Rodrigo Kiko Afonso: “A fome tem cor, tem gênero e tem CEP”
11 setembro 2022 às 00h00
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O País vivia ainda a aurora da redemocratização quando, em 1993, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, pôs o angustiante tema em pauta: quem tem fome tem pressa. Surgia ali a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, uma entidade que mobilizaria toda a sociedade e mudaria totalmente o cenário do combate à insegurança alimentar.
Betinho era hemofílico e havia contraído o vírus HIV em uma transfusão, o que não o impediu de liderar esse processo. Morreu em 1997, vendo o projeto em expansão, mas sem presenciar o “troféu” maior: a retirada do Brasil do mapa da fome da Organização das Nações Unidas, em 2014. A condição, infelizmente, durou pouco.
Hoje, o diretor-executivo da ONG fundada por Betinho é Rodrigo Kiko Afonso, que traz más notícias: o País está de volta ao mapa da fome e, pior, nunca antes em sua história teve tanta gente em situação de insegurança alimentar moderada e grave: os que não completam todas as refeições necessárias no dia e os que acordam sem ter nada em casa e precisam sair à rua para batalhar o que comer.
Em entrevista ao Jornal Opção, Kiko condena a priorização ao agronegócio em detrimento dos pequenos produtores, diz que a fome assola mais as casas das mulheres negras chefes de família – especialmente no Norte e no Nordeste – e é taxativo: “Temos de parar, de uma vez por todas, de duvidar desta desigualdade sombria que o País vive.”
Esta pauta nasceu pelo fato de a equipe do jornal entender que, apesar da atual situação que vivemos no País, o combate à fome não parece estar em primeiro plano nos programas dos candidatos nesta campanha eleitoral. Essa percepção também é sua?
Com toda a certeza. Como a gente viu no primeiro debate [entre os presidenciáveis, promovido pela Band no domingo, 28/8], esse tema foi pouquíssimo colocado pelos candidatos e, mesmo quando isso ocorreu, veio de uma forma lateral. A grande verdade é que esse é o maior problema que o País vive hoje. Temos o maior contingente de pessoas passando fome da história do Brasil. E isso não é um problema que se possa demorar a tratar, porque as pessoas estão morrendo de fome agora, não é uma ação que dê para esperar até as eleições ou por uma mudança de política de governo.
O que fica claro para mim é que a sociedade ainda não despertou para a gravidade da situação que temos, para essa urgência. Infelizmente, esta é a realidade: vivemos em um momento em que há um quantitativo maior de pessoas com fome do que quando a Ação da Cidadania foi fundada. Naquele ano de 1992, quando Betinho [o sociólogo Herbert de Souza] fez a convocação para socorrer os famintos, a sociedade inteira se mobilizou. Foram dezenas de milhões de voluntários – governos, políticos, empresas, igrejas, grupos de mídia etc. O presidente Itamar Franco convocou todos os ministros para decretar estado de emergência contra a fome. Era outra visão. Hoje, diante de tantos problemas por que o Brasil passa, infelizmente a fome fica como se fosse uma coisa secundária, como mais um problema que a gente pode resolver depois das eleições. Mas a realidade não pode ser dessa forma e é por isso que a gente, como sociedade civil, tem lutado todos os dias para conseguir doações, para continuar tentando distribuir alimentos enquanto a solução não vem.
A fome não causa mais a indignação de antigamente?
A sociedade normalizou a fome. Antes de tudo, muita gente não acredita nos números, acham que não são reais. O próprio presidente da República fala que não tem fome e é só ir à padaria e ver que não tem ninguém pedindo pão. A superficialidade com que esse tema tem sido tratado infelizmente leva essa parte da população a não acreditar que a gente está tendo esse problema. Outra coisa é que a gente tem vivido tantas tragédias nos últimos anos – a maior sendo a Covid-19, mas também questões econômicas, brigas políticas, impeachment etc. – que a sociedade parece estar um tanto anestesiada, a ponto de a fome virar só mais um problema diante de tudo que está acontecendo. As pessoas lamentam, mas não se mobilizam como antes. É, portanto, um misto de descrença nos números com uma anestesia da sociedade em relação à problemática, como algo sem solução. Não é isso, a fome tem solução, já chegamos muito perto dela, a gente sabe como e só precisa voltar a fazer.
Em produção de alimentos, infelizmente o Brasil é um player muito menor do que deveria ser
Como um país pode ser o maior produtor de proteínas e um dos maiores celeiros do mundo e, ao mesmo tempo, ter 33 milhões de pessoas sem a alimentação básica?
Primeiramente, é preciso esclarecer essa ideia de o Brasil ser o maior celeiro do mundo. Quando se fala isso ou algo parecido – “o Brasil alimenta o mundo”, “é o maior exportador de grãos” –, o ponto é o seguinte: o que se produz aqui são commodities. Ou seja, se produz cana de açúcar, soja, milho, que são os principais itens utilizados para alimentação animal e produção de ultraprocessados. São itens que são “commoditizados” no mundo inteiro, que são negociados no mercado internacional, no mercado futuro, onde o produtor consegue garantir preços mesmo em caso de crise. Ou seja, tem um mercado financeirizado em torno disso. É nesse mercado que o Brasil é um dos líderes mundiais, senão o maior líder em produção.
Na área de produção de alimentos – daqueles que consumimos no dia a dia, como arroz, feijão, legumes, frutas, verduras etc. –, o Brasil é um player muito menor do que deveria ser, infelizmente. Vou dar um exemplo claro: o Japão tem mais área plantada de frutas, legumes e verduras do que o Brasil. Creio que seja um dado que surpreende qualquer pessoa, já que o Japão é menor, creio eu, do que a maioria dos Estados brasileiros [nota: na verdade, o território japonês tem 377 mil km² e só é menor do que Amazonas, Pará, Mato Grosso, Minas Gerais e Bahia]. No fim, o que se tem no Brasil é um modelo de produção de alimentos que se esqueceu da segurança alimentar. A partir de 2016, o País muda sua visão e passa a reforçar políticas públicas para ajudar e apoiar esse grande produtor e exportador do agronegócio, em detrimento da produção do pequeno e médio produtor.
E por que ocorre isso?
Para o grande agronegócio exportador, o pequeno e o médio produtores muitas vezes é um problema, porque eles querem a terra dessas pessoas para poder aumentar sua área plantada de soja e outras commodities. O agronegócio quer comprar essas terras. Nesse sentido, os produtores menores são um empecilho. Então, quando em 2016 se muda o foco, se fez uma barreira para as políticas que apoiavam os pequenos produtores: houve redução drástica do financiamento, assim como do apoio técnico. Durante a pandemia, o auxílio emergencial não foi estendido à agricultura familiar. Muitos não conseguiram sobreviver, porque reduziu-se drasticamente, por parte do governo, a aquisição de alimentos em seus programas. Ou seja, os pequenos e médios produtores sofreram demais durante a pandemia. Muitos acabaram vendo seus negócios afundarem e tendo de vender suas terras para o agronegócio exportador ou passar a produzir para o agronegócio exportador. Não é à toa que, quando se olha o retrato dos últimos dez anos, a redução de área plantada do arroz e do feijão caiu 70%.
Quando se olha o preço dos alimentos hoje, as pessoas têm a tendência de achar que tudo subiu por causa da pandemia ou da guerra da Ucrânia. Não é verdade, isso é coisa de quem tem a memória curta, porque antes da guerra o arroz e o feijão já estavam em um preço absurdo, não tem nada a ver com isso. O que tem a ver, sim, é a mudança das políticas de segurança alimentar do Brasil, que passaram a focar exclusivamente na exportação. Isso é um problema, porque passamos a ter a falsa visão de que o agronegócio é, de fato, o maior motor da economia, mas não é.
A agricultura familiar emprega quase nove vezes mais do que o agronegócio exportador
É uma afirmação polêmica. Como o sr. justifica esse ponto de vista?
Vamos olhar para o agronegócio exportador – porque há o agronegócio do pequeno produtor, que trabalha para o mercado interno. Há dez anos, esse grande agronegócio de exportação emprega 1,4 milhão de pessoas. Ou seja, mesmo com todos os recordes de produção, com o aumento de vendas, subsídios adicionais e investimentos do governo, se mantém a mesma quantidade de gente emprega ao longo da última década. Por que isso? Porque o agronegócio, cada vez mais, foca na redução máxima dos custos. Então, ele se mecaniza, usa tecnologia para produzir muito mais por metro quadrado do que o agricultor familiar. Esse agronegócio exportador detém quase 60% da área plantada no Brasil. Os outros 40% ficam na mão do pequeno e do médio produtores. Ora, com essa área planta bem menor, esse conjunto emprega quase 11 milhões de pessoas – quase nove vezes mais do que o agronegócio exportador.
Além disso, o agro exportador tem todo tipo de subsidio. Por exemplo, não paga ICMS: basicamente, todos os produtos que utiliza – maquinário, fertilizantes, agrotóxicos etc. – são isentos ou praticamente isentos do imposto. Em São Paulo, para dar estrutura ao agronegócio, é preciso construir estradas, ampliar as rodovias, melhorar o escoamento, pensar na segurança, tudo isso para que o agronegócio floresça no Estado. Isso é um investimento do governo. Mas como o governo recupera esse investimento? Por meio de impostos, certo? Só que o ICMS não volta, o Estado não recebe isso de volta. Isso mesmo com a Lei Khandir – criada justamente para compensar a perda dos Estados em relação a esse subsídio ao agronegócio. O que se estima é que o governo federal deveria pagar algo em torno de R$ 32 bilhões por ano para ressarcir os cofres estaduais. Só que a União paga R$ 2 bilhões, quando paga. Portanto, há um buraco, um déficit gigantesco para os Estados.
É um erro, então, investir tanto no agronegócio?
Como já disse, o agronegócio exportador não gera emprego da maneira que deveria gerar. Todos os outros segmentos da economia – serviços, indústrias etc. – geram muito mais empregos e pagam muito mais impostos do que o agronegócio exportador. Para ter ideia, com um pequeno exemplo, a área de serviços advocatícios e de contabilidade paga muito mais imposto do que o agronegócio exportador. Mas, continuando: esse agro tem isenção de ICMS, isenção de imposto de exportação, produção de commodities para quem paga mais – ou seja, para fora, porque quem paga mais não é o brasileiro. Basicamente tudo que produz é exportado. E o agronegócio exportador brasileiro está na mão de grandes grupos internacionais, não mais do empresário brasileiro. O dinheiro acaba revertido para eles, não fica no Brasil.
Para concluir, algo ainda mais absurdo e que acabei de ter a informação: o governo dá uma subvenção a esse agronegócio, uma espécie de seguro para a produção rural. Se o produtor planta, ele pode contratar um seguro, o qual tem uma subvenção enorme e, se por acaso houver uma quebra de safra por geada ou falta de chuva, o governo paga o seguro para esse produtor não ficar no prejuízo. Ocorre que, observando as planilhas desse seguro, percebe-se que 99% são para soja, milho e cana. Ou seja, quem está acessando esse seguro é apenas o exportador de commodities. Só no primeiro semestre deste ano, sabe quanto o governo federal pagou de subvenção para o agronegócio exportador? Foram R$ 7,7 bilhões para seguro-agricultura visando exportação de soja, milho e cana de açúcar. Isso sem contar o plano safra de R$ 195 bilhões. Enquanto isso, o Pronaf [Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar] nos primeiros meses do ano, estava congelado, e com um valor muito menor.
Tudo isso para dizer: o agronegócio não é o motor da economia brasileira, não gera emprego, não gera imposto e, de certa forma, existe basicamente, no sentido de importância para o Brasil, para garantir a balança comercial positiva. Entenda, não somos críticos à existência do agronegócio, precisa existir, como qualquer outro negócio. A questão é: por que gastar centenas e centenas de bilhões de reais para um negócio que gera tão pouco para o Brasil, enquanto há outros que, como a própria agricultura familiar, que poderia gerar muito mais para a gente, em termos de mais empregos, mais receita de imposto, menos carestia, melhor divisão dos lucros e com eles distribuídos dentro do País? Não faz muito mais sentido investir em quem a gente precisa do que em quem está basicamente gerando lucro e enviando para fora?
Infelizmente, a lógica do agronegócio conseguiu se instalar no governo como um projeto de país, como se a gente precisasse valorizar esse modelo como se isso fosse tudo, como se fosse a coisa mais importante, aquela que alimenta o mundo. Não, ninguém come esse milho nem essa soja diretamente: ou vira ultraprocessados ou vira alimentação animal. Enquanto isso, quem produz 70% do que a gente consome – o pequeno e o médio produtor – não tem praticamente nenhum apoio.
Pode-se dizer que quem tem insegurança alimentar também passa fome?
Temos quatro níveis nesse sentido. O primeiro é a segurança alimentar propriamente dita, em que a pessoa tem uma nutrição correta, saudável. Já a insegurança alimentar se divide nos três outros níveis: o primeiro é a insegurança alimentar leve, em que não há uma restrição alimentar ainda, no sentido de que não falta alimento, mas já há uma redução da qualidade, substituindo uma proteína animal melhor por uma de menor qualidade, ou reduzir frutas, legumes e verduras. De certa forma, essa família já está com uma fome de nutrientes, porque não há uma alimentação correta no sentido nutritivo. Mas, no caso, é uma “fome” de longo prazo, mas que vai afetá-la lá na frente, com problemas de crescimento, obesidade, índices gerais de saúde. Quem está em insegurança alimentar leve também está preocupada em não ter capacidade de comer todas as refeições do dia nas semanas seguintes. Ou seja, já restringe o tipo de alimento e a preocupação com a quantidade das refeições no curto prazo.
Já na insegurança alimentar moderada, a família de alguma forma já tem de abrir mão de alguma refeição: ou o pai deixa de comer para que o filho se alimente; ou não tomam o café da manhã para poder comer no almoço; ou, ainda, não comem proteína, apenas carboidratos. Nesse índice moderado já são 32 milhões de brasileiros.
No processo de insegurança alimentar grave, há a restrição alimentar severa: a família mal tem o que comer uma vez naquele dia. Então, as pessoas precisam correr atrás de alimentos todo dia, não há garantia alguma de ter o que comer. Nesse nível, são 33 milhões de brasileiros. Ou seja, quando estamos falando de restrição alimentar, temos algo em torno de 65 milhões de pessoas, entre insegurança alimentar moderada e grave.
Governo fez teatro por estar sentindo o impacto de ser acusado pelo quadro catastrófico da fome
Em agosto, o Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] divulgou documento contestando esse número de pessoas com insegurança, o que foi avalizado pelo governo. Como o sr. viu essa posição oficial?
Antes de tudo, é preciso dizer que não foi o Ipea a divulgar isso, mas o presidente do Ipea [Erik Alencar de Figueiredo] que fez isso absolutamente em contradição com todos os técnicos do instituto, que, inclusive, emitiram uma nota de repúdio e entraram com uma representação pelo que aconteceu. Não houve nada além de uma opinião dele em relação a dados que ele pegou e colocou em uma apresentação. Foi algo claramente político, nada que trouxesse dados concretos. Tanto foi assim que, em nenhum momento, o presidente do Ipea fala que o dado de 33 milhões de pessoas passando fome é falso. Se reparar no discurso dele, pode ver que ele toma todo o cuidado para desacreditar os dados da Rede Penssan [Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional] sem dizer que são falsos. Só diz que acha os dados muito estranhos, por não ter aumentado o número de internações ou questões que estariam historicamente ligados a consequências da fome. O que foi feito pelo governo foi um teatro, por estar sentindo o impacto de estar sendo acusado por esse quadro catastrófico em relação à fome e, em vez de agir para resolver, usa a tática de sempre de criar uma mentira para tentar desacreditar os dados.
5) Em entrevistas anteriores, o sr. declarou que o Brasil está em seu pior momento da história no combate à fome e que a população se acostumou ao que é chamado de “escalada da insegurança alimentar”. Quais são as referências para afirmar esses pontos?
Primeiramente, temos os números: são 125 milhões de brasileiros passando por insegurança alimentar. Isso é um dado único, nunca antes na história tivemos um porcentual da população brasileira em insegurança alimentar nesse nível. Outra questão é que a gente, que trabalha pelo Brasil inteiro na ponta, já percebia a volta da fome ainda em 2016, quando as lideranças começaram a nos reportar que estavam precisando novamente de alimentos para famílias.
Então, temos dois lados, que é uma pesquisa usando os mesmos critérios que o IBGE utiliza, que é a Ebia [Escala Brasileira de Insegurança Alimentar], de padrão internacional. Ou seja, é um dado estatístico. Outro plano é a questão empírica. Nós atuamos desde 1993 e estamos falando da volta da fome desde 2016, isto é, antes do atual governo. Os dados do próprio IBGE vão corroborando esse aumento da gravidade da situação – em 2018, o instituto já fala em 9,1 milhões de brasileiros passando fome, um aumento de mais de 100% em cima dos dados de 2014.
Por fim, há as consequências das atitudes tomadas sobre os programas que comprovadamente ajudavam a combater a insegurança alimentar e que foram sendo destruídos ao longo dos últimos anos. O Auxílio Brasil, lançado agora, é uma tragédia como programa, absolutamente deficiente em todos os aspectos. Além disso, toda a base do Cadastro Único está sucateada, ou seja, as famílias que precisariam receber não conseguem acessá-lo para se cadastrar. É um mix de fatores que leva esses dados a serem muito mais críveis ainda do que a simples estatística levantada por quem fez a pesquisa. Mais do que isso, há a visão das pessoas: qualquer um que ande pelas ruas pode dizer categoricamente que a fome aumentou.
O que o próximo governo deverá fazer para garantir um patamar de segurança alimentar?
O primeiro passo é retomar imediatamente as políticas públicas anteriores. Nós já partimos de um patamar de conhecimento histórico e de efetividade já conhecidos. Temos duas coisas em paralelo: uma é que quem tem fome tem pressa, ou seja, não dá para esperar que esses programas sejam retomados em seis meses ou um ano, que é o tempo mínimo para reconstruir o que foi deteriorado; em paralelo a isso, é preciso entrar imediatamente com um estado de emergência contra a fome ou algo do tipo que traga uma renda básica muito mais ampla do que temos hoje para essa população. Há um volume muito grande de pessoas passando fome e, enquanto a solução não vem – empregos, oportunidades, políticas públicas – temos de fazer transferência de renda em larga escala num curtíssimo prazo para resolver imediatamente o problema. A partir daí se pensa em melhorar e estruturar as políticas com o tempo.
Vivemos em um momento sujeito a mudanças climáticas. Isso pode interferir no aumento da fome no Brasil e no mundo?
Não dá para dizer que não. As mudanças climáticas têm efeito na produção de alimentos. Há uma ou duas décadas, havia uma previsibilidade maior em relação ao clima e às estações. O que está ocorrendo agora afeta diretamente essa previsibilidade. Então, especialmente o pequeno e o médio produtores, que não têm acesso às tecnologias mais avançadas, aos grãos mais resistentes às variações climáticas, estão mais vulneráveis. Na ponta, vai afetar também os mais pobres, porque, com menos alimentos o preço sobe. É a lei da oferta e da procura. Existem mecanismos do governo que poderiam minimizar esse impacto, como, por exemplo, o programa de estoques reguladores da Conab [Companhia Nacional de Abastecimento], que foi extinto a partir de 2017. Esses estoques garantiam um preço mínimo para que os produtores não quebrassem nos momentos de crise e também, quando faltassem alimentos por alguma questão climática, o governo conseguia escoar o estoque que tinha para assegurar que o preço não subisse pela falta de oferta. Hoje, vivemos o livre mercado na questão dos alimentos. Um país como o Brasil, com mais de 200 milhões para alimentar, não tem uma estratégia de segurança alimentar, apenas uma visão de negócios. É uma questão de segurança nacional, num país que está nessa situação de refém sendo um dos lugares que mais plantam no mundo. Como pode?
As mulheres negras chefes de família são as principais vítimas da fome no Brasil
A fome tem cor?
A fome tem cor, tem gênero e tem CEP. Quando olhamos a fome espalhada pelo Brasil, percebe-se claramente onde e quem está com fome. As mulheres negras chefes de família são as principais vítimas da fome no Brasil. Quase 60% delas estão hoje em insegurança alimentar. É um escândalo. Quando a gente observa todos esses três pontos – gênero, raça e localidade –, percebe que a fome tem uma ligação absolutamente umbilical com a desigualdade social brasileira. Basta olhar como isso está refletido nos dados para parar, de uma vez por todas, de duvidar dessa desigualdade sombria que o País vive: são as mulheres, os pretos e especialmente as pessoas nas regiões Norte e Nordeste em um porcentual muito alto na situação de fome.
A ONG Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida tem quase 30 anos de existência. Como o sr. vê essa trajetória? O que mudou desde que foi fundada por Betinho?
A Ação da Cidadania passou por muitas fases. Primeiramente, naquele grande movimento de mobilização nacional, quando Betinho lançou a entidade e que foi muito importante pelo engajamento das pessoas, que vinham de um período de redemocratização recente. Era um país em que todos estavam ávidos para participar socialmente e se expressar e agir como sociedade civil. Nesse contexto, Betinho ofereceu isso e mobilizou o Brasil inteiro. Muitas organizações que hoje existem são frutos daquele início da Ação da Cidadania, quando se mobilizou para a formação dos comitês e, a partir deles, de várias entidades, grupos e lideranças pelo Brasil todo.
Nós acompanhamos a melhora desses indicadores ao longo dos anos. Betinho falece em 1997, mas esse processo continua e chegamos ao ápice em 2014, quando o Brasil sai do mapa da fome da ONU. Durante esse período, a Ação da Cidadania para de fazer sua campanha, o Natal Sem Fome, porque havia um olhar diferente. A partir do momento em que não precisávamos nos preocupar com arrecadação e distribuição de alimentos nem tanto mais com a insegurança alimentar, por conta das políticas públicas implementadas, a Ação passa a olhar mais para o lado dos direitos humanos, da cidadania e outras coisas. Passamos a olhar para a juventude sem oportunidades e vítimas de preconceitos da sociedade. Só que, no meio desse processo de construção da entidade com um novo olhar, a fome começa a voltar em 2016 e temos de voltar a agir contra a fome novamente.