questão. Tem gente que trabalha lá há 40 anos e viu to­dos os planos, todos os decretos de ex­pansão, gente que acompanhou tudo. Ninguém melhor que essas pessoas para dar essa resposta aos vereadores.

Geralmente, isso é feito por advogados, com a consultoria de Direito Urbanístico. Na realidade, uma lei de desafetação é muito simples, é uma folhinha só que indica o endereço, qual a destinação futura etc. Esse é o corpo da pesquisa do meu doutorado, fiz um levantamento na Câmara. E ficou bom (risos).

Marcos Nunes Carreiro — O que a sra. conseguiu encontrar no levantamento das leis sobre áreas públicas?
Eu cataloguei tudo em uma tabela: o número da lei, a data dela, a destinação primitiva dessa área, a lei de desafetação, de doação ou venda. De “venda”, por incrível que pareça, só tem uma escrita com essa palavra. Todas são de desafetação.

Marcos Nunes Carreiro — Qual lei diz respeito à venda?
É uma de 2014. Todas as outras “desafetam e alienam”, ou “desafetam e doam”, a área pública. E o objetivo só aparece quando a área é doada: para igrejas ou associações. Em 80 anos, Goiânia teve 597 leis de desafetação e doação de áreas públicas — isso até 2015. São 3 milhões de metros quadrados de áreas doadas até hoje, o que corresponde à uma área que seria boa parte do Centro, Setor Oeste e do Setor Sul.

Cezar Santos — O que a sra. pode dizer sobre esse novo Código Ambiental de Goiânia, ou Lei Ambiental, que está sendo discutido na Câmara?
Acompanhei algumas audi­ências públicas no início, há uns dois anos, e não sei como ficou o escopo final. Acompanhei agora a de resíduos só­lidos, em que houve muita movimentação. Os códigos geralmente são completos, muito bons. A lei atual já dá o limite de 30 metros de afastamento das margens dos cursos d’água para ocupação, fala sobre áreas de reflorestamento e até pode citar algo na área de arborização urbana.

Mas o que acho importante numa lei como essa é onde ela cabe na gestão. A lei, por si só, é quase inútil. Já temos uma Secretaria de Meio Ambiente, com uma equipe ótima, mas não adianta ter uma lei desse tamanho, um código bacana, se os planos de governo dos prefeitos não a contemplam. Senti muito isso quando trabalhei em Apa­recida: todo o arcabouço legal que estava sendo construído era para atender a normatização do Ministério do Meio Am­biente, porque, se tiver a lei, então vem recurso federal. Então, faz-se uma lei “copia-cola, copia-cola”. Será que o prefeito e o vereador vão pegar essa lei e tomar como meta? Isso não vi acontecer em Aparecida. Nem no caso de Goiânia, com sua preocupação de preservação ambiental. A lei estava lá, rigorosa, tinha de prender infrator, mas ninguém nunca foi preso. Então, de que serve a lei? Só serve para ter um número, para mostrar ao ministério que o município está capacitado para receber verba.

Outro problema é que todo mundo que trabalha é contratado, ninguém é concursado. E todos os que participaram do processo saem na próxima gestão. A lei fica numa gaveta, quem chega depois nem sabe que ela existe. Quando cheguei à secretaria em Apa­recida, em 2009, poucas pessoas sabiam da existência do Plano Diretor, datado de 2001. Quando eu vi, disse “puxa, legal, um Plano Diretor”. As pessoal se espantaram: “Plano Diretor?”.

Então, que se elabore o Có­digo Ambiental, é muito importante. Goiânia tem um plano de arborização urbana, tem lei sobre calçadas para se aprovada, tem a Lei de Resíduos Sólidos, cujo cumprimento é obrigatório. Mas, se isso for apenas para pegar verba do ministério, não adianta.

“A Constituição resolve o ambiental”

Na foto Maria Ester
Fotos: Renan Accioly/Jornal Opção

Elder Dias — O promotor Juliano Barros, do Ministério Público de Goiás (MP-GO) disse que a Lei Ambiental nem seria tão necessária; pelo contrário, pois poderia vir para servir a interessados em sua mudança, e acaba aumentando o emaranhado. O Plano Diretor de Goiânia, regulamentado, não bastaria?
Foi o que acompanhei em Apa­recida de Goiânia. Os pequenos municípios demandam recursos, que só vêm se tiver a lei. Há pouco tempo, houve uma corrida aos planos diretores, assim que o Estatuto da Cidade foi publicado, determinando que as prefeituras deveriam ter seus planos. Houve um processo de formação de capacitadores de avaliação de planos, um curso que até mesmo eu fiz na época, na Agehab [Agência Goiana de Habitação]. De repente, tinham quatro ou cinco escritórios entregando, cada um, dez planos diretores por mês a municípios. A ideia do plano seria exatamente aquilo que falei no início: ir lá e perguntar para a comunidade o que ela quer, aí faz-se o plano. Não pode ser o contrário. Não vale entregar um papel e dizer que isso se chama Plano Diretor. Aparecida de Goiânia tem Código Ambiental, Goiânia também tem, mas e daí? Onde vemos isso? O problema da drenagem em Goiânia, por exemplo, não se resolve.

Elder Dias — Como a sra. vê, desde o início de sua carreira, a evolução da cidade com a legislação ambiental e a aplicabilidade dessas leis? Por exemplo, no início dos anos 90 não havia condomínio horizontal em Goiânia. Houve progresso na lei, ainda que os interesses imobiliários tenham aumentado no decorrer desse tempo?
Li os “Diários Oficiais” desde sua criação, na década de 60, até os de hoje. Passei um mês dentro da Câmara de Goiânia lendo todos os livros de leis publicados, porque eu queria catalogar todas as leis de desafetação. De 1940 até hoje, eu não diria que há uma evolução só no aspecto legal, mas também no entendimento da finalidade dessa lei. Acho que, com a Constituição de 1988 já estava ótimo, não precisaria mais fazer nenhuma lei. Na nossa Cons­tituição, há um arcabouço capaz de resolver os problemas da cidade, está lá escrito.

O Estatuto das Cidades é a regulamentação de um artigo da Cons­tituição, e é ótimo. Mas ele tem suas brechas, por onde a iniciativa privada vai, por exemplo, com a operação urbana consorciada, que abre espaço enorme para fazer esse marketing urbano, essa moda de ter a cidade como uma marca. Uma comissão de gestores de Goiânia foi a Cingapura e trouxe a marca. Lá, por exemplo, a Nike e a Samsung são patrocinadoras da cidade. Isso é o que se traz com a operação consorciada. Eu não diria que houve uma evolução nas leis, mas que melhorou. Por exemplo, nosso Código de Edificações é de 1992 e ele melhora quando é corrigido parâmetros de afastamento, parâmetros de largura, de ventilação.

Na medida que o desenvolvimento tecnológico vem para nossa vida, o arcabouço construído muda também. Hoje não precisamos de mesas das mesmas dimensões de antes. Meu escritório de arquitetura antes era do tamanho dessa sala, com quatro mesas. Hoje, meu escritório de arquitetura é o meu computador. É online e não preciso de mais do que uma mesa. Isso muda. Então, o código tem de mudar. As pequenas regulamentações sempre evoluíram. No entanto, existe uma estrutura geral que é a Constituição, à qual ninguém nunca deu o devido valor a ponto de dizer “basta a gente fazer isso aqui e está resolvido”. Se formos observar, têm coisas no Plano Diretor que são inconstitucionais. Existem seminários legislativos que são muitos bons porque podemos ouvir advogados e aqueles que fazem as leis; arquiteto só desenha. Um advogado chegou a dizer que existem coisas até no Estatuto das Cidades que poderiam ser consideradas inconstitucionais.

Mas a evolução foi demais. O texto da lei de hoje é muito melhor do que o da década de 1950; é mais claro, mais fundamentado. O que ocorre é que, a partir da Constituição de 1988, aconteceu uma série de desmembramentos inúteis. É papel para ajuntar papel, não resolve o problema.

Elder Dias — Seria aí que entra o tal do “tudo pode”? Goiânia é isso, uma cidade que pode tudo em termos de construção?
Se fizermos a leitura pela densidade — o quanto se pode construir no lote em metros quadrados —, por exemplo, sim.

Elder Dias — O que não se pode em Goiânia?
Não se pode construir em fundo de vale, em área de preservação, em área de afastamento…

Elder Dias — Como se construiu, então, o Shopping Passeio das Águas?
Ele está afastado fora da área protegida, nós medimos.

Elder Dias — Mas mesmo se nos referirmos ao que eram as áreas de alagamento?
É este o problema: uma questão de interpretação. Não existe cidade nenhuma sem água, isso não existe. Uma das condições para se estabelecer uma cidade é a presença de água. Mas o movimento da água não foi considerado motivo relevante o suficiente, no grosso da urbanização, na década de 1960. Existe, a propósito, o Plano de Wilheim [Jorge Wilheim, engenheiro que criou um plano de desenvolvimento urbano para Goiânia], feito na década de 1960, que fez uma linha de desenvolvimento para Goiânia, mas não considera o hídrico. Se tem água ou não, não interessa, que se faça uma ponte, vire-se. Então, havia o entendimento de que o corpo hídrico não era impedimento para o desenho da cidade. Em Goiânia, a construção das avenidas T-63 e T-9, essas grandes avenidas, entre outras, aconteceu nessa época.

Essa é uma linha de pensamento. Assim, se monta uma legislação que não leva em consideração o corpo hídrico. Mas considera o quê? Que, se estiver afastado 30 metros de cada lado, vai ficar tudo bem. Mas qual o parâmetro técnico? Uma pesquisa feita, ao longo de 50 anos, sobre a cheia e a vazante desses córregos? Considerou-se a drenagem e impermeabilização? Isso nunca é muito claro, porque esse escopo técnico não vem na lei; ninguém lê o estudo técnico feito antes. Aí a cidade cresce assustadoramente em população, impermeabiliza-se e esses lugares perdem sua rota. Então esse parâmetro de 30 anos permanece por muitos anos na lei e as projeções dos estudos perdem a validade.

Existe uma hierarquia: tem o ribeirão, o córrego que desagua nele e a água de ambos vai para o Rio Meia Ponte, que segue para o Paranaíba. Isso, na época da grande urbanização das cidades, e não só de Goiânia, não era levado em conta. Tanto que o Setor Goiânia 2 [na região norte da capital, próximo ao encontro do Ribeirão João Leite com o Rio Meia Ponte] não poderia sequer existir. Se buscarmos a Carta de Risco da cidade, veremos que aquela área precisa de espaço e água. É tudo brejo.

Outro exemplo é a Vila Olím­pica, construída no Rio de Janeiro. É um enorme, um super, um mega-aterro. Existe uma crítica imensa sobre os serviços urbanos que estão sendo feitos para os Jogos Olím­picos — metrô, linhas de transporte etc. — em detrimento de milhões e milhões de reais que poderiam ser aplicados na urbanização de outros lugares.

Elder Dias — Inclusive na própria Baia de Guanabara, totalmente poluída.
Exatamente. E o que se pergunta: pode aterrar? Pode, mas tem de rever os estudos de tempos em tempos. Fazer e refazer medições, pois a lei não deve ser definitiva quando estabelece os parâmetros. Pode hoje, mas pode não ser possível amanhã.

Cezar Santos — A sra. consegue listar os três maiores problemas de Goiânia?
Eu diria que um deles são os políticos. (risos) Mas vamos deixar esse como o terceiro ponto. Um problema grande — que é o primeiro lugar e não apenas de Goiânia — trata do excessivo número de automóveis individuais. E isso ocorre pelo fato de não existir, há 40 anos no País, uma política pública de transporte coletivo. Isso é um fato. Eu poderia ir a pé de casa, no Setor Aeroporto, para meu local de trabalho, no Setor Marista, mas não vou porque não tem ônibus. É um “ponto cego” em relação ao transporte público.

O segundo problema é que a cidade é uma bomba-relógio. Goiânia ficou violenta ao ponto de eu ter medo de sair a pé e de também não deixar que minhas filhas façam isso. Então, o segundo problema é de segurança pública; a violência urbana, doméstica, de cada dia, de alguém passar e arrancar sua bolsa. Isso é um descontrole total que, acompanhado da falta de política pública de transporte coletivo, se torna um grave problema.
E o terceiro problema é realmente a gente não ter uma perspectiva de algum grupo político na cidade que interessante e interessado o suficiente para resolver os dois primeiros. De resto, esta cidade é perfeita.

Cezar Santos — Existe em Goiânia uma preocupação com a sustentabilidade e projetos muito importantes que não conseguiram ser concretizados.
Não aconteceu nada e exatamente pelo fato de não ter havido um planejamento com essa finalidade. Se as metas do Plano Diretor para a mobilidade urbana tivessem sido executadas em 2013, talvez tivéssemos outro cenário. E digo “talvez” porque isso não é algo que se resolva em 3 ou 4 anos, mas em 15. Eu me lembro de que estava pesquisando as leis para meu trabalho e vi que o primeiro contrato de concessão de transporte coletivo em Goiânia é de 1954. Já eram os que estão aí.

Existem palavras que vêm em certo momento. Em uma época, falou-se muito de “centralidade”. Tudo era “centralidade”. A “sustentabilidade” também virou uma palavra dessas. Você quer uma cidade mais fácil de fazer uma gestão sustentável do que Goiânia? Uma cidade cheia de área verde e plana, fácil de resolver a questão da drenagem. É uma cidade de serviços, criativa, que tem arrecadação. A população não é mais flutuante, é consolidada. Nós estamos no Planalto Central, com duas estações claramente definidas, mas os gestores não conseguem fazer um planejamento para o tempo seco e outro para o tempo de chuva. Não conseguem dizer: “De abril a setembro, nós vamos executar isso. Depois, vamos partir para outras coisas no âmbito social, porque nessa época a gente não pode mexer em rua”. Mas aí o sujeito começa a abrir buraco em dezembro.

E, de qualquer forma, uma gestão sustentável, além do tripé econômico-social-ambiental, precisa da colaboração entre as secretarias. Eu vi reuniões em que um secretário queria matar o outro só por ter uma ideia diferente, como se fosse futebol, ao ponto de dizer “o meu técnico é melhor do que o seu”. Não é assim. Dessa forma, não tem jeito de ser sustentável.

Cezar Santos — O que a sra. pediria para o próximo prefeito de Goiânia?
Eu pediria para que ele fizesse uma gestão da população e não dele. Se ele tem a intenção de fazer um viaduto, que ele vá lá bater na porta da casa — não é enviar um e-mail, postar algo no Facebook ou publicar no Diário Oficial — e pergunte: “Olha, vamos fazer um viaduto aqui. Vai te prejudicar? Você tem uma solução?”. Isso é fazer uma gestão sustentável. Eu pediria que fosse um prefeito que não tivesse ideias maravilhosas, porque as ideias estão todas postas já, muito bem colocadas. Têm projetos incríveis prontos para o centro da cidade. Não precisa inventar nenhum outro, novo. Converse com os arquitetos do atual prefeito e eles vão citar vários projetos bons que estão engavetados. A Prefeitura deveria levá-los para a população e lhe perguntar se o projeto é viável. Perguntar se precisam de um viaduto ou de uma creche. Se for creche, então não é uma árvore ou uma ciclovia, é uma creche. Tem gente que não quer árvore, e eu tenho de respeitar. Vamos debater, mas nesses termos. Então, eu pediria para o prefeito ser mais aberto, mais atento ao que essa população tem para falar.

Marcos Nunes Carreiro — Esse mesmo perfil político também serve para os futuros vereadores?
Se isso acontecesse seria um sonho, mudaria o Brasil, seria uma revolução — se tivéssemos um Legislativo que fizesse uma legislação em função do que a população deseja. Não é nem por aquilo que a população precisa, porque tem uma diferença entre o que é desejo e o que necessário. Às vezes, por aquilo que é preciso — como a questão da própria calçada —, a própria população resolve. A questão é educar a população.

Entretanto, o que a população deseja é o que acho mais importante, porque cria uma relação do cidadão com o lugar e essas demandas podem ficar mais baratas para o prefeito. O cidadão cuida da área pública preservando-a, vigiando-a, porque seu desejo foi atendido para o que ele esperava de cidade. Às vezes, esse cidadão só queria uma lâmpada ou uma lixeira, mais nada, e se sente contemplado.

Na foto Maria Ester
Arquiteta Maria Ester de Souza: “Prefeitos deveriam entender que a força de organização das cidades está nas pessoas” | Foto: Renan Accioly / Jornal Opção

Elder Dias — Na edição passada do Jornal Opção, colocou-se em pauta que o próximo prefeito de Goiânia já faria muito pela cidade se fosse um bom “síndico”. Afinal, não parece inteligente prometer obras faraônicas sem dinheiro. Não seria interessante se o prefeito desse conta de atender a uma pauta básica?
Simplificar isso na figura do síndico pode ser uma possibilidade. O que o síndico faz é tomar conta das finanças do condomínio, pagar as defesas, as tarifas, tudo aquilo relativo a essa organização coletiva. Mas tem algo que vai além do síndico, já que existe uma relação de identificação das pessoas com a cidade. E os prefeitos desta cidade não têm tido esse olhar — e estou falando dos prefeitos dos últimos 80 anos. Isso fica muito claro quando se lê o encaminhamento da organização de Goiânia, pelo que vi na legislação, vê-se que não há uma leitura sobre o que a cidade poderia ser de bom para as pessoas, mas, sim, do que a cidade pode “me dar” — no caso, para o prefeito. O síndico, mesmo tendo essa atribuição de olhar para a limpeza urbana, para a coleta de lixo, de ter a atribuição de pagar as contas, pode fazer mais: precisa fazer as pessoas gostarem do lugar em que mora. E não é só na função de síndico que a gente faz isso. Por exemplo, enfeitar o prédio com as luzes de Natal, mas alguém pode achar que aquilo é um gasto a mais e é nessa hora que o prefeito faz a diferença.

Falo isso tudo bem embasada: é que eu mesma sou síndica e algumas vezes o condômino não paga o condomínio, mas eu tenho de pagar a energia, e isso é muito ruim. Eu não sou prefeita, mas sou síndica. Como prefeita, teria outros vieses para resolver os problemas. A cidade é uma organização coletiva, então eu deveria ser apenas a pessoa que assinaria o papel.
Se os prefeitos entendessem que a força da organização da cidade está nas pessoas, nos moradores, não teriam problemas com a gestão. Mas eles acreditam que a força está no secretário, na equipe, no político. A força para o sucesso de uma cidade boa ocorre quando os próprios moradores da cidade trabalham para ela — varrem a calçada, a rua, ligam para trocarem a lâmpada queimada, se a praça está suja organizam um mutirão, fecham a rua para uma festa junina — tem coisa mais incrível que isso? Tem gente que não está nem aí para este tipo de coisa. Não acho que seja exatamente assim que os “síndicos” que vêm por aí olham para esta cidade. Porque são síndicos como eu, que ficam com raiva do condômino (risos).

Elder Dias — A sra. incentiva projetos de intervenção urbana, como o que participou no Residencial Humaitá, para evitar a venda de uma área pública. Como é esse trabalho?
Trabalhei com esse projeto no final do meu mestrado. Isso envolve o que eu acredito. Uma cidade do porte de Goiânia não tem como ser administrada com a velocidade que deveria ser. Imagine isso em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte — esta com uma topografia bem complicada. Existem diversos estudos que envolvem o assunto; um livro, inclusive, intitulado “A Cidade do Pensamento Único” [de autoria de Carlos B. Vainer, Ermínia Maricato e Otilia Beatriz Fiori Arantes], que traz a ideia de que a pequena organização dentro da cidade que a ajudará a ser habitável, pois uma cidade em que você tem de sair da sua casa, se deslocar ao trabalho, voltar e assim por diante, mas que nada acontece — porque você está em seu carro com o ar condicionado ligado e janelas fechadas — não é uma cidade, mas apenas um trajeto.
Portanto, para ser de fato uma cidade, o que eu almejo, a pessoa precisa sair e se encontrar com o vizinho, ir à praça, tudo em um raio pequeno, cerca de 500 metros. À medida que a cidade não é olhada pelo síndico e se deteriora, eu e meu vizinho, se caminharmos por ela, certamente começamos a mudar a realidade. Isso foi o que eu aprendi em Aparecida de Goiânia. Existiam lugares em que nada existia e eu me perguntava como fazer aquilo acontecer; a única opção era o morador em frente àquele ermo, a 30 quilômetros sede da prefeitura. Se o morador não cuidasse, aquilo não perduraria. Eu, então, o convencia a nos avisar: “Se algo quebrar, o sr. me liga e nós arrumaremos”. Era assim uma vez, duas vezes, com atos de vandalismos; após a terceira que arrumávamos o local, geralmente não quebravam mais. A população entendia que aquele serviço era para ela. Em uma cidade grande, isso não funciona.

Portanto, aprendi que junto a outros coletivos, vendo-os na internet, como o Jane’s Walk [um coletivo do Canadá, em referência à jornalista Jane Jacobs, autora de “Morte e Vida de Grandes Cidades”]. Um grupo chamado Sobreurbana me chamou para ser um guia da primeira edição da Jane’s em Goiânia. Reuniu-se um grande grupo de pessoas interessadas por caminhar pela cidade e eu fui como guia da Jane’s Walk. Eu fiquei impressionada com a quantidade de pessoas interessadas, vi o quanto aquilo era legal. Com isso, sentávamos e conversávamos sobre o que faríamos; uma das ações que teve visibilidade foi a ida ao Residencial Humaitá, com o grupo MurAU, que coordeno e que faz ações de intervenção urbana e estimula outros coletivos.

As pessoas começam a procurar por isto. “Como eu faço?”, perguntam. E é simples, só ir ao lugar e usá-lo como quiser, sem regras. Se você achar que é um campo de vôlei ou espaço para andar de bicicleta, você faz isso lá. Com isso, pequenos grupos começam a aparecer. Concomi­tan­temente, os grupos de arte de rua se despontaram, cerca de dez anos atrás, com obras muito belas pintadas em fachadas de edifícios, trazendo para ruas os personagens, os grafiteiros, que tem um forte senso de união e que acabam ocupando a cidade. Foi o que aconteceu no Centro de Goiânia, também no Setor Sul. Qual o papel dessas pessoas? O que elas mudam na cidade? Ora, passa a existir vida na cidade, pois alguém foi lá e olhou para aquele lugar. Os pequenos grupos que eu estimulo são para que, em cada bairro, mais pessoas façam isso. Se tem uma área pública no seu bairro sobre a qual me dizem “ah, está tudo abandonado”, é bom saber que o espaço fica abandonado porque ninguém o ocupa.
Agora, outra coisa é que não se pode confundir isso com a obrigação da prefeitura de urbanizar essas áreas. O poder público tem a obrigação de calçar o local, iluminá-lo, colocar um banco, pois é ele quem tem máquina na mão. Mas isso não acontecerá se a população não gritar por isso. Outra ação que funcionou muito foi o evento “Ocuppy”, em Wall Street. Isso foi um “start”, bem como os movimentos de junho de 2013. Eu acredito que esta seja uma solução para os problemas da cidade: pequenos coletivos de moradores que ocupem seus espaços. Quando falo de “espaços coletivos e públicos”, não me refiro só a praças; falo da praça, da rua, da calçada, do comércio, de tudo que dá vida à cidade. É o que une mais as pessoas e o que eu tenho como esperança de tornar a cidade mais segura.