“Se João de Deus não está preso, quem é que vai pagar por algum crime no Brasil?”

12 dezembro 2021 às 00h00

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Três anos após o pedido de prisão do médium João Teixeira de Faria, o promotor que liderou a força-tarefa avalia os avanços e revezes do caso que ainda choca o Brasil
Elder Dias e Marcos Aurélio Silva
No dia 16 de dezembro de 2018 completam três anos que o médium João Teixeira de Faria, conhecido como João de Deus, se entregou à polícia. Neste período, as primeiras dezenas de vítimas de abusos sexuais se tornaram mais de três centenas. As condenações já acumulam mais de 100 anos – embora apenas quatro processos tenham sido julgados pelo judiciário, e ainda faltam mais de dez para ir a julgamento. Mesmo com tantas denúncias, relatos e condenações, o médium cumpre sua pena em casa.
O promotor Luciano Miranda foi quem chefiou a força-tarefa que reuniu relatos das mais de 300 vítimas de crimes sexuais, apreendeu documentos que comprovam falsidade ideológica, corrupção e coação de testemunhas, além de encontrar armas de fogo sem autorização para posse em residências de João de Deus. Os crimes foram estão em processos separados. São 15 ao todo. O Ministério Público de Goiás (MP-GO) considera que as investigações foram sólidas e possuem elementos para garantir todas as condenações contra o médium. Entretanto, a prisão domiciliar é vista como uma injustiça para as vítimas.
Em entrevista ao Jornal Opção, Luciano Miranda aponta quais avanços legislativos e de políticas públicas foram possíveis a partir do caso João de Deus. Ele também fala sobre como a atuação da força-tarefa permitiu que outros crimes fossem elucidados e como a imprensa teve um papel fundamental ao dar voz às vítimas de abusos sexuais cometidos pelo líder religioso.
Marcos Aurélio Silva – O primeiro pedido de prisão contra João Teixeira de Faria, o João de Deus, foi em dezembro de 2018. De lá até aqui, houve idas e vindas dele para o presídio, mas atualmente ele se encontra em casa. Houve grandes mudanças que permitam esse novo entendimento da justiça?
Todas as circunstâncias que autorizaram a prisão naquele momento, elas se manteriam até hoje. Nós não enxergamos nenhum motivo razoável para que o João Teixeira hoje se encontre cumprindo pena de forma domiciliar. Isso porque, quando foi feita a perícia médica – para apurar condições físicas e condições psicológicas para cumprir a pena de cárcere – o laudo emitido pelo Tribunal de Justiça dizia que ele tinha plena condição de cumprir pena encarcerado. Por conta disso, a gente não vê nada que autorize essa mudança de paradigma para que ele possa estar em domicílio.
Marcos Aurélio Silva – O senhor percebe que o sentimento das vítimas dele é de que no fim o poder econômico dele prevaleceu e que enquanto as mulheres que foram abusadas sofrem com seus traumas, ele segue usufruindo de uma vida quase que normal?
Enquanto o João Teixeira pode gozar e aproveitar de todo o dinheiro amealhado durante todos esses anos atuando como curador, como ele é conhecido em Abadiânia, as vítimas seguem convivendo com os traumas. Algumas possuem traumas que saíram da esfera puramente psicológica, e já refletem fisicamente. Temos casos de vítimas que têm dificuldade de ter relacionamentos, outras possuem problemas digestivos, tem as que não conseguem sair de um quadro de obesidade.
Além do trauma psicológico, todo esse trauma físico também é carregado por essas vítimas. Notamos, em nossas conversas, que são questões que já perduram por 10 ou 20 anos.
Essa prisão domiciliar não tira completamente a confiança que as vítimas depositaram no poder judiciário e no Ministério Público, mas certamente abalou. Temos contatos diretamente com as vítimas, e é difícil explicar juridicamente e faticamente como que um indivíduo condenado a mais de 100 anos de prisão por crimes hediondos, tem o direito de cumprir pena em regime domiciliar.
Marcos Aurélio Silva – Há poucas semanas houve mais uma condenação contra João de Deus. O senhor tem acompanhado essas decisões da justiça? Há mais julgamentos por vir?
Há várias outras denúncias que estão sendo objeto de análise pelo poder judiciário e que podem ensejar novas condenações. São cerca de 15 denúncias envolvendo crimes sexuais. Até o momento, apenas quatro delas foram objeto de julgamento.
Elder Dias – A situação do João de Deus, de hoje poder cumprir a pena em regime domiciliar, se deve ao fato dele poder ter bons advogados e está relacionado ao seu poder financeiro? Outra pessoa, na situação dele, com o poder e dinheiro que ele tem, estaria cumprindo pena em casa?
Não tem como negar que quem possui mais recursos financeiros, por bem ou por mal tem o melhor acesso ao poder judiciário. Consegue se valer melhor das nuances da legislação. Eu acho que seria prematuro que por conta do poder exercido pelo João Teixeira e o poderio econômico que ele possui, é a razão dele estar em regime domiciliar.
“Sempre há dúvida sobre a palavra da vítima de crime sexual”
Acredito que o que foi considerado pelo judiciário foi a saúde de João Teixeira. Esse foi o tema central. Por ser essa a razão, e por haver um laudo de uma junta médica dizendo que ele tem condições de cumprir a pena, é que existe a nossa insatisfação com a decisão.
Marcos Aurélio Silva – Qual é o número final de vítimas de João de Deus? Ou essa contagem ainda segue crescendo?
Posso dizer que entre as vítimas que formalizaram e que de alguma forma procuraram as autoridades, são mais de 300.
Marcos Aurélio Silva – Entre essas três centenas de vítimas, qual foi o relato que mais lhe chocou?
Não foi apenas um. Houve várias oportunidades e situações em que, mesmo sendo promotor que lida com direito criminal há mais de uma década, me provocaram sentimentos. A gente morre um pouquinho ao escutar determinados depoimentos. Por exemplo, cito o caso de uma senhora que possuía câncer. Ela estava em tratamento, já em fase de regressão, e na ocasião ela foi abusada. Depois de ocorrerem os abusos o câncer voltou a ganhar força. Isso mostra como esse é um crime que abala uma pessoa e como é capaz de destruir uma vida, não só no campo social, mas em termos biológicos. Isso me chamou muito a atenção.
Outro caso que me chamou muito a atenção foi o relato de uma adolescente que foi abusada enquanto estava em uma cadeira de rodas. Ela tinha parte do corpo paralisado e mesmo assim era abusada pelo João Teixeira. Já se passaram alguns anos deste abuso e ela relatando com a vivacidade de que se percebia que ela estava vivenciando aquela situação novamente e sofrendo tudo de novo ao narrar para gente. Isso, querendo ou não, me emocionou bastante.
Marcos Aurélio Silva – Quando o Ministério Público fez o primeiro pedido de prisão de João de Deus, o senhor imaginava que nos dias seguintes tomaria a proporção que se tomou, com relatos surpreendentes e chegando a mais de 300 vítimas?
Jamais. Não se tinha conhecimento de algo dessa envergadura. Ninguém dentro do Ministério Público tinha noção dessa dimensão. Até mesmo porque não conheço relatos de casos que tenham mais de 300 vítimas por crimes praticados no decorrer de quase 40 anos. Então, era impossível a gente ter a noção da envergadura deste caso.
Marcos Aurélio Silva – O caso João de Deus ganhou grande espaço na mídia. Foram inúmeras reportagens, documentário e livro. O senhor consegue ver algum legado jurídico deste processo que o senhor foi o coordenador da força tarefa?
Tenho certeza disso. O caso João de Deus foi emblemático, pois mostra a ruptura do silêncio. Mostra como o encorajamento da vítima pode levar, reforçar e trazer uma reação de apoio em cadeia. Reforça a confiança de outras vítimas na justiça.
Quando uma vítima quebra a corrente e conta o que aconteceu, ela deposita confiança na justiça e, além disso, ela encoraja outras. No caso do João Teixeira ficou claro isso. Vimos que essa era uma reação se repetir em casos atuais.
É preciso ficar claro que existe um receio da vítima em serem descredibilizada e de terem o depoimento ridicularizado. Inclusive teve uma lei muito recente, Lei Mariana Ferrer, que ampara a vítima de abuso sexual ao prestar depoimento, de não ser ridicularizada e não trazer para um debate jurídico questões atindentes a intimidade da vítima – como foi levado no ínicio deste caso envolvendo João de Deus.
Para mim, fora da repercussão criminal, o amparo e a voz dada à vítima por meio da imprensa foi importante neste caso. Tenho certeza de que influenciou outros casos e situações que se seguiram ao João de Deus, a também encorajar as vítimas a procurar a polícia, o Ministério Público e também a imprensa.
A imprensa teve um papel fundamental, pois articulou e foi instrumento de voz para as vítimas. Embora muitos critiquem o papel da imprensa, eu vejo que neste caso a imprensa fez participou a todo momento do caso João de Deus, por ser o veículo que deu voz às vítimas desde o primeiro momento.
Elder Dias – A gente consegue entender que é difícil lutar contra o abuso vindo de alguém que é mais forte, seja no gênero, seja na relação de poder – um líder religioso ou um médico famoso por exemplo. Existe na lei algum fator para que trate como um agravante o abuso vindo de alguém que exerce algum poder sobre a vítima?
Esse questionamento é muito bom, porque no ano passado fomos procurados por alguns deputados e pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. A ideia era que a gente fizesse algumas sugestões legislativas com base na experiência que tivemos com o caso do João de Deus. Um dos pontos que sugerimos foi justamente a previsão de uma causa de aumento de pena para crimes assim.
Quando olhamos para o Artigo 26 do Código Penal, se percebe que tem várias situações que autorizam aumento na pena, como: quando o estupro é prática pelo pai ou quando é feito de forma coletiva. Mas não existe um aumento especifico quando o estupro é praticado por uma autoridade religiosa. Essa é uma das sugestões que fizemos. Sei que esse projeto tramita no Congresso Nacional, mas até o momento não foi objeto de votação.
Elder Dias – O senhor tem uma ideia de como foi a repercussão do caso João de Deus, diante de outros líderes religiosos?
Eu posso dizer pelo que vi na imprensa. Soubemos de casos semelhantes de indivíduos que se valiam da religião para cometer abusos de natureza sexual. O que a gente vê é que o modus operandi é muito similar. Se seleciona as vítimas, em regra são as que estão em situação de vulnerabilidade. Quando elas mais precisam de um amparo ou apoio, é neste momento que elas são abusadas sexualmente.
Pelo que pude acompanhar, e não posso falar tecnicamente sobre outros casos que não atuei, eu vi o modus operandi semelhante em todos eles.
Elder Dias – De 2018 até agora, o senhor notou um maior número de registros de crimes envolvendo autoridades religiosas?
Isso nos chamou bastante atenção. Eu acredito que o caso João Teixeira tenha dado visibilidade para essa questão em que o indivíduo se valendo da fé pratique o abuso sexual. Foi um vetor para trazer visibilidade para esses casos. Isso acabou trazendo esse tema para o debate público. Quando isso ocorreu, quando as vítimas vieram a público, foi atraindo outras e foi desencadeando. Um caso foi puxando o outro.
Como o abuso e o modus operandi é muito semelhante, a vítima de um caso se enxerga no crime de outra. Isso é comum em casos que há abuso da fé, e não só sexualidade, pois muitas das vítimas sequer sabem que foram abusadas sexualmente. Quando ela vê outro caso, cometido até por outro abusador, traz à tona um novo escândalo.
A grande importância do caso João de Deus foi dar voz a vítimas e fazer com que esse abuso fosse identificado pelas outras. Isso fez com que surgissem diversos casos. Isso não quer dizer que os abusos não ocorriam antes. Isso quer dizer que agora esses abusos estão vindo a público.
Marcos Aurélio Silva – O senhor de alguma forma observa que o caso João de Deus tem reflexo preventivo em relação a outros abusadores que porventura se valem do poder religioso para fazer vítimas sexuais?
Certamente. Quando o direito penal e a justiça atuam é fator de intimidação para o criminoso. Por isso que sempre requeremos junto ao poder judiciário uma dureza maior para o caso João Teixeira. Isso em razão de ser um caso que gera repercussões em outras situações e também envolve a credibilidade do judiciário e da justiça como um todo.
“João Teixeira tinha noção do poder que exercia e valia-se dele para praticar os abusos”
Estamos falando de um indivíduo que é acusado de abusar de centenas de vítimas. Se João de Deus não está preso, quem é que vai pagar por algum crime no Brasil?
É um caso emblemático.
Elder Dias – O senhor chegou a ver o documentário que é exibido no Globo Play?
Sim. Vejo que todo o trabalho da mídia sobre o caso foi muito bem direcionado. Não tenho nenhum reparo ou observação. Ressalto que esse caso teve o sucesso que teve, em termos de condenação e encorajamento das vítimas, porque a imprensa divulgou, mostrou as vítimas e seus relatos.
Todas as vezes que qualquer matéria sobre o João Teixeira é veiculada, é comum que outras vítimas surjam. Isso porque naquele momento ela passou pelo processo interno e resolveu quebrar o silêncio. Gosto de ressaltar que a mídia é importante nestes casos que envolve abuso sexual.
Marcos Aurélio Silva – Uma situação muito característica que envolve João de Deus é a tentativa de criar ao seu redor um sistema de influência e defesa. O senhor percebeu que ele criava situações em público, demonstrando intimidade com celebridades e políticos, para se sentir seguro quando estava com suas vítimas em uma sala com as portas se fechadas?
Certamente. Todo esse poder que ele exalava e as influências que ele tinha em todas esferas está comprovado que era utilizado para coagir as vítimas. A frase era sempre essa: você viu quem estava na fila para ser atendido por mim? Viu quem frequenta minha casa? Em quem você acha que eles vão acreditar, em mim ou em você? João Teixeira tinha noção do poder que exercia e valia-se dele para praticar os abusos.
Marcos Aurélio Silva – João Teixeira nem sempre foi médium. Ele tem um histórico pregresso, como garimpeiro, por exemplo. Vocês notaram que, mesmo antes dele ser o João de Deus, ele já tinha esse perfil de abusador?
O que a gente recebeu de informação mostra um conteúdo substancial de que esses abusos ocorreram por quase 40 anos. Eu falo que é um conteúdo sólido porque o relato dessas vítimas que ouvimos durante todo esse período, ele consegue acompanhar a evolução da idade do João Teixeira.
Os abusos, e a forma como João Teixeira os praticava, varia conforme a idade dele. As primeiras notícias que tivemos, das primeiras mulheres abusadas na década de 70, há informações de penetração. Já os abusos mais recentes, a partir de 2010, não contava com penetração – isso porque ele já tinha uma idade avançada. Nestes últimos casos os relatos são de manipulação do órgão genital e toques na vítima. Isso fica muito bem delineado nos depoimentos das mais de 300 vítimas.
Posso dizer com muita tranquilidade que esses abusos não surgiram agora. Eles permeiam toda a trajetória do João Teixeira em Abadiânia.
Elder Dias – Muitas vítimas do João de Deus, mesmo com toda exposição e sentenças, ainda acreditam que ele tem algum poder espiritual e o temem. Dá pra estimar quantas vítimas poderiam ser no decorrer destes quase 40 anos que ele cometeu abusos?
Muitas vítimas têm medo dele. Não como João Teixeira. Mas medo da figura espiritual dele.
Sobre a estimativa, é impossível. Creio que seja um número muito maior. Vou dar um exemplo. As vítimas se culpam e se sentem envergonhadas. O processo de quebra de silêncio é desgastante para a vítima. Tem algumas situações em que arrolamos a vítima para ser ouvida na justiça, e elas não contaram aos familiares, nem mesmo para o marido. Isso porque elas se culpam e sentem vergonha. Para que a intimações ocorram, elas nos pedem para não mandar oficial de justiça até a casa delas, para que a família não saiba. A comunicação é feita por telefone e mensagem.
Dou esse exemplo para que entendam como algumas das vítimas até hoje carregam o sentimento de culpa e vergonha. E a sociedade e até o poder judiciário julga a vítima. Quantas vezes eu ouvi a indagação: se foi estuprada porque voltou?
É como se quem estivesse no banco dos réus fosse a vítima. A lei Mariana Ferrer diminuiu um pouco disso, mas não acabou.
Infelizmente o nosso processo exige que a vítima seja ouvida por uma, duas, várias vezes. Ela precisa repetir a mesma história incansavelmente. E isso ela está vivenciando todo o abuso novamente. Essa revitimização fica mais chocante quando a gente vê a falta de amparo que o poder público dá para essas vítimas.
Quando lidamos com centenas de vítimas vimos como o processo no Brasil, em relação a crimes sexuais, gera inversão de valores. Sempre há dúvida sobre a palavra da vítima de crime sexual. Obriga que a mesma história seja relatada uma vez para o delegado, outra para o promotor, para o assistente social, para o juiz, e ainda tem que responder às perguntas dos advogados. É assim. Sempre a vítima tendo que dar satisfação e provar que foi abusada. Essa foi uma lição que aprendemos.
Uma das sugestões legislativas que fizemos foi de que está na hora de repensar o processo penal em crimes de natureza sexual. Não vejo razão para ter que ouvir a vítima tantas vezes. Isso é algo já contestado em depoimento de crianças. É algo que se pode fazer com um depoimento antecipado e especializado, em que se permite o contraditório e que a defesa faça perguntas por escrito, e que tudo isso seja feito por um profissional como um psicólogo – tudo isso para não gerar revitimização.
Já fui questionado por advogados que dizem que isso acabaria com o processo e que não haveria contraditório. Mas quando eu falo da vítima ser ouvida uma vez, não estou dizendo que a defesa não vai participar. Vai sim, fazendo perguntas. Tudo ocorre normalmente. Mas defendemos que isso ocorra apenas uma vez.
Em regra geral se fala que a prova produzida durante o inquérito ela tem que ser convalidada no curso da instrução, que conta com o juiz. Por isso aquilo que a vítima fala na fase policial ela tem que replicar na fase judicial. O que estamos propondo é que as vítimas falem uma única vez na fase judicial.
Marco Aurélio Silva – No decorrer destes processos, em algum momento o senhor esteve frente a frente com o João de Deus? Qual foi seu sentimento, após ter ouvido tantos relatos de vítimas?
Várias vezes estive com João Teixeira. Sou profissional. Felizmente ou infelizmente eu já atuei na área criminal há mais de uma década. Como promotor de justiça não posso perseguir quem quer que seja. Não posso fazer juízo de valor de quem quer que seja. Trato João Teixeira como eu trato os demais réus.
Marcos Aurélio Silva – No decorrer desta entrevista o senhor citou algumas mudanças na legislação e outras que ainda são propostas. Na sua opinião, quando se trata de crimes sexuais, ainda há muito que avançar? Quais as principais barreiras?
Acredito que as propostas legislativas mitigariam bastante o problema da revitimização. Outra sugestão que acho importante neste caso e que acabou gerando uma sensação de impunidade e injustiça, é a prescrição.
João Teixeira só pode ser condenado pelos crimes praticados nos últimos 10 anos. Os crimes anteriores não foram objetos de apreciação pelo poder judiciário. Isso em razão da lei que entende que o termo prescricional máximo é de 20 anos. Mas no caso dele foram apenas 10 anos, porque a lei diz que quando o indivíduo possui mais de 70 anos na data da sentença, o prazo prescricional cai pela metade. Então, no caso do João Teixeira é de 10 anos.
Tudo que está sendo objeto de condenação foi pelo que João Teixeira praticou nos últimos 10 anos. Os outros 30 anos vão cair na esfera da impunidade. É isso que também questionamos junto ao Congresso Nacional. Não há razão para isso. Essa legislação é de quando o Código Penal nasceu, em 1940. Estamos em 2021. Não podemos aplicar legislação da década de 40 em 2020. Isso gera o sentimento de injustiça.
Marcos Aurélio Silva – O senhor acha que o Ministério Público, a polícia e o poder público como um todo, oferecem os melhores canais para que vítimas de abusos sexuais possam denunciar?
A todo momento no caso do João Teixeira, o que a gente quis foi trazer as vítimas para o Ministério Público. A gente chegou a fazer uma interlocução nacional com todos MP’s do Brasil. Como sabíamos que havia vítimas no país inteiro, entremos em contato com todos os MP’s.
“Está na hora de repensar o processo penal em crimes de natureza sexual”
Não temos nenhuma vítima que mora em Abadiânia. A maioria das vítimas são de fora do Estado. Eu iria obrigar elas a virem a Goiânia, Abadiânia ou Goianésia para prestar depoimento? De forma alguma.
A interlocução com o MP foi importante porque conseguimos divulgar junto a imprensa para que a vítima procurasse o promotor de justiça da sua localidade. Então isso facilitou muito o nosso trabalho. Já que os relatos feitos em outros estados eram encaminhados para a força tarefa. O MP aprendeu muito com isso, por exemplo, a fazer a mobilização nacional e criar mecanismos para acolher a vítima.
Em Goiânia as vítimas que tínhamos contato sempre contavam com o trabalho de atendimento psicológico. Antes de tratar do assunto do abuso, a vítima tinha uma conversa anterior com a psicóloga. Para se ter ideia de como isso foi uma escola que deixou aprendizados, esse método foi aplicado de novo no caso do ginecologista de Anápolis ( Nicodemos Júnior Estanislau Morais).
Ainda que o MP ainda tenha que passar mais essa mensagem para a sociedade, nos estamos trabalhando para que possamos acolher da forma adequada a vítima, em especial, as de crimes sexuais.