Candidata do PSOL nas últimas eleições fala que diferença do PT para o PSDB é somente um “verniz” para não perder a classe trabalhadora e diz que reforma política com o atual Congresso pode piorar o sistema

Foto: Carlos Siqueira
Foto: Carlos Siqueira

Elder Dias

Era a primeira pergunta do debate presidencial da Rede Globo. A candidata do PSOL, Luciana Genro, sorteada para iniciar a noite, escolheu a presidente Dilma Rousseff (PT) para interpelar. Mas antes de lhe dirigir a palavra, ela surpreendeu a audiência e pegou o apresentador William Bonner no contrapé: “Primeiro eu queria dizer que hoje estou aqui por força da garantia da lei, porque, durante toda a campanha eleitoral, a Rede Globo só mostrou os três candidatos que não têm propostas para atacar os interesses das 5 mil famílias do Brasil, dentre as quais está a família que é dona da Rede Globo”.

Luciana Genro é assim: não foge de uma boa peleja, como se diz no Rio Grande do Sul, seu Estado natal. Poderia ter trilhado um caminho mais fácil na política. Filha de um dos maiores líderes do PT no Estado e no Brasil, o governador Tarso Genro, ela optou por quebrar o vínculo político com o pai quando ainda estava começando seu primeiro mandato de deputada federal. Em 2003, ficou célebre por desobedecer as ordens do partido na votação de mudanças na Previdência Social. À época, formou um quarteto de petistas rebeldes com Heloísa Helena, Babá e João Fontes. Foram expulsos do partido.

O grupo se juntou a outros políticos, intelectuais e artistas para em 2004 fundar o PSOL, que ganhou registro definitivo no ano seguinte. Luciana foi reeleita deputada federal e continuou a desempenhar um papel de oposição de esquerda ao governo Lula. Não conseguiu o terceiro mandato em 2010, apesar de ter recebido 130 mil votos, e este ano foi a escolhida para a corrida ao Planalto pelo partido socialista.

No meio da semana passada, Luciana Genro esteve em Goiânia para ministrar palestras aos movimentos sindical e estudantil. O Jornal Opção a entrevistou enquanto se deslocava do hotel para uma entrevista na Rádio 730 e de lá para a Faculdade de Direito, onde falou para uma plateia de estudantes. “Aonde eu vou, nas universidades, nas escolas, há um fenômeno muito forte de entusiasmo com o PSOL”, nota. Percorrer o País para divulgar as ideias de seu partido tem sido o pós-eleições da gaúcha que virou celebridade com seu desempenho nos debates eleitorais, que lhe renderam o 4º lugar, com 1,6 milhão de votos e liderando a fila de candidatos dos partidos pequenos.

A imagem séria, até sisuda, com que encarou os rivais na disputa presidencial dá lugar à solicitude na hora de atender à fila de populares interessados em uma “selfie” com a ex-candidata. Seu próximo passo, ela não esconde, deverá ser a disputa municipal em Porto Alegre, da qual foi alijada em 2012 por uma imposição legal — ter um pai governador a impedia de postular qualquer mandato no Estado, apesar de ela ser de um partido que nem pertencia a sua base. E para 2018, já faz uma espécie de pré-candidatura: “Se o PSOL me der a oportunidade novamente, estou pronta para concorrer à Presidência outra vez.”

A sra. saiu de uma candidatura à Presidência da República e com isso seu nome obteve um alcance nacional. Para quem observa de fora, foi um bom resultado o quarto lugar, ficando atrás apenas das grandes coligações. A sra. também viu dessa forma?

Para mim também foi um resultado excepcional, considerando as enormes dificuldades que tivemos em termos financeiros, de estrutura, o pouco tempo de televisão e o boicote da grande mídia – o que fiz questão de registrar naquele último debate na Rede Globo. Então fiquei muito satisfeita, porque acho que conseguimos mostrar que o PSOL tem de fato vocação para ser uma alternativa de poder, uma alternativa de mudança, uma alternativa de esquerda coerente. Agora, neste pós-eleição, tenho continuado a sentir um grande apoio, principalmente por parte da juventude. Aonde eu vou, nas universidades, nas escolas, há um fenômeno muito forte de entusiasmo com o PSOL. Os jovens se aproximam e me dizem que, pela primeira vez na vida, votaram com entusiasmo, que pela primeira vez estão de novo acreditando na política. Muitos LGBTs [sigla para militantes de grupos de apoio aos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros] se di­zem muito agradecidos e me di­zem “muito obrigado pelo que você fez e está fazendo pela gente”. E eu digo que eu é que tenho de agradecer, porque para mim é um privilégio ter tido a oportunidade de vocalizar todas essas demandas que estavam contidas de certa forma no processo eleitoral, porque nunca ninguém as tinha vocalizado, ninguém tinha trazido à tona essa lutas do movimento LGBT, da juventude, das mulheres. Essas lutas se destravaram em junho de 2013 e precisavam ter uma expressão no processo eleitoral.

Seu “boa noite” no debate da Rede Globo foi memorável. A repercussão de protestar contra o tratamento dado pela emissora falando em um evento promovido por ela, diante do público de esquerda – que em grande parte concorda com seu conceito sobre a chamada grande mídia –, certamente foi positiva. Mas de sua participação naquele debate ficou também os enfrentamentos com Levy Fidelix (PRTB) e Aécio Neves (PSDB), com situações nas quais muita gente acreditou ter visto traços de machismo sendo expostos pelos candidatos. A sra. também interpretou dessa forma algumas abordagens feitas durante os debates da campanha?

Acho que há um ranço machista que é muito frequente na nossa vida em geral e que se expressou também no processo eleitoral. Essa coisa de botarem o dedo na nossa cara e de nos chamarem de “levianas”, de considerarem de certa forma que nossa condição feminina nos torna menos racionais, menos dignas de respeito. É uma situação que as mulheres vivem na vida. Felizmente, já há muitos homens que superaram isso. Mas o machismo não é característica só dos homens, às vezes as mulheres reproduzem isso. Então, o que houve ali nos debates, foi uma expressão da vida real, mas estou acostumada a lidar com isso e não me intimido.

Foto: Reprodução/ Rede Globo
Foto: Reprodução/ Rede Globo

Durante a campanha, se destacou a disputa ideológica a respeito de temas que vão além da política, principalmente na área de costumes, como o casamento gay, a descriminalização das drogas, entre outros. Esse tipo de debate moral não tem tomado uma dimensão desproporcional durante as últimas campanhas?

Eu tinha uma preocupação grande em relação a isso, porque, ao mesmo tempo em que eu gostaria de pautar esses temas, não queria ser uma candidata caricata, vinculada só a esses temas, como em parte acabou ocorrendo com Eduardo Jorge (PV). Eu queria trazer, primeiro, aquilo que a meu ver é o problema de fundo do Brasil: a questão econômica, um debate difícil, árido, que as pessoas têm dificuldade de acompanhar. De fato, compreender os processos econômicos é algo mais complexo. No primeiro debate, falei tantas vezes em “capital financeiro” que chegaram a fazer um meme [ideia propagada através da rede que se torna viral] sobre isso na internet, repetindo “capital financeiro”, “capital financeiro”. Acho que falei essa expressão umas 15 vezes durante o debate (risos).

Mas, de fato, o capital financeiro é um elemento fundamental para pensar os rumos do País, porque estamos submetidos aos interesses do capital financeiro. Eu queria, em primeiro plano, trazer essas propostas econômicas, a ideia de uma revolução na estrutura tributária neste País, para fazer os ricos pagarem mais impostos, os milionários pagarem mais impostos – não os “riquinhos”, mas os ricaços, com suas fortunas acima de R$ 50 milhões; fazer os bancos pagarem mais; discutir a necessidade de uma auditoria da dívida pública para suspender essa sangria de recursos públicos que consome 40% do orçamento. E, ao mesmo tempo, trazer esses temas dos direitos civis.

Obviamente, para a mídia tradicional, muitas vezes não interessa fazer esses debates econômicos de fundo, mas interessa desviar o foco para debater apenas o tema dos direitos civis. E como não havia ninguém das grandes candidaturas defendendo esses temas, a imprensa acabava dando espaço para a gente falar sobre isso. São temas polêmicos na sociedade, que despertam paixões tanto positivas como negativas, então acabam se tornando relevantes. Acho que foi muito bom, principalmente quanto ao tema LGBT, que tem mais capacidade de ser compreendido por mais gente, diferente de outros também importantes, como a droga e o aborto, que são mais polêmicos e complexos e envolvem crenças religiosas também, o que dificulta a discussão. O tema LGBT ganhou proeminência de forma muito merecida, porque o Brasil ainda está muito aquém dos patamares mínimos civilizatórios no que diz respeito aos direitos LGBTs.

Na questão econômica, depois da reeleição garantida, a presidente Dilma Rousseff (PT) toma agora medidas contrárias ao que ela pregou na campanha. Muita gente do PSDB brinca, dizendo que se soubesse que seria assim, teria votado em Dilma. A sra. considera que a presidente decepciona seus eleitores ao, por exemplo, escolher os ministros que está escolhendo?

Para quem acreditou nesse discurso de esquerda (de Dilma) que se desconfigurou depois, foi um verdadeiro estelionato eleitoral. Eu não acreditava, tanto que, durante toda a campanha, afirmei que os três – Dilma, Aécio e Marina Silva – eram “irmãos siameses”.

Por apresentarem o mesmo discurso?

Sim, porque apresentavam a mesma proposta do ponto de vista econômico, principalmente, muito embora eles tenham diferenças entre eles. Com Aécio, os ajustes seriam mais duros e fáceis para eles fazerem, pois o PSDB não tem vínculo com a classe trabalhadora, como ainda tem o PT. Então, o PT ainda tem de fazer algumas mediações, internas e externas, e dar algum verniz de proteção aos trabalhadores. Mas é só um verniz, porque, na essência, o que a Dilma vai fazer é o mesmo que Aécio iria fazer.

Mas, Dilma, então, talvez fará isso de uma forma mais “light”?

Talvez os ataques que ela faça não sejam tão profundos quanto os que Aécio faria. O problema é que a situação econômica que o mundo e, consequentemente, o Brasil também vive é difícil. Logo, para se manter dentro das exigências do mercado financeiro é preciso realizar ajustes. É preciso cortar gastos e apertar salários. Os economistas do PSDB falam isso claramente: tem de diminuir salário. Delfim [Netto, ex-ministro e ex-deputado federal] já disse isso e vários outros já disseram isso, com outras palavras. Os do PT não falam, mas na prática é o que eles vão acabar fazendo. Então, se não houver mobilização, protestos e pressão sobre o governo, o que vem por aí será muito complicado para a classe trabalhadora.

E isso já ficou claro já na escolha da nova equipe econômica?

Sim. A escolha de Joaquim Levy é uma sinalização clara disso. Levy era cotado para a equipe de Aécio também. Ele tinha sido assessor no governo Fernando Henrique Cardoso, foi indicado por Pedro Malan [ex-ministro da Fazenda na era FHC] para a equipe de Lula e atualmente era um executivo do Bradesco. Quer dizer, o primeiro gesto de Dilma [Rousseff] após as eleições foi buscar o ministro da Fazenda no mercado financeiro. Tentou trazer [Luiz Carlos] Trabuco, que não aceitou, mas que indicou o seu lugar-tenente, que é Levy. E veja que Dilma acusava Marina e Aécio de fazerem o jogo dos banqueiros. E a primeira coisa que fez levar um representante dos banqueiros para o Ministério da Fazenda. Ou seja, coerência zero por parte dela.

A sra. fez parte do Congresso por oito anos e já viu muitas tentativas de malabarismos fiscais por parte do governo. Como a sra. avalia esse novo projeto enviado pelo Planalto ao Congresso, justamente para flexibilizar sua prestação de contas?

É a típica ação do PT. É o que o diferencia do PSDB é isto: precisar dar uma maquiada, uma aliviada, para não ficar tão evidente o alinhamento deles com o mercado financeiro. E já havia dito isso durante a campanha. Parecem coisas contraditórias, mas não são, pois eu também dizia que eles são irmãos siameses, mas não idênticos. Por isso que, no segundo turno, o PSOL disse claramente “nenhum voto para Aécio”, mas também não nos alinhamos com Dilma, embora algumas lideranças tenham votado nela. Mas, enquanto partido, não houve apoio formal, ao contrário, deixamos em aberto para fazerem o que quisessem, menos votar em Aécio, porque ele significaria um retrocesso ao neoliberalismo puro. O PT segue um social-liberalismo, um liberalismo com políticas sociais um pouco mais amplas do que as que o PSDB faz ou faria. Ou seja, o que está havendo é maquiar os ajustes. Isso desagrada ao mercado, mas não chega a ferir profundamente os interesses deles, porque, como eu já disse, é um verniz que o PT usa para não perder o vínculo com a classe trabalhadora.

As políticas sociais foram o motivo de muitos eleitores votarem em Dilma e não em Aécio no segundo turno. Ou seja, acham que o PT tem um projeto para essa área e o PSDB, não. É isso que, para a classe trabalhadora, diferencia o PT estar no go­verno e não o PSDB? E o que poderia ser dito do que foi feito de positivo, na visão da sra., neste novo governo petista depois de 12 anos?

O problema das políticas sociais não é que elas sejam ruins. O problema é que elas são migalhas, as bordas de um bolo que estava crescendo durante o governo Lula, numa situação mundial favorável. Ou seja, a economia mundial favoreceu a que a economia brasileira também crescesse. Então, eles distribuíram as bordas, mas a questão é que o centro do bolo ainda continua concentrado. Atualmente, por exemplo, 15 famílias no Brasil que tem uma riqueza acumulada equivalente a 10 vezes o que o Brasil gasta com Bolsa Família em um ano. Isso nos dá a dimensão de como essas políticas sociais são de fôlego curto em relação à quantidade de riquezas concentradas nas mãos de poucos. Eu vejo as políticas sociais como um dado positivo do governo, mas, ao mesmo tempo, como insuficientes, porque elas não têm a capacidade de resgatar as pessoas da pobreza de fato, mas apenas as mantêm ali e não possibilitam que se diminua a desigualdade, que é o grande problema. Não é só dar o que comer para as pessoas, mas também educação, serviços públicos, emprego e oportunidade para as pessoas se desenvolverem. Acho que, se as pessoas quisessem políticas sociais de verdade, elas deveriam votar no PSOL, pois a maior política social que se pode fazer no Brasil é regulamentar o imposto sobre as grandes fortunas.

“O capitalismo é insustentável”

Foto: Carlos Siqueira
Foto: Carlos Siqueira

A regulamentação de um imposto sobre grandes fortunas foi um projeto seu, para regulamentar um artigo da Constituição de 1988. Como está essa proposta no Congresso?

O imposto sobre as grandes fortunas foi uma proposta de Fernando Henrique Cardoso, quando ele era constituinte e que está na Constituição, mas que precisa de uma lei complementar para regulamentar – definir, por exemplo, o que é a grande fortuna e quanto e como se cobrar o tributo. Nesse sentido, quando era deputada fiz um projeto que chegou a ser aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) – até porque não teria como eles dizerem que era inconstitucional um projeto que regulamentava algo que está na Constituição (risos). Ocorre que depois o projeto não andou, porque não há nenhum interesse do governo nesse debate.

O deputado Chico Alencar [PSOL] reapresentou meu projeto, mas de novo ele não prosperou. Na campanha eleitoral, eu trouxe à tona de novo essa questão, com uma proposta mais moderada do que a que apresentei na Câmara, que previa a cobrança de fortunas acima de R$ 2 milhões. Na campanha, minha proposta foi de que o imposto partisse de riquezas acima de R$ 50 milhões, exatamente para não trazer o entendimento de que queremos aumentar a tributação sobre a classe média. É justamente o oposto, o que queremos tributar são os grandes milionários.

Qual seria a chance de uma proposta como essa ser aprovada em um governo do PT, hoje?

O que menos importa é quem está no governo, porque qualquer um que esteja no poder, seja PT ou PSDB, não vai se empenhar para que o projeto seja aprovado, invariavelmente. Se houver uma pressão externa, aí sim, a gente teria alguma chance. Por exemplo, em junho de 2013 nós tivemos uma mobilização gigantesca, espontânea, que começou com o aumento da tarifa do transporte e depois se expandiu para um conjunto de outras reinvindicações. Só que a gente não conseguiu nesse processo construir uma pauta com interlocutores que pudessem exigir medidas do Congresso. Então os parlamentares, apavorados, com o povo todo na rua, aprovou o fim do voto secreto, tomou algumas poucas medidas. O governo também prometeu muita coisa, mas depois concretizaram muito pouco em relação ao tamanho da mobilização. Tenho certeza de que podemos ter sucesso se a gente tiver um processo de mobilização que talvez nem precise ser tão gigantesco como foi o de junho do ano passado, mas que apresente uma pauta clara para o Congresso Nacional, para o governo, com itens como o imposto sobre as grandes fortunas.

Essas ruas voltaram a ser tomadas depois das eleições, embora de forma diferente e bem menor, com um movimento pelo impeachment de Dilma. São a maioria pessoas de direita, e algumas pedem até a volta dos militares ao poder. A gente pode considerá-lo como um resquício do que foram as grandes manifestações de 2013? O que aconteceu para, ainda naquelas jornadas de junho, esse movimento se virasse contra os partidos, que começaram a serem questionados e hoje termos protestos totalmente direcionados a um “Fora Dilma”?

Não dá para dizer que as manifestações que ocorreram agora tenham alguma vinculação com junho do ano passado. Primeira­mente, foram manifestações pequenas, sem uma real representação social. Criaram um certo factoide em torno desses manifestos localizados, que, ao meu ver, não representam de fato um movimento social com capacidade de continuidade. Foram as mesmas pessoas que votaram no Aécio, que estão contra o PT, e que não são necessariamente pessoas de direita. Há muita confusão política gerada pela traição do PT.

Isso, me parece, vem desde o mensalão.

Exato. Se formos analisar a composição da Câmara, vamos ver que a direita vem crescendo desde 2006, que foi justamente a primeira eleição pós-mensalão. Então esse processo de degeneração do PT criou uma confusão em um determinado setor do eleitorado, que acaba votando no PSDB por não enxergar uma outra alternativa viável eleitoralmente. Eles chegaram a buscar Marina, que não conseguiu ter o mínimo de consistência política. Ela se transformou em uma segunda via do PSDB – o fato de ela ter apoiado a chapa tucana no segundo turno comprovou essa afirmação, que eu fiz logo que a candidatura dela foi lançada. Assim, esses eleitores que estão insatisfeitos acabaram, ainda no primeiro turno, votando em Aécio.

Nosso desafio é justamente construir um partido que possa ser uma superação do PT pela esquerda. Dentro das regras da democracia burguesa que a gente vive, é obvio que vai haver uma alternância de poder. O PT não vai governar para sempre. Se não tiver alternativa para o PT pela esquerda, quem vai voltar é o PSDB, é a direita, mesmo que ideologicamente grande parte dos eleitores do Aécio não tenha uma convicção ideológica de direita. Então, fica o desafio de conseguir essa superação pela esquerda. Não queremos cair na vala comum dos partidos tradicionais e é sempre muito difícil manter essa posição. Mas não podemos manter ninguém, nem mesmo figuras representativas – como Heloisa Helena [ex-senadora] e Randolfe Rodrigues [senador] – transformando o PSOL em um partido que não seja coerente com o que diz.

Eles vão mesmo sair do partido?

Estou acreditando que Randolfe vá ficar, até pelo que ele disse ultimamente. Também queremos que Heloisa Helena permaneça, pois ela foi fundamental para a fundação do partido. Mas não podemos fazer do PSOL um partido sem coerência.

Foto: reprodução
Foto: reprodução

O caso do mensalão realmente foi um revés para a esquerda como um todo. O PT, antes, já tinha políticas parecidas com as do PSDB, mas eticamente o que manchou o partido foi o mensalão. Mas o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes declarou que, em relação ao que é o caso de corrupção na Petrobras, o mensalão deveria ser matéria para um juizado de pequenas causas. A sra. vê dessa forma também? A corrupção se aprimorou desde o mensalão?

Não acho que a situação mudou. A corrupção está instalada no País historicamente. É uma característica de um sistema que vem da ditadura militar – quando, entretanto, não se podia divulgar nada contrário. Agora, com o avanço das instituições, mais capacidade e liberdade da Polícia Federal para investigar, isto está vindo à tona. O fato de se conseguir neste momento desmascarar as empreiteiras é muito importante. Há agora a convicção de que as empreiteiras são uma fonte de corrupção nas suas negociatas com os governos, tendo por objeto as obras públicas, o que é algo corrente no Brasil. Não se faz obra no Brasil sem propina. Por isso, inclusive, o PSOL colocou em seu estatuto a proibição de nossos candidatos receberem dinheiro de empreiteiras, bancos e multinacionais. As empreiteiras constituem uma verdadeira quadrilha, juntamente com agentes públicos e políticos, para assaltar os cofres públicos.

Por isso tudo, não é um privilégio do PT esse processo viciado. Por isso também, é tão ridículo Aécio Neves criticando o PT pela corrupção. Fiz questão de dizer que era o sujo falando do mal lavado, todos eles estão nesse processo. A própria imprensa teve de reconhecer que o PSOL foi o único partido que elegeu deputados sem dinheiro de empreiteiras. A corrupção não se resolve a partir simplesmente da punição dos envolvidos em casos específicos ou de maior evidência. Isso é importante, mas não resolve. Só resolveremos a corrupção acabando com a raiz dela, nessa reação promiscua entre o setor público e o setor privado. A solução passa, em parte, pela reforma política. Mas isso apenas não será suficiente: é preciso também atacar as empreiteiras. Acredito que essas mesmas empreiteiras, que têm obras no Brasil inteiro, estão roubando também no Brasil inteiro. É necessário fazer uma auditoria em todas essas obras e chegar ao ponto de expropriar essas empreiteiras, que representam interesses privados e corruptos. É um processo muito mais profundo do que aparentemente se demonstra.

Qual o projeto de reforma política que o PSOL defende?

Nós defendemos primeiramente a necessidade de acabar com o financiamento privado das campanhas, pois isso é uma fonte de corrupção e de desigualdade na disputa eleitoral. Nesta eleição, minha campanha gastou R$ 450 mil e Dilma gastou R$ 390 milhões. Veja que diferença há em estrutura para duas candidaturas tendo esse abismo em termos de custos. Também é preciso mudar a legislação sobre o tempo de televisão, para o qual tem de haver maior igualdade.

Achamos que a melhor maneira de combater os partidos fisiológicos não é por cláusula de barreira, ideia a que somos totalmente contra, porque vai impedir os partidos ideológicos, como o PSOL, de ter acesso ao fundo partidário e aos debates na TV, dos quais gostariam muito de nos expurgar. Então é preciso haver uma legislação que não permita que os partidos fisiológicos continuem vendendo seu tempo de televisão. Para isso, basta que o tempo de TV de cada candidato seja o de seu partido e não o da coligação. Isso acabaria com essa compra e venda de tempo de TV. Há partidos que só existem para vender o tempo de televisão – como vimos, por exemplo, na coligação de Dilma. Não creio que haja muitos partidos: o que há são partidos ruins, que existem para ser usados em negócios e não para defender ideias. Se tivermos essa mudança na lei – com o tempo do candidato sendo apenas o de seu partido – as siglas de aluguel vão desaparecer com o tempo, naturalmente.

Também é necessário ter mecanismos de participação popular mais amplos. Dar mais possibilidade de o povo tomar decisões a partir de plebiscitos que coloquem em questão os grandes temas, como, por exemplo, a dívida pública. Vamos discutir com a população se é legítimo que a gente continue destinando 40% do Orçamento para pagamentos de juros da dívida. É preciso combater essa naturalidade com que a grande imprensa e os economistas que representam os interesses do capital tratam a questão de fazer ajustes fiscais, de atingir superávit primário, de arrochar salários para pagar juros da dívida. Vamos propiciar um debate amplo sobre isso e colocar na mão do povo essa decisão. Então, os mecanismos de maior participação democrática também são muito importantes, assim como a possibilidade de revogação de mandatos de parlamentares e políticos em geral que não cumprem seus compromissos. A Venezuela tem, em sua Constituição, um mecanismo de referendo revogatório. Precisamos de uma reforma política que realmente amplie os espaços democráticos e não os restrinja ainda mais, que é um temor que nós temos se ela ficar simplesmente nas mãos do Congresso, se não houver uma grande pressão externa.

A sra. foi congressista durante oito anos e sabe do ritmo com que o Legislativo anda. Por sua experiência e pelos rumos que a conjuntura tem tomado, acredita que essa reforma política sai ainda no governo Dilma?

Esse escândalo envolvendo as empreiteiras coloca força na necessidade de acabarmos com o financiamento privado nas campanhas eleitorais. Penso, então, que essa pauta vai ganhar pauta – o que não significa, porém, que essa reforma vá acontecer e que ela seja boa. Por exemplo, é possível que acabem com o financiamento privado, mas que não se avance em outros temas e até que se retroceda – por exemplo, instituindo a cláusula de barreiras.

O que precisamos é ter pressão, mobilização, articular os movimentos sociais e populares em geral em torno de uma proposta e ir para cima do Congresso e do governo com ela. Esse processo está começando a se construir. Há o Movimento da Consulta Popular, que defende um plebiscito por uma Constituinte da reforma política, tem outros movimentos que estão colocando a pauta de outra maneira, mas todos com a preocupação de se construir uma unidade para ter uma proposta que signifique uma melhora do sistema.

É interessante que haja uma Constituinte com parlamentares escolhidos apenas para discutir e votar a reforma política?

Sou a favor dessa ideia para discutir a reforma política. O problema é que precisaríamos de uma mudança nas regras para a própria eleição dessa Constituinte, porque, se forem eleitos com a mesma regra do financiamento privado, do tempo de televisão e da cobertura injusta da mídia o resultado final será muito parecido com o que já temos hoje. Dificilmente teremos uma Constituinte mais progressista do que a atual composição do Congresso. Pelo contrário, pode ser até que piore. Por isso é que a mobilização é importante: para arrancar do Congresso Nacional atual uma regra que possibilite uma Constituinte mais democrática. Não será fácil.

Há um cenário apontado até de forma apocalíptica por alguns estudiosos para o planeta, em termos de recursos naturais. Uma família norte-americana consome o mesmo que uma aldeia inteira do centro da África em um mesmo período. Mas o debate ambiental ficou totalmente ofuscado nesta última campanha eleitoral. Nem a candidata Marina Silva (PSB), com seu perfil de ambientalista, puxou esse tema, que só entrou na discussão como arma de ataque: de Dilma Rousseff a Aécio Neves, por conta da crise da água em São Paulo, que tem governo do PSDB; e dele à petista, com foco no avanço do desmatamento na Amazônia. Como estão a política brasileira e seus partidos em relação à sustentabilidade no País e no mundo?

O capitalismo é insustentável. Não existe sustentabilidade am­biental dentro do modelo capitalista, porque a lógica do capitalismo é uma lógica de acumulação e de valorização do capital, em que a destruição da natureza é parte integrante desse processo. O consumismo é resultado de uma necessidade do capitalismo, já que, à medida que é preciso estar sempre tendo crescimento econômico e aumento da taxa de lucro, é preciso também fazer com que os produtos sejam cada vez mais descartáveis, para que as pessoas tenham de consumi-los novamente.

Portanto, a lógica capitalista é uma lógica destruidora do meio ambiente. Dessa forma, os países que defendem o sistema do modelo capitalista nunca serão consequentes na defesa do meio ambiente, o que foi o caso de Marina Silva. Ao não se colocar frontalmente contra esse sistema, ela se transforma em uma ecocapitalista e, então, não tem como ser consequente na defesa do meio ambiente. Tanto foi assim que, durante a campanha, ela voltou atrás em vários temas que havia defendido por outras vezes, como na questão dos transgênicos e a relação com o agronegócio que tentou estabelecer. A luta ambiental não está dissociada da luta anticapitalista, com esse enfoque que enxergamos. De fato, esse tema acabou não tendo o destaque que merecia nesta campanha. Espero que, em uma próxima oportunidade, em 2018, eu possa estar lá para levar com mais força, podendo explicar melhor, essa lógica entre os problemas ambientais e o sistema capitalista.

Luciana Genro fala ao editor Elder Dias: “Precisamos ter pressão, mobilização e articular os movimentos sociais” Foto: Carlos Siqueira

Qual o balanço que a sra. faz do PSOL nas últimas eleições?

O resultado me pareceu extraordinário. Aumentamos a bancada de deputados federais, de três para cinco, e dobramos a bancada de deputados estaduais. Obviamente, são resultados modestos diante da máquina dos grandes partidos, mas são animadores, porque demonstram que existe espaço para uma esquerda coerente e que luta por suas bandeiras.

E quais são seus próximos passos políticos? A prefeitura de Porto Alegre está em seus planos?

Primeiramente, neste momento, estou percorrendo o Brasil na tentativa de transformar essa influência eleitoral que nós ganhamos em influência política e crescimento orgânico do PSOL, buscando filiar pessoas, principalmente com foco na juventude. É possível que eu dispute a prefeitura de Porto Alegre em 2016 e, certamente, vou continuar à disposição do partido para todos os embates que forem necessários.

Setores da direita e da extrema-direita tem colocado que o Brasil estaria se tornando uma ditadura bolivarianista a caminho do comunismo com o governo do PT. Como o PSOL interpreta essa visão?

Em primeiro lugar, é preciso dizer que o bolivarianismo não é uma ditadura. A Venezuela é um dos países em que há mais processos eleitorais, mais democracia e mais participação popular. Não que eu seja uma chavista e defenda incondicionalmente o modelo venezuelano, mas chamar o que há lá de ditadura é uma mistificação da direita. Um segundo aspecto é que o Brasil não tem nada a ver com o processo da Venezuela. São processos completamente diferentes. Por aqui, temos uma democracia ainda mais precária do que a democracia venezuelana, com todos os problemas que existem por lá. O que está havendo é uma tática de assustar as pessoas, fazendo uma associação do PT ao que ocorreu no Leste europeu, nas tentativas frustradas de socialismo, que não se configuraram em um projeto real de socialismo. Ao nosso ver, o socialismo é indissociável da liberdade. O nome do PSOL traz “socialismo e liberdade”. Não se trata simplesmente de estatizar a economia, mas de o povo controlar o Estado. E isso nunca ocorreu em lugar algum do mundo, nem na Venezuela, nem na União Soviética, nem em Cuba, nem na China. É isso que almejamos, que precisamos construir, um Estado efetivamente controlado pelo povo, com instituições que sejam permeáveis à vontade popular.