Elder Dias e Marcos Aurélio Silva

O professor aposentado da Universidade Federal de Goiás (UFG) Pedro Célio Alves Borges é também uma das autoridades científicas mais requisitadas no Estado durante períodos eleitorais, por causa de sua expertise em Ciência Política e, também, por sua longa atuação em pesquisas de campo, inclusive sobre intenção de voto.

Ele vê o bolsonarismo como um fenômeno particular de um estágio da “direita assumida”, que passou a ocupar seu lugar e se expor de fato, algo impensável décadas atrás. “Ela está começando a ser formatada, a se transformar em slogans que não sejam meramente palavras de ordem, mas tradução de ideias”, afirma o pesquisador. Para ele, o bolsonarismo seria uma forma extremada dessa direita, que essa direita, quando consolidada, provavelmente descarte.

Depois de 42 anos de docência encerrados como titular da Faculdade de Ciências Sociais (FCS), ele se dedica agora à literatura. Escreveu três livros durante a pandemia e já tem mais um prestes a ser publicado. Nesta entrevista ao Jornal Opção, Pedro Célio faz um balanço do primeiro turno, comenta sobre a discrepância nas pesquisas e analisa o que pode vir a ocorrer no duelo final pela Presidência da República entre Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL).

Elder Dias – As últimas pesquisas antes de 2 de outubro apontavam chance de vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ainda em primeiro turno. O resultado oficial trouxe certa perplexidade não com o que o petista obteve de porcentual, que estava dentro da margem de erro, mas com o índice muito acima do que qualquer levantamento mais sério tenha captado. O que pode ter acontecido?

O debate sobre pesquisas nestas eleições de 2022 repõe um debate antigo dentro dessa experiência da democracia brasileira. Em primeiro lugar, os institutos de pesquisa vieram para ficar, junto com as outras instituições democráticas. Para colocar a questão de uma maneira mais compreensiva: esses institutos são agentes das eleições e da democracia, por conta da opinião pública. Eles fazem parte da ideia de informação democratizada e, nas eleições, quanto mais se aproxima o dia da votação, a curiosidade vai tomando conta da população, que se deixa envolver e pega gosto pela disputa.

Cada um com seus valores, sua história de vida, vai formando sua preferência eleitoral. Um dos critérios para isso, não resta dúvida, são as informações disponíveis. E não há informações mais consistentes e confiáveis, do ponto de vista técnico, do que as que são editadas e divulgadas pelos institutos de pesquisa, porque elas vêm revestidas de metodologias de aferição e não se negam: faz parte do ofício do pesquisador e do instituto expor seus critérios e como seus dados foram construídos para conhecimento geral, para a investigação da Justiça Eleitoral e para a fiscalização de todos os partidos e candidatos. Os institutos dependem totalmente da consistência de seus dados. É uma questão de mercado para eles, se perdem a confiabilidade, perdem competitividade.

As metodologias de pesquisa estão sempre sendo construídas e corrigidas e lidam com uma matéria especialíssima, que é a subjetividade humana

Marcos Aurélio Silva – Como interpretar este primeiro turno?

O que ocorreu neste primeiro turno é o que sempre ocorre em todas as eleições: os candidatos que não se sentem bem ranqueados nos resultados das pesquisas afirmam que elas não têm validade, alguns retomando argumentos que imaginávamos enterrados, como o de que as pesquisas são intencionalmente falsas – ou seja, os erros dos institutos não seriam falhas das técnicas ou das metodologias.

Em segundo lugar, as metodologias estão sempre sendo construídas e corrigidas. E elas lidam com uma matéria especialíssima, que em outras áreas das ciências a estatística não encontra, que é a subjetividade humana. Quando falamos de um coletivo formado por eleitores de diferentes matizes, estamos falando também de imprevisibilidade, de volatilidade. Ou seja, o eleitor pode receber hoje a mensagem política de uma maneira e amanhã recebê-la de outra. Isso está vinculado à tradição familiar, à experiência social imediata, à religião, à formação escolar e, principalmente, às necessidades e carências matérias que vive. É em torno de seus interesses que o eleitor racionaliza seu voto. Veja bem a dificuldade: tudo isso é a subjetividade humana e os institutos de pesquisa têm isso como objeto.

Em 2022, dois conceitos relativamente novos apareceram antes mesmo do dia da votação: o eleitor amedrontado e o eleitor envergonhado. Este seria o que, no fim das contas, embora não satisfeito, votaria em Jair Bolsonaro, mesmo contrariado. Já o eleitor amedrontado é o que votaria em Lula, mas sem se sentir socialmente seguro em divulgar essa decisão, por temer ameaças e outras violências. Então, esses dois comportamentos surgiram e os institutos de pesquisa não tiveram nem têm instrumentos para capturar isso de maneira célere. Passa a ser necessário que uma resposta procurada pelos institutos que seria obtida com uma pergunta, eles tenham de, então, fazer três ou quatro perguntas para “cercar” o movimento da subjetividade que dá certa ordem ao pensamento desse eleitor. Isso é muito difícil. Do ponto de vista da validação política ou técnica dos institutos, as conclusões acabam sendo duas: há o negacionismo, que, como em qualquer área da ciência, age também quando o resultado da pesquisa não é satisfatório; e a necessidade do debate, já que o procedimento não teve a expertise técnica de capturar esse movimento que fica subjacente às respostas do eleitor. É necessário pensar em aprimorar a metodologia, em vez de jogá-la fora.

Elder Dias – O sr. é um dos mais experientes profissionais de pesquisa em pesquisas em Goiás. O sr. ainda faz entrevistas em campo?

Claro, ir a campo é o melhor momento da pesquisa, ter o contato com o entrevistado. É quando a gente absorve mais elementos para redigir o relatório final. O planejador da pesquisa, que normalmente também é quem redige esse relatório final, quando não vai a campo, perde muita coisa, seu relatório fica mais pobre. Sempre, em minhas pesquisas, tanto acompanho a supervisão de campo como também realizo eu mesmo algumas entrevistas, aplicando questionários. Isso dá uma garantia muito maior para a qualidade interpretativa e para os dados a serem construídos futuramente.

Elder Dias – Já houve algum problema mais sério em suas pesquisas?

Sim, há duas ou três eleições, em Anápolis. Uma de nossas entrevistadoras acabou na delegacia de polícia. Saímos de Goiânia voando para lá. Naquela época, o então governador Marconi Perillo (PSDB) tinha um esquema poderoso de controle eleitoral no Estado e uma das formas de controle implicava a vigilância da realização de pesquisas. Foi um fato que ficou notório e os entrevistadores passaram, naquele momento, a ficar mais temerosos do que o normal.

As situações mais difíceis em um trabalho de pesquisa ocorrem de forma mais comum em cidades pequenas ou em um bairro, um “cluster” muito pequeno do eleitorado, onde a disputa é muito acirrada e previamente os contendores eleitorais são muito identificáveis. Então, a pessoa que está no comércio da esquina, ou num barzinho, vê um pesquisador eleitoral e acaba sabendo que não é do “lado” dela. Então, deduz, só pode ser do “lado” oposto. O que essa pessoa faz? Passa a assediar o pesquisador, ou para forçá-lo a aceitá-lo como entrevistado – ou a quem ele indicar – ou para ameaçar o entrevistador. Isso é muito comum em cidades pequenas. Quando essas cidades menores entram em nossas amostras menores assim caracterizadas, com certo risco, a estratégia é mandar muita gente para o local, porque assim, de turma numerosa, o pesquisador ganha um pouco mais de segurança. E, em segundo lugar, porque cumpre-se a cota de entrevistas naquele espaço de maneira muito rápida.

Marcos Aurélio Silva – E chegou a ter algum caso de violência física mesmo?

Isso já é mais raro, as chamadas “vias de fato”, mas o assédio e a intimidação são comuns.

O discurso bolsonarista é negacionista da ciência como um todo. É algo conceitual para eles

Elder Dias – O fenômeno bolsonarismo tem complicado a vida dos pesquisadores?

Sim, porque o discurso bolsonarista é negacionista da ciência como um todo. É algo conceitual para eles. Qualquer modalidade da ciência. Em se tratando de pesquisa eleitoral, se os resultados lhes forem desfavoráveis, mais ainda.

Marcos Aurélio Silva – Em Goiás, o governador Ronaldo Caiado teve uma campanha bem tranquila, sem ser ameaçado em nenhum momento pela concorrência. E as principais alternativas de poder colocadas foram todas de direita – o PT não chegou a 7% dos votos válidos. Foi um “passeio” para Caiado, essas eleições?

Se Caiado ganhou em primeiro turno e com uma folga relativa, é porque teve uma certa tranquilidade na competição, isso não resta dúvida. Do ponto de vista geral, quando se trata de candidato à reeleição, junto à escolha do voto está também a avaliação do período de governo que está se encerrando. Então, relativamente, esse período de Caiado foi avaliado de forma positiva pelos eleitores. Em segundo lugar, em relação a um aspecto estritamente político, pudemos observar que os demais candidatos tiveram uma certa inépcia na construção de suas campanhas. O candidato que mais poderia fazer frente a Caiado [Gustavo Mendanha (Patriota)], do ponto de vista eleitoral, teve momentos em que pareceu ser uma boa promessa já para esta eleição, mas não conseguiu. As opções de Mendanha ou não foram muito bem entendidas ou foram fúteis, erráticas, o que facilitou a vida do governador.

Já a candidatura do Major Vitor Hugo (PL) também não cresceu, algo que precisa ser explicado, porque o bolsonarismo tem um núcleo duro que ainda não é muito bem formatado. As ideias estão colocadas de forma genérica e Vitor Hugo se colou nisso. Mas o bolsonarismo tem outros componentes que fazem com que ele tenha de se ampliar. Bolsonaro soube capitalizar, em 2018, com o sentimento contra a “velha política”, mas pode observar que nestas eleições ele nem tocou nesse assunto. Mas, aqui em Goiás, Vitor Hugo não conseguiu se articular com isso. O antipetismo não foi um elemento forte do ponto de vista da política regional, apenas no plano nacional. Ou seja, Vitor Hugo não precisava perder tempo com o antipetismo; tinha de dialogar e se diferenciar dentro do campo conservador, em primeiro lugar com Ronaldo Caiado e, depois, com Mendanha.

Marcos Aurélio Silva – E do lado do campo progressista?

Não se formou uma articulação consistente com a sociedade goiana. Por que não se formou? É uma indagação que tem de ser debatida tendo em vista a natureza da formação socioeconômica de Goiás, para ter elementos mais básicos nisso. Não gosto muito dessa técnica, mas vou usar a explicativa pela ausência: as dinâmicas políticas no Estado tiveram poucos vínculos com os movimentos sociais, que se mostram completamente desarticulados, em alguns casos inexistentes. Não souberam fincar bandeiras de discussão das desigualdades, dos problemas de desenvolvimento do Estado. Tudo isso, somado, para formar uma chapa de candidatos proporcionais, não há onde buscar gente, as alternativas são poucas. Da mesma forma, na hora de formatar uma proposta de candidatura majoritária, também fica sem opção. Tanto é que a única alternativa ao candidato Wolmir Amado, do PT, apareceu com o ex-governador José Eliton (PSB), que se colocou como possibilidade depois que uma aliança foi costurada nacionalmente. Mas o PT local não levou em conta, fez de tudo para que não se concretizasse. Creio que haveria uma margem de ampliação maior, mas foi uma decisão do partido e deu no que deu.

Elder Dias – Independentemente do bolsonarismo, o PT e a esquerda goiana como um todo parecem estar encolhendo nas últimas décadas. Os progressistas do Estado pararam no tempo?

É por aí, o problema não é exatamente do PT, é mais amplo, de toda a esquerda aqui em Goiás, de uma fragilidade dos movimentos sociais. Eles não se articulam organicamente nem dentro de si nem em articulação com as demais formas de representatividade. Então, cria-se um hiato entre as projeções programáticas da esquerda com a viabilidade prática. É bom lembrar que nunca Goiás teve na Câmara dos Deputados uma bancada de pelo menos três deputados de esquerda.

Elder Dias – O escritor e pesquisador Noam Chomsky deu um aviso à esquerda brasileira: é preciso voltar às ruas para combater a extrema-direita. Ou seja, voltar ao “chão da fábrica”. Como o sr. vê esse tema?

A esquerda sempre trouxe para si a contemporaneidade do mundo, da época. O que é o “chão da fábrica” hoje? O que move as engrenagens da economia capitalista? É preciso saber quais são os meios que produzem hoje as riquezas. Há um tipo de proletariado diferente, em meio a tanta tecnologia. Será que esse proletariado seria fiel a ideias centralizadoras e amplas? De que maneira? Na verdade, esse tipo de produção tende a individualizar a experiência em seu vínculo com o trabalho. É algo diferente do que havia.

Outra questão – e bem recente –, muito no campo da política, temos algo que se iniciou em 2013, arrebentou as portas em 2018 e começa agora a ganhar formas consolidadas em 2018, que é a existência de uma direita assumida. Isto não existia e é a grande novidade: a direita se assumindo como tal. As pessoas desse campo estão dizendo com orgulho que se vinculam e gostam de ser orientadas pelas ideias conservadoras. No período anterior, isso era quase um xingamento, do ponto de vista moral e ético. Agora, essas ideias ganham uma notoriedade, uma hegemonia que está começando a ser formatada, a ganhar rosto e voz, a se transformar em slogans que não sejam meramente palavras de ordem, mas tradução de ideias.

Elder Dias – O bolsonarismo, então, seria uma transição na formação dessa direita assumida?

Exatamente. O bolsonarismo está sendo o caminho pelo qual a direita está se formatando. É provável que, em uma situação hegemônica consolidada, essa direita descarte as formas mais extremadas ou, pelo menos, mais espúrias de seu pensamento. E tenho comigo que o bolsonarismo é uma dessas formas espúrias, de que a própria direita, em um determinado momento, vai se desvencilhar.

Lula mudou muito, e para melhor, caminhando um pouco mais para o centro

Elder Dias – Esta eleição deve ser a última de Lula, pelo menos como candidato a presidente. Bolsonaro também já está com 67 anos. São líderes “provisórios” de seus grupos?

São líderes de pouca duração. Bolsonaro é um líder pouco confiável, porque é anti-histórico. Já a chancela de Lula, hoje, não é a mesma de 2002, pela questão da idade, mesmo. Acho até que, pela renovação de seu discurso, Lula mudou muito, e para melhor, caminhando um pouco mais para o centro. Mas o desafio da liderança nesses campos é não aparecer para a eleição, mas que se apresente como liderança para a Nação, além de seu campo. Bolsonaro faz pouco esforço, nesse sentido. Lula tenta, desde o início, procurar esse discurso que saia de sua bolha. Tanto que o primeiro passo de fato em sua pré-candidatura foi buscar a aliança com Geraldo Alckmin (PSB). Ou seja, não foi apresentar um programa, mas mostrar-se confiável para ser o condutor. De qualquer forma, o fator idade pesa.

Marcos Aurélio Silva – Quais são as lideranças renovadoras dos campos da esquerda e da direita, para substituir os veteranos?

Na direita, percebe-se que todos vêm de dentro do ministério de Bolsonaro ou da própria família. Ou seja, são os filhos ou os ministros. Se, no primeiro governo, o presidente já foi forçado a se submeter ao Centrão, ou a governar a partir do Centrão, agora, em um cenário de reeleição – ou mesmo na oposição –, vai ter como passar a atuar a partir do núcleo ideológico que implantou. Ou seja, terá seguidores com mandatos, bem definidos. O Centrão, na linguagem de nós, analistas políticos, tem como sinônimo a maleabilidade, o fisiologismo, o oportunismo barato. Já os políticos ideológicos, mesmo de direita, são menos maleáveis, são propensos a adotar bandeiras bem definidas. Do lado da esquerda, precisamos ver quem vai se destacar.

Elder Dias – O segundo turno começou quente, com muita baixaria e fake news sobre questões religiosas e de costumes. Os antibolsonaristas acharam vídeos antigos, um deles, inclusive, remetendo a uma declaração dele de que não teria problema em comer carne humana numa cerimônia indígena. Como fica o segundo turno em termos programáticos?

O segundo turno será mais radicalizado na desconstrução do opositor do que na afirmação da própria proposição. Lula deverá afirmar sua proposição na busca da memória afetiva, com as conquistas sociais obtidas, primeiramente na quantidade dessas conquistas e, em segundo lugar, na natureza emancipatória delas. Bolsonaro também fará o mesmo jogo com todos os meios que tem à disposição, no sentido de ressuscitar o antipetismo adormecido nos últimos tempo e até obscurecido pelas besteiras que ele mesmo cometeu. Será a hora de reavivar esse antipetismo com muito mais força do que em 2018, nesses quatro anos de mandato e na campanha de primeiro turno. Prevejo uma campanha de muito ataque dos dois lados, tanto para tratar de economia como de questões de costume. Penso que esta primeira semana foi um ensaio para preparar os quadros para a televisão. Creio que a esquerda teve um tento a favor com a descoberta de algo de Bolsonaro ligado à maçonaria, o que, na concepção mais enraizada do universo neopentecostal, é algo abominável. Em alguma medida, o presidente passa a ser vinculado, no imaginário popular, a algo nesse sentido que sempre fizeram com o PT. Do lado bolsonarista, voltaram os ataques a Lula com a difusão de que ele fecharia igrejas e estaria numa grande trama comunista internacional para acabar com o cristianismo. Vai ter muita água suja passando debaixo da ponte.

Marcos Aurélio Silva – Lula fechou o primeiro turno com 6 milhões de votos à frente e a apenas 1,57 ponto de ganhar. Há possibilidade de Bolsonaro fazer uma virada?

O presidente entrou para o segundo turno um pouco mais forte do que quando começou a campanha de primeiro turno. Em primeiro lugar, porque boa parte da munição contra ele já foi usada pela esquerda; outra razão é que os resultados das urnas mostraram que há um eleitorado bolsonarista envergonhado que, apesar de tudo, continuará votando nele. Não é algo desprezível e as pesquisas não souberam captar isso, enquanto o índice de Lula, nas mesmas pesquisas, bateu na exatidão da previsão.

Seis milhões de votos são 5% de frente. Do total de votos de Lula, uma fatia reduzida, mas muito reduzida, vai deixar de votar nele no segundo turno. Isso pode acontecer também com Bolsonaro. Ou seja, nos dois campos haverá uma quantia ínfima de mudança. O jeito será buscar votos nos 4% de brancos e nulos e nos 7% de Simone Tebet (MDB) e Ciro Gomes (PDT). Nesse sentido, o petista ganhou, porque Tebet e o PDT se posicionaram a favor de sua candidatura. Foi altamente favorável a Lula.

Ciro Gomes sai bem menor destas eleições. Simone Tebet se engrandeceu e passou a ser o nome mais viável para a terceira via

Elder Dias – Mas isso tem a capacidade de transferir mesmo os votos?

Há, antes de tudo, o aspecto simbólico. Também ambos – Tebet e Ciro – têm um eleitorado com uma consistência confiável em termos de expectativa de comportamento. Afinal, essas porcentagens são as que sofreram o bombardeio pelo voto útil, mas se mantiveram firmes. O que precisa saber é até que ponto a autoridade da liderança ficou preservada. Acho que a de Simone Tebet fica mais do que a de Ciro Gomes. É possível prever que esses 4% da senadora, com ela apoiando Lula, vão para esse candidato em sua maior parte. Já do lado de Ciro, creio que a maior parte vá para Lula não pelo candidato, mas pelo PDT, pelo brizolismo histórico. De qualquer forma, do ponto de vista pessoal, Ciro sai enfraquecido perante esses 3%. É positivo para Lula que Ciro o apoie, mas não será ele puxando os 3%, mas empurrado pelos 3%.

Elder Dias – Ciro sai menor destas eleições?

Bem menor. Ele teve vários momentos em que poderia sair engrandecido, inclusive com um capital político que lhe permitisse negociar agora em melhores condições, mas não foi o que aconteceu.

Elder Dias – E Simone Tebet?

Sem dúvida, ela se engrandeceu. Antes de sua participação memorável na CPI da Pandemia, era uma política talvez muito conhecida em seu Estado e no mundo do agronegócio. Com a CPI, ela conseguiu uma visibilidade na elite política e intelectual; com a campanha, ganhou visibilidade simpática e positiva com o grande eleitorado. Passou a ser o nome mais viável para liderar o que se chamou de terceira via.

Marcos Aurélio Silva – Qual será o tamanho da influência do uso da máquina pública no segundo turno?

Em condições normais, o uso da máquina sempre influencia, não pode ser desprezado. Quando uma eleição está radicalizada, com posições consolidadas ideologicamente, os efeitos desses recursos da máquina são relativizados. Mas que há influência, não tenha dúvida. Só que talvez os mais influenciáveis sejam, além dos eleitores vulneráveis socialmente, os de uma classe média alta órfã, que já votaram em Lula e Bolsonaro, mas agora estiveram procurando a tal terceira via.

Elder Dias – A abstenção pode fazer a diferença no segundo turno?

Pode, sim. Temos visto até denúncias de crimes eleitorais, segundo as quais empresários estariam recolhendo documentos para que seus trabalhadores não tenham como votar. É um reconhecimento claro de que essa divisão entre os dois polos também é uma divisão de classes, que envolve a fragmentação ricos versus pobres – os primeiros com Bolsonaro e os últimos com Lula.

Se o País não passar credibilidade política e tranquilidade jurídica, isso pode atrapalhar muito a economia brasileira

Elder Dias – O sr. acredita no risco de ruptura institucional?

Isso ficou muito reduzido, a quase zero. Todos os argumentos usados nesse sentido até agora, como o descrédito no sistema eleitoral, caíram por terra. Os que o levantaram por anos não tiveram coragem de repeti-los nas últimas semanas. A seguir assim, tudo entrará naquilo que chamamos de normalidade institucional, com cada qual fazendo seu papel e os Poderes se fiscalizando, com uma opinião pública ativa e vigilante. Junto a tudo isso, um sistema internacional de olho no Brasil. Se o País não passar credibilidade política e tranquilidade jurídica, isso pode atrapalhar muito a economia brasileira, principalmente o agronegócio, que deve se preocupar com isso também.

Elder Dias – O sr. se aposentou como professor da UFG e agora se dedica a ser escritor. Como está a nova fase?

Venho de 42 anos de docência, batendo ponto em sala de aula, preparando aula e corrigindo prova, além de ocupar meus fins de semana com material de pesquisa acadêmica. Com a aposentadoria, ainda resisti durante um bom tempo e continuei vinculado a projetos acadêmicos da UFG. Por exemplo, estive na equipe que trabalhou no Plano de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Goiânia, tudo fundamentado na base da mesma linguagem de pesquisa e escrita da academia. Veio a mudança de governo em 2019 e esses projetos que a UFG tinha com o Estado foram cancelados. O governo Bolsonaro também cancelou a verba para procura de novos projetos. Por fim, veio a pandemia. Sem essas possibilidades de trabalho costumeiras, me enfiei dentro de casa e passei a fazer o que sempre me acostumei a fazer: ler e escrever, ler e escrever. Para melhorar nossa capacidade para isso, o segredo é conviver com as pessoas. Tive de passar a conviver comigo mesmo, com minha intimidade e consciência. Isso foi o guia de minhas reflexões por quase dois anos. Transformei tudo em quatro livros, um e-book (Pandemia e Política), dois impressos (Por Incrível Que Pareça: Bestiário de uma Era Negacionista e Textos de Pouca Valia: Gerados em Momentos Inférteis) e um quarto ainda a publicar.

A pandemia nos obrigou a todos a viver um realismo fantástico. Ficamos subjugados a duas pragas que talvez a humanidade não suporte vivê-las novamente em conjunto: uma delas, a própria pandemia; a outra, o retorno do fascismo. Com isso tudo de uma vez, minha mente começou a dar muitas voltas. Então, junto com outros amigos, de forma remota, resolvemos criar ficção sobre o tema. Acabamos frustrados, porque o que conseguimos criar é muito menos amplo do que essa realidade louca nos impôs (risos).