Sérgio Duarte de Castro: “É insustentável a manutenção do teto de gastos como regra fiscal”
20 novembro 2022 às 00h00
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Elder Dias e Marcos Aurélio Silva
O Brasil não pode nadar contra a corrente do restante do planeta em relação à política econômica, mas é isso que parece não ter aprendido ainda. Essa é a síntese do pensamento do professor e economista Sérgio Duarte de Castro, uma das maiores autoridades de sua área em Goiás e que, de 2011 a 2013, foi secretário de Desenvolvimento Regional do Ministério da Integração do primeiro governo de Dilma Rousseff (PT).
Nesta entrevista ao Jornal Opção, o catedrático da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), se alinha ao pensamento do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva e critica a política que prioriza teto de gastos em detrimento da responsabilidade social. “É preciso retomar o crescimento nacional e resgatar a dívida social. E é perfeitamente possível fazer isso mantendo um comportamento de responsabilidade fiscal”, diz ele, apresentando números e dados comparativos a economias de países desenvolvidos.
Marcos Aurélio Silva – Na campanha e também neste período de transição, Lula e sua equipe têm dito e buscado driblar o teto de gastos, buscando atender as demandas sociais dos compromissos de campanha. O sr. acha que esse é o caminho correto?
É uma questão fundamental para o novo governo operar. Quando foi estabelecido o teto de gastos, pela Emenda Constitucional 95, em 2016, vários economistas – entre eles, eu mesmo – já apontavam a insustentabilidade e a incorreção desse tipo de regra fiscal. Veja que o teto estabelece um congelamento do gasto primário da União por 20 anos. Isso implica uma perda anual certa da capacidade de gasto do governo só pelo aumento da população brasileira, cujo crescimento vegetativo tem sido de 0,8% ao ano. Só isso já significaria uma perda anual de capacidade de gasto público de quase 1%, algo absolutamente insustentável se considerar que os gastos públicos estão, em grande parte, com a previdência social. Ora, só a Previdência, no País, tem um crescimento médio de 3,5% por ano, mesmo depois da reforma que reduziu benefícios. Isso decorre da diferença entre a entrada de novas pessoas no mercado de trabalho e o envelhecimento da população.
Outro limite é a estratégia de reduzir a folha de salários. Na prática, o teto de gastos significa reduzir permanentemente os gastos nos setores essenciais do Estado, como saúde, educação, cultura, esporte, ciência e tecnologia – área essa crucial para o País neste momento. Então, é insustentável a manutenção do teto como regra fiscal, não é a regra adequada.
O teto de gastos ajudou a manter a estagnação econômica
Elder Dias – Em sua avaliação, então o teto de gastos não funcionou?
Se formos observar os resultados da aplicação dessa medida, de meados de 2016 para cá, eles são muito ruins. O teto de gastos foi um dos componentes que ajudou a manter uma estagnação econômica no País, mesmo antes da pandemia – basta ver que entre 2017 e 2019 estávamos crescendo algo em torno de 1% ou pouco mais.
Tivemos, ao mesmo tempo, uma dramática redução dos gastos sociais. A merenda escolar está com valor congelado há cinco anos, o valor unitário está em 36 centavos por aluno, uma quantia que não dá para comprar um Ki-Suco [marca de suco em pó], isso sabendo que parte da população infantil no Brasil tinha essa merenda da escola como a única refeição decente que podia fazer no dia. As universidades estão praticamente quebradas, impossibilitadas de funcionar; a cultura está à míngua; o SUS, mesmo com os gastos da pandemia, teve uma redução de quase R$ 60 bilhões em seu orçamento desde 2018. Só agora, de 2022 para 2023, neste orçamento que está no Congresso, há um corte de R$ 22,7 bilhões dos recursos do SUS. Isso gerou uma denúncia do Conselho Nacional de Saúde (CNS) para a ONU [Organização das Nações Unidas], em função da dramaticidade desse tipo de corte. Quando se vai olhar, a proporção dos gastos do governo no PIB [produto interno bruto] não se alterou nesse período. Ou seja, a medida não foi eficiente para reduzir os gastos, além de ter contribuído para a queda do crescimento. Em suma, acabou não tendo nenhum dos efeitos esperados – tanto é que, nos últimos três anos, a regra foi olimpicamente descumprida. Só houve corte efetivamente nas áreas sociais. Nas outras, houve um aumento absurdo – um bom exemplo são os gastos eleitorais. Então, trata-se de uma medida excessivamente rígida e incapaz de atender às necessidades. O País precisa, neste momento, de um novo padrão, uma nova regra fiscal que assegure que teremos um governo com responsabilidade fiscal, mas cuja ideia-chave seja assegurar o crescimento econômico, a redução das desigualdades, o aumento da competitividade das empresas brasileiras. Enfim retomar o crescimento nacional e resgatar a dívida social. É perfeitamente possível fazer isso mantendo um comportamento de responsabilidade fiscal.
Elder Dias – O teto de gastos deveria funcionar como uma âncora fiscal, mas parece que teve mais efeito moral do que prático, é isso?
Na verdade, toda a lógica se baseia muito mais em um discurso ideológico do que propriamente pragmático sobre a realidade econômica. Diante de uma visão excessivamente liberal de boa parte dos setores produtivos brasileiros e do governo, ela se apresentou como uma medida para balizar a expectativa de que a gestão será responsável. Porém, é uma medida absolutamente exagerada para isso, com consequências econômicas consideráveis. Há um discurso ideológico por trás de tudo isso e que, por sinal, está completamente na contramão do debate internacional, daquilo que está sendo discutido e está sendo feito mundo afora, inclusive proposto por organismos conservadores na economia, como o Fundo Monetário Internacional (FMI). O governo dos Estados Unidos, o governo europeu, enfim, o conjunto das economias desenvolvidas está discutindo e fazendo isso neste momento.
A questão fiscal tem dois lados, não pode ser discutida como se fosse apenas uma questão de despesas. Ou seja, como se mantendo o corte de despesas tudo se resolvesse. Não é assim. Ela envolve dois lados: receita e despesa. A receita está associada a crescimento econômico. Se não há crescimento econômico, a receita fica reduzida. E se apenas há o controle da despesa, limitando-a a tal ponto que isso passa a impactar na própria qualidade e capacidade de crescimento, está se fazendo uma política contrária, que, em vez de melhorar a situação fiscal, à medida que a arrecadação vai caindo, é preciso cortar cada vez mais, causando então um círculo vicioso de redução de crescimento, sem que a economia consiga se recuperar para atender as necessidades do País, seja em termos de prestação de serviços de qualidade para todos, seja em termos de investimentos necessários em infraestrutura e condições para que o Brasil recupere sua competitividade e sua capacidade de crescer.
Resumindo, o que o mundo está fazendo neste momento – e que está acontecendo desde 2008, quando da crise internacional do subprime [motivada pela concessão de empréstimos hipotecários de alto risco, o “subprime loan”, prática que arrastou vários bancos para uma situação de insolvência] é que todas as economias centrais perceberam que teriam de aumentar o volume de gastos para tentar recuperar a capacidade de crescimento da economia. A partir de 2008, estamos assistindo, naqueles países, uma tendência de elevação dos gastos públicos, o que, com a pandemia – mais uma crise severa –, tiveram de ser aumentados ainda mais. Hoje, as principais economias estão discutindo é como retomar o crescimento com qualidade após essa crise. É para isto que os planos estão voltados: para o crescimento. A discussão que ocorre aqui, como se o único problema do País fosse a questão fiscal, é um negócio tupiniquim. É algo que está no Brasil na contramão do que o mundo inteiro está fazendo. Olhando os números, então, fica completamente injustificável.
O Brasil é um dos poucos países com dívida externa negativa
Marcos Aurélio Silva – E que números são esses?
Vou passar um dado do FMI, disponível na página do fundo para qualquer um buscar: a participação do gasto do governo no PIB. O Brasil tem hoje, em 2022, gastos públicos correspondentes a 37,6% de seu PIB. Isso é uma porcentagem menor do que praticamente a de todos os países desenvolvidos – o único que tem valor semelhante (37,5%) são os Estados Unidos. Os demais – Canadá, França, Reino Unido, Japão, Itália etc. – são mais de 40% do PIB, com a Itália chegando a 54% esse porcentual de gastos.
Fala-se que o Brasil está em uma trajetória perigosa da dívida pública aqui. Só que a dívida líquida do Brasil está em 58,4%. Quando o governo de Dilma Rousseff (PT) foi interrompido, essa porcentagem era de 38,6%. Desde então, vem em uma trajetória crescente. Mesmo assim, mais uma vez, há pouquíssimos países desenvolvidos que têm dívida pública porcentualmente menor do que essa, como o Canadá e a Alemanha. Já França, Itália e Japão têm mais de 100% de seu PIB correspondente à dívida líquida. Nos Estados Unidos isso é 94,7%. Na verdade, nossos números não nos deixam em uma situação especialmente complicada do ponto de vista do endividamento público. Claro que é desejável que o Brasil tenha uma política de controle que tente limitar o crescimento de seu endividamento, mas isso não é, hoje, um problema especialmente sério. Uma equipe do FMI que esteve recentemente no Congresso Nacional teve de dizer para os brasileiros que consideram equivocada essa análise que está sendo feita por aqui com relação à questão fiscal, mostrando que, inclusive, no caso da dívida, o Brasil é um dos poucos países no mundo hoje que têm dívida externa negativa. A maior parte de nossa dívida pública é em reais, o que torna tudo muito mais fácil de contornar e administrar do que as dívidas dolarizadas, que trazem o risco de fuga de capitais numa situação de crise. Portanto, a situação do País, do ponto de vista fiscal, não é tão grave quanto se pinta e essa discussão por aqui, repito, está na contramão do que está se fazendo hoje no mundo, do que está sendo discutido por órgãos como o Fundo Monetário Internacional.
Marcos Aurélio Silva – Mas por que, quando Lula falou em furar ou “manobrar” o teto de gastos, o mercado ficou tão nervoso? A visão do mercado é outra?
É uma questão curiosa isso. Primeiramente, essa relação da imprensa com o chamado “mercado”, o que, de cara, não trata da economia real. Trata-se do mercado financeiro, que é a expressão do investimento especulativo na economia e que é, por natureza, um investimento extremamente volátil. Se já era uma das características desse mercado, isso aumentou enormemente após a crise de 2008, seja nas bolsas de valores, seja no mercado cambial. Em economias periféricas e dependentes, como a do Brasil, isso se torna ainda mais volátil. O real hoje é a segunda moeda mais volátil do mundo em termos de câmbio. Então, se olhar com um pouco mais de cuidado esses dados, teve aquela grita toda a partir do discurso de Lula – interpretado como um sinal de que o mercado não vai aceitar esse tipo de posição. Só que Lula não falou nada diferente do que ele já havia dito: vamos manter a responsabilidade fiscal, mas nossa prioridade é o crescimento econômico. Isso que ele já vinha dizendo e que, aliás, é o que ele fez durante seu governo de oito anos, com resultados fiscais – e aí são os números que dizem, em qualquer variável de análise – muito melhores do que o que hoje temos.
O que ocorreu no dia? Teve uma desvalorização importante do real, valorização do dólar e queda nas bolsas. Mas, olhando a curva de variação do câmbio no mês e a curva das ações, vamos notar que tanto um como outro, apesar dos movimentos de alta e baixa, às vezes de curtíssimo prazo, não há efeito nenhum em um período maior – e olha que estou falando de um período de um mês, nem é tanto assim de longo prazo. Houve, creio eu, um exagero na interpretação da imprensa. E esse exagero não é casual: há uma pressão, tanto de setores mais conservadores da própria imprensa como do próprio mercado financeiro, para que o governo que virá mantenha a política arquiliberal que está em vigor, apesar de seus resultados econômicos extremamente questionáveis. A razão para isso é que, do ponto de vista do mercado financeiro, eles vêm ganhando muito dinheiro.
Elder Dias – É fácil perceber isso?
Veja bem, durante toda a crise, desde 2019 para cá, houve primeiramente a redução da taxa de juros públicos das ações. Depois, quando os juros subiram de novo – chegaram a 13% –, passaram a ganhar dinheiro com renda fixa. Ou seja, o mercado no curto prazo se adequa e lucra sempre, em todas as situações, seja de crise ou de recuperação. Por isso, vejo que é preciso parar de utilizar esse mercado especulativo, de curtíssimo prazo, como referência e ouvir a economia. E “quem” é essa economia? A economia real, a indústria, empresários, os produtores, que nem têm ainda o que dizer, porque nem começou o governo. Uma coisa, porém, é clara: a visão arquiliberal perdeu a eleição. E a visão nova, que ganhou as eleições, diz “vamos manter a responsabilidade fiscal, mas sem prejudicar o essencial”, que, nesse projeto, é o crescimento e desenvolvimento do País. Tenho certeza de que, assim como ocorreu lá atrás, no primeiro governo Lula, o mercado financeiro vai se acomodar perfeitamente a partir do momento em que o Brasil retomar seu crescimento. No momento, a preocupação tem de ser com a economia real: mais empregos e de qualidade, renda se desconcentrando, serviços públicos sendo atendidos. Isso vamos ver a partir da operação real do governo, que não vai ser uma mera repetição do que foi o que Lula fez lá atrás. A meu ver, a proposta está clara: a questão fiscal vai ser considerada importante, vai ser mantida, mas em outro quadro.
Elder Dias – O sr. acha que o compromisso do governo Lula com essa agenda social, privilegiando o Bolsa Família, a Farmácia Popular e outros programas sociais pode afetar as contas de modo a justificar, de alguma forma esse pânico? Existe alguma preocupação além do que o sr. já externou? Esse mercado leva a sério essa de que o governo Lula pode ser irresponsável em relação às contas?
A discussão no mundo inteiro hoje foi impulsionada pela pandemia. A crise sanitária gerou um aumento brutal da desigualdade e a volta da pobreza em países de primeiro mundo, como os Estados Unidos. Esse debate já foi liderado pelo Brasil lá atrás, com o próprio Bolsa Família. Fala da necessidade de se ter programas sociais de renda mínima para atender essa parcela muito vulnerável da população, para que tenha condições básicas de existência. É algo que hoje vem sendo aceito e feito no mundo inteiro. Não há dúvida nenhuma de que um país como o Brasil, em pleno século 21, com esse nível de pobreza extrema, é algo incompatível com o padrão que a economia nacional já alcançou. É até óbvia a necessidade de manutenção de programas sociais para combater isso, e em grande escala. Diferentemente de um programa desenvolvido com Lula e Dilma, que tinha um programa de transferência de renda que se articulava com toda uma política de inclusão produtiva – estimulando quem estava fora do mercado a produzir e se associando à estratégia de crescimento do poder de compra do salário mínimo –, o que tivemos agora foi uma medida eleitoreira que foi feita sem grande cuidado com quem foi beneficiado. Já houve várias denúncias de pessoas com renda alta, inclusive, que estão recebendo esse tipo de benefício. O controle e a articulação desse benefício com políticas que busquem efetivamente a inserção em médio prazo no mercado de trabalho – para garantir a essas pessoas as condições para deixar a necessidade do benefício – são fundamentais para garantir a saída do quadro de pobreza extrema. Sem esse conjunto de políticas, vai ocorrer o que já ocorreu anteriormente: no momento em que houve uma mudança de governo, em que houve uma priorização da questão fiscal, da retração dos gastos, a pobreza voltou a crescer, porque a inflação comeu o valor dos benefícios.
A manutenção do programa [Auxílio Brasil, que vai voltar a se chamar Bolsa Família] é essencial. Tem um custo grande, sim, mas que está precificado e já amplamente aceito como um custo necessário para que o País mude o quadro social que temos e passe a ter um crescimento mais inclusivo. Na verdade, essa discussão vem desde a Constituição de 88, com o fim do regime militar, a qual trouxe uma série de direitos sociais que, para o País ser capaz de atendê-los, levou a um aumento da participação dos gastos sociais no PIB. Há um crescimento expressivo nesses gastos desde 1988, mesmo antes de o PT ser governo. À medida que o País retomou seu crescimento, esses gastos deixam de ser um problema. Como eu disse aqui, se compararmos a outras economias de países desenvolvidos, o gasto público do Brasil hoje em relação ao PIB é relativamente baixo. Temos até espaço para mais, nesse aspecto, desde que isso ocorra dentro de um programa de desenvolvimento em que o País cresça, aumente sua competitividade e melhore seu quadro social.
Marcos Aurélio Silva – O economista Paul Krugman, vencedor do prêmio Nobel de Economia em 2008, disse que, em um cenário de desaceleração da economia global, o Brasil seria um dos emergentes mais bem posicionados para atravessar o período. O sr. concorda?
Krugman estava falando daquele momento em que o Brasil estava chamando a atenção de todo o mundo. Saímos na capa do “The Economist” [publicação britânica considerada referência mundial em economia] como o país que estava saindo da pobreza e se tornando uma referência no quadro internacional. Esse processo foi abortado exatamente por um projeto político que tinha um discurso contrário a tudo aquilo que estava em andamento, negando que o que estava ocorrendo fosse insustentável e pregando uma política econômica recessiva, conservadora, arquiliberal. Isso acabou interrompendo a trajetória em que o Brasil seguia. De fato, entre as economias chamadas emergentes, nosso País tem um grande potencial, até por nossas dimensões.
Temos agora um quadro complicador que é a guerra da Ucrânia, que chega em um momento em que as nações se preparavam para planos ousados de investimentos, puxados em grande parte por conta da economia verde. Esse conflito vai atrasar um pouco as possibilidades de investimentos mais robustos no Brasil no curto prazo. Mas, de qualquer forma, isso também é algo que tem prazo, é inviável que continue assim por muito mais tempo. A partir de então, com o potencial que está aí, a questão é ter políticas adequadas para que sejamos capazes de transformar esse potencial em ganhos reais.
Na vida real, o mundo político já absorveu o resultado eleitoral
Elder Dias – Entre os temores que se têm neste pós-eleição, existe um quadro pintado por parte da oposição que traça o “fim do mundo” para o Brasil com o novo governo Lula: economicamente, vamos virar a Venezuela, vamos comer todos os cachorros para matar a fome e outras coisas assim. De fato, o que o Brasil precisaria fazer – no caso, de tão errado – para virar uma Venezuela?
(risos) Eu diria que, se ouvíssemos o desejo de parte dessas pessoas que estão na rua e houvesse uma nova ditadura militar no Brasil, talvez pudéssemos – pelo menos no ponto de vista político, da ausência de liberdade – nos aproximar da Venezuela, de Cuba ou regimes parecidos. Porque o que de fato estão pedindo na porta dos quartéis, como uma “intervenção”, é a falta de liberdade, o fim da democracia. Eu brinco muito com meus alunos e, assim que terminaram as eleições, na primeira aula que tive, disse a eles: “Parece que, finalmente, agora a Terra volta a ser redonda”. É impressionante como se criou essa crença em um universo paralelo que não tem qualquer conexão com a realidade. Infelizmente, mesmo após as eleições, ao acompanhar os grupos mais radicais, percebe-se que eles acreditam ainda que Lula não vai assumir, que virá um golpe que ocorrerá a qualquer momento, que existe uma carta guardada na manga de alguém e basta continuar firme com as manifestações.
Enquanto continuam aumentando essa aposta, quem acompanha a vida real vê que o mundo político já absorveu o resultado eleitoral, já estamos com o governo de transição avançando e que esse desejo antidemocrático não tem mais nenhuma ligação com a discussão prática. Já com esse mundo paralelo, doentio, não há como discutir e que, por incrível que pareça, se mantém até hoje nos Estados Unidos, mesmo com mais de dois anos após o resultado das urnas. Por aqui, felizmente, vejo que a tendência é de que isso vá se reduzindo a um grupo cada vez menor, voltando para dentro da Kombi onde cabe esse tipo de visão.
Por outro lado, é preciso agir para apaziguar o País. Creio que todos temos o dever de trabalhar nesse sentido. Estou muito convencido de que, olhando para os dados da crise que o Brasil viveu nos últimos anos, além do componente econômico, também um componente político muito forte. A ausência de um consenso mínimo, com essa polarização extrema, isso tudo dificulta a operação normal do Estado, das instituições, da economia. Neste momento, existe um certo consenso para a recuperação de uma certa paz institucional, com um governo de frente ampla, de diversas posições – alguns mais liberais, outros mais desenvolvimentistas –, onde há a discussão de novas regras críveis. Mas regras, também, que sejam mais flexíveis e anticíclicas – por exemplo, que tenha um gatilho que permita uma liberalidade maior com um crescimento abaixo de certo índice –, uma regra que separe o que é investimento público do que é gasto de custeio. Às vezes, se cortar no custeio, pelas regras atuais, acaba-se deixando de investir. E um país como o nosso não pode deixar de investir, sobretudo em um momento como este, para garantir que venham recursos externos.
Investimento em infraestrutura social não pode ser tratado como gasto
Marcos Aurélio Silva – O sr. é doutor em Economia pela Unicamp [Universidade Estadual de Campinas] e foi secretário de Desenvolvimento Regional do governo Dilma Rousseff. É uma das maiores referências de sua área em nosso Estado. De qual pesquisa tem se ocupado no momento?
Participo de um grupo que deve lançar, agora no início de dezembro, um livro [Saúde é desenvolvimento: o complexo econômico-industrial da saúde como opção estratégica nacional, que será lançado em 7 de dezembro, na sede da Fiocruz, no Rio] com o que pensam cerca de 40 pesquisadores, liderados por Fiocruz [Fundação Oswaldo Cruz], a Unicamp e a UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro], que estão discutindo sobre o papel do chamado “complexo econômico-industrial da saúde”. Há uma discussão global, a partir da pandemia e de suas consequências, sobre esse tema. Isso vai acontecer também no Brasil. O papel que os gastos no próprio SUS e na economia em torno do SUS – indústrias farmacêutica, de equipamentos, de softwares etc. –, isso tudo tem um potencial econômico enorme. Um dos capítulos do livro apresenta o estudo de um economista da Unicamp sobre como ocorre o multiplicador macroeconômico da saúde, como cada centavo investido no setor multiplica o PIB. A CNI [Confederação Nacional da Indústria] soltou um estudo, grande também, mostrando os investimentos em saneamento, em que se revela como pode contribuir para o PIB, que pode chegar a um crescimento potencial de 16%.
Então, temos de considerar que os investimentos em áreas assim, de infraestrutura social, não podem ser tratados como gasto, mas como o que são: investimentos. Em outro capítulo do livro – inclusive que tem como uma das autoras Esther Duek [economista e professora da UFRJ], que está na equipe de transição de Lula – se discute que é preciso entrar fundo no estudo técnico, observando os gastos com a saúde, separando o que é custeio associado à garantia dos investimentos, para evitar “elefantes brancos” espalhados pelo País, o que infelizmente ainda acontece muito.
Não vejo também a imprensa cobrar a qualidade dos gastos do Brasil. Como secretário nacional de Desenvolvimento Regional, fui responsável pela política do setor e pela aplicação de um orçamento de mais de R$ 3 bilhões. É extremamente difícil gastar, grande parte dos ministérios não consegue dar encaminhamento ao dinheiro que recebe, por causa da burocracia. E muito de tudo isso é gasto de forma ruim. Não podemos ter o fiscal pelo fiscal, cortar gastos de qualquer jeito, não vamos resolver nada assim. Por outro lado, precisamos retomar o crescimento gastando o que precisa, isto é, gastando bem.
O que o mercado espera não é o mesmo que Lula deseja
Marcos Aurélio Silva – Em sua opinião, qual linha deve ser seguida para a composição ministerial do setor econômico de Lula? É preciso agir para que haja uma pacificação também com o mercado?
Não se pode confundir uma eventual pacificação com uma continuidade, no governo Lula, da política arquiliberal que vinha sendo feita. Porque é uma pressão para isso que estão fazendo setores do mercado. Querem, por exemplo, um ministro da Fazenda totalmente alinhando com a ideia de teto de gastos como está e então fica tudo bem. Isso não haverá e não é assim que se resolve a questão. Mas, obviamente, haverá nomes respeitados, cada um em sua área, além de uma política clara para a economia. Existe um certo exagero na cobrança agora, quando os grupos mal se reuniram. Cobram “cadê o nome?”, “cadê a política?”. Não, isso precisa ser construído, não só como uma política do PT, mas desse conjunto de forças que se uniu para a eleição. Isso deve encaminhar o que se chama de “pacificação”, vai ser importante. Só que não vejo que isso virá em curto prazo, porque o quadro está muito acirrado e haverá reação sobre qualquer nome que se não seja exatamente o que o mercado espera – e o que o mercado espera não é o mesmo que Lula deseja.