Katiuscia Freitas: “Há uma corrente do bem por trás de cada transplante”
03 setembro 2023 às 00h01
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Italo Wolff e Edson Leite Jr
Katiuscia Christiane Freitas é gerente de transplantes da Secretaria Estadual de Saúde de Goiás (Ses-GO) desde 2019. A enfermeira foi gerente de enfermagem no Hospital Geral de Goiânia (HGG), coordenadora da Divisão de Coleta do Hemocentro de Goiás, e tem experiência em todas as etapas do processo de captação de órgãos e tecidos. Já trabalhou com os profissionais da UTI, acompanhou diagnósticos, fez entrevistas com as famílias dos doadores e receptores de órgãos e esteve no centro cirúrgico.
Hoje, além de gerenciar os transplantes no estado, Katiuscia Freitas ministra palestras para sensibilizar potenciais doadores de órgãos. Nesta entrevista ao Jornal Opção, a gestora de sistemas de saúde faz um panorama dos transplantes no estado, além de explicar o funcionamento do cadastro de doadores e receptores e desmistificar a doação de órgãos.
Italo Wolff – Como está o momento para os transplantes em Goiás?
Goiás apenas não realiza os transplantes de coração e de pulmão, mas captamos e encaminhamos esses órgãos para pacientes de outros estados. Temos no Hospital Alberto Rassi (HGG) um centro de referência em nível nacional. Em 2020, Goiás foi o quinto estado que mais realizou transplantes de rins no Brasil.
Atravessamos um momento difícil na pandemia. Agora, em todo o país, passamos por um processo de retomada. Ainda não alcançamos os números de 2019, tanto no critério das doações quanto no da captação de órgãos e tecidos, mas tivemos um aumento considerável. No começo de 2023, o aumento foi de 59%.
Hoje, nossa maior fila é para as córneas, que foi a categoria mais prejudicada durante a pandemia. Já aumentamos esses procedimentos consideravelmente, de forma que até em agosto o número de transplantes de córneas foi maior do que em todo ano de 2022.
Edson Leite Júnior – O que falta para Goiás fazer transplantes de coração e pulmão?
Já existem conversas na Secretaria Estadual de Saúde (SES-GO) para ampliar os procedimentos. A questão é que o transplante é uma intervenção de alta complexidade, que exige equipes experientes e uma estrutura complexa. O Estado tem se preparado para isso e equipes médicas demonstraram interesse, mas o processo é burocrático, com necessidade de adequar estruturas, se submeter a credenciamentos e apresentar a capacidade de realizar os procedimentos.
O que existem são médicos interessados, que já têm experiência fazendo transplantes em outros estados e que demonstram interesse em expandir os procedimentos para coração em Goiás. A sinalização vem da unidade mista, do sistema de saúde privado e público, que estão em processo de selecionar documentos e estudar como implantar esse serviço.
Edson Leite Júnior – Todo o transplante é feito 100% pelo Sistema Único de Saúde (Sus)?
A cirurgia de transplante pode ser feita também na rede privada; mas a inserção no cadastro de doadores e receptores é feita pelo SUS. Todos são inseridos no mesmo Sistema Nacional de Transplantes, uma listagem gerida pelo Ministério da Saúde. Por isso, todos dependem do SUS.
Esse cadastro técnico único, que é do SUS, seleciona doadores e receptores independentemente de sua condição social. Não importa se o paciente está pagando pelo hospital onde ficará internada, o órgão a ser transplantado e sua seleção na lista de espera é automática, independe de pagamento.
Não é uma pessoa que escolhe os receptores, é um sistema que leva em consideração os dados inseridos de forma técnica. Por exemplo: ontem, participamos de uma doação de múltiplos órgãos em Itumbiara. Inserimos os dados do doador e o sistema selecionou receptores a partir da compatibilidade, do tempo de espera, da gravidade dos pacientes. Os órgão foram para diferentes estados, sem nossa intervenção.
Edson Leite Júnior – Esse processo demora?
Pedimos para a família um prazo de 24 horas para finalizar o processo. Dependemos dos exames de sorologia, de histocompatibilidade e outros, que levam cerca de seis horas para ficarem prontos. Depois desses resultados, começamos a etapa de distribuição, em que o sistema seleciona os possíveis receptores e organizamos a logística para encaminhar a doação.
Após a retirada do corpo, cada órgão tem um tempo de viabilidade, que chamamos de tempo de isquemia. Por isso, o primeiro órgão a ser retirado é o coração, que tem um tempo de isquemia de quatro horas. Posteriormente, o pulmão, que tem um tempo de quatro a seis horas. Depois do pulmão, o fígado, cujo tempo de viabilidade é de seis a oito horas. O pâncreas dura cerca de 12 horas e os rins até 36 horas fora do corpo. Os rins podem ser enviados em voos comerciais, dentro da cabine do piloto. Os demais órgãos são frequentemente enviados por aviões da Força Aérea Brasileira (FAB).
Tentamos agir o mais rápido possível, porque existem famílias que negam a doação pela demora no processo. Conseguimos fazer rins e córneas mais rapidamente em Goiás, porque as equipes já estão aqui. Então, iniciamos o processo rapidamente.
Italo Wolff – Com um tempo de isquemia de apenas quatro horas, como Goiás consegue enviar corações para outros estados?
As cirurgias são simultâneas. Quando a equipe aqui decide que o coração está apto para doação, começa uma corrida contra o tempo. A equipe médica que cuida do paciente que vai receber o órgão é alertada e a pessoa já vai para o centro cirúrgico, ser submetida a anestesia, para que quando o coração chegue lá, já encontre o paciente pronto para ser transplantado.
Até por essa dificuldade, Goiás envia corações principalmente para Distrito Federal e São Paulo. Tanto pela proximidade, quanto pela logística. Para enviar, o transporte pode envolver bombeiros, o Grupo de Radiopatrulhamento Aéreo (Graer), a FAB. No destino, as equipes têm também suas logísticas. Existe toda uma rede de apoio.
Temos uma parceria com o aeroporto de Goiânia, de forma que todos os órgãos e equipes são avisados com antecedência e o acesso é facilitado pela entrada restrita. Recentemente, o aeroporto conseguiu que um avião da Azul ficasse mais de 30 minutos em solo para que não perdêssemos um órgão vindo de Uruaçu. Com esse contato, mobilizamos e sensibilizamos os passageiros, para que eles esperassem, porque não teríamos outro voo.
É um esforço coletivo. Em outra ocasião, conseguimos que outro aeroporto, fechado para operações aéreas, abrisse espaço para transportarmos os órgãos. Existe uma corrente do bem por trás de cada operação. Quando uma família diz “sim”, começa a cooperação. Já nos ajudaram Samu, Polícia, Sistema de Trânsito, todos acreditando que podemos salvar uma vida.
É um trabalho extremamente gratificante e difícil. Trabalhamos com dois lados: a morte e a vida. Quando comemoramos uma doação, não estamos comemorando a morte; estamos comemorando a solidariedade. O fato de que, naquele momento de tanta dor, uma família se dispôs a salvar outras vidas. Temos vários exemplos de como esse processo sensibiliza e emociona.
Italo Wolff – Como funciona o cadastro?
No caso do Fausto Silva, se comentou que ele foi priorizado. Isso provocou a dúvida: “Será que ele foi passado na frente da fila porque é milionário?” Não. Ele foi priorizado porque atendia os critérios de gravidade. Foi comprovado que tinha um choque cardiogênico, que ele estava usando a medicação exigida. Como aconteceu com Fausto Silva, ocorre com vários outros.
O cadastro segue critérios de compatibilidade em que até o peso e altura dos envolvidos importa – não adianta se pegar um coração de um adulto e tentar transplantar em uma criança. O tempo que um paciente pode esperar pelo órgão é muito variável; depende até de seu quadro clínico.
Um receptor pode recusar o órgão. Nesses casos, a equipe médica do paciente preenche um formulário para justificar a recusa. Talvez o receptor esteja gripado, talvez seus exames indiquem que aquele momento não é o melhor para realizar a cirurgia. Ou talvez a equipe considere que aquele rim é ainda o ideal e que há condições de esperar.
Edson Leite Junior – O caso Faustão trouxe muita visibilidade para o tema dos transplantes, mas também trouxe certa desconfiança e muita fake news. Considera que tudo isso ajudou ou atrapalhou seu trabalho?
Olha, eu vou dizer que atrapalhou em partes, mas ajudou muito. Neste mês de agosto, o número de doações era o mais baixo do ano – tínhamos apenas três doações – até o caso do Faustão. Apenas na última semana, já foram três novas doações. Um aumento de 100% em poucos dias; e fechamos o mês com seis doações. Ainda estamos abaixo da média, mas já foi uma melhora.
Acredito que a oportunidade de explicar o sistema de doações na imprensa realmente faz diferença. Não foi apenas em Goiás – o coordenador de transplantes de São Paulo também cedeu entrevista afirmando que registrou um forte aumento de doações no mesmo período. Em minha opinião, mesmo com as fake news, a oportunidade de fazer esclarecimentos é proveitosa.
Edson Leite Junior – Ainda faltam informações para as famílias?
Sim. No Brasil, são as famílias que dão a palavra final, autorizando as doações. Em minha experiência, o que determina o “sim” das famílias é que elas já tenham ouvido esse desejo do doador em vida, dentro de casa. Esse não é um assunto sobre o qual as famílias costumam conversar com facilidade. É comum que, quando alguém toca no assunto, um ou outro parente diga “Não fale sobre isso”, ou “Credo, que história é essa?”.
Quando trabalhava como coordenadora do hemocentro, não encontrava resistência das pessoas em conversar sobre doação de sangue. Mas, como a doação de órgãos acontece quando há morte encefálica do doador, há o estigma. As pessoas não falam sobre a morte, mas é isso que determina a doação na maioria dos casos.
Deixar claro o desejo de doar órgãos fez toda a diferença, porque a família raramente contraria a vontade do doador. O problema é que a maioria desconhece a vontade de seus familiares.
Edson Leite Junior – E esses fatores de resistência são culturais? Religiosos? A que se deve a resistência de conversar sobre o tema no Brasil?
Quando recebemos uma negativa, a justificativa mais frequente é: “Ele não era doador em vida”. As pessoas presumem que o parente não gostaria de ter seus órgãos doados porque nunca falou sobre o assunto. Outra justificativa comum é o desejo de que o corpo fique íntegro. Ainda é comum a crença (falsa) de que a doação vai deformar o corpo, de forma que ele não poderá ser velado.
São mitos. Outra ideia errada é a de que os médicos vão retirar os órgãos do paciente enquanto ele ainda está vivo. Esse foi um receio surgido em 1997, quando a lei que regulamenta os transplantes foi aprovada e se falava sobre escrever na carteira de identidade o desejo de ser um doador. Criou-se a lenda urbana de que haveria um estímulo para matar os doadores de órgãos para fazer transplantes.
Na realidade, o processo é muito seguro. O Brasil tem uma das legislações mais rigorosas do mundo para chegar ao diagnóstico de morte encefálica. Pela lei, a família pode até trazer um médico independente, de fora da equipe do hospital, para acompanhar o processo. Hoje, alguns hospitais deixam a família acompanhar o procedimento, assistir os exames. Tudo para que os parentes do doador compreendam que morte encefálica é morte.
Por isso, nosso foco não é apenas conscientizar a população sobre a importância de doar. Hoje, também nos preocupamos muito com o treinamento dos profissionais da saúde, para que eles saibam como conversar com as famílias. Esses profissionais precisam entender como explicar o diagnóstico da morte encefálica e também como abordar a questão da doação de órgãos. Isso faz toda a diferença.
Italo Wolff – Em geral, como acontece essa abordagem? A equipe médica sugere a possibilidade de doação de órgãos aos familiares de quem teve morte encefálica?
O hospital avisa a nossa equipe quando abre o protocolo de morte encefálica. Hoje, temos unidades de procura de órgãos dentro dos três maiores hospitais do estado, que são o Hugo, Hugol e Heana. Esses hospitais cuidam de uma região de abrangência, acompanhando suas cidades e também os municípios do interior.
Nossa equipe acompanha o processo, validando os procedimentos e certificando que tudo está acontecendo conforme as regras. Para chegar ao diagnóstico de morte encefálica, há uma série de exames comprobatórios e, caso tudo esteja dentro dos parâmetros, a equipe médica pode conversar com os familiares sobre o diagnóstico, mas jamais sobre doação.
Não se fala com família sobre doação antes de conclusão do diagnóstico de morte encefálica. Geralmente há alguém da nossa equipe junto com o médico que dá a notícia do óbito, e às vezes há membros de comissões intra-hospitalares. Neste momento, a equipe aborda a doação de órgãos. O ideal é que haja um treinamento para tratar do assunto, porque é uma conversa difícil, que acontece em um momento em que a família não está em condições de ouvir.
Edson Leite Júnior – Teve algum caso que te marcou?
Vários. Em um deles, eu estava no Hospital Estadual de Urgências Governador Otávio Lage de Siqueira (Hugol) com a equipe que fez a captação de um coração para um transplante que ocorreria em São Paulo. O doador daquele coração era um pastor que faleceu aos 52 anos.
Nós íamos entregar o coração em uma caixa a um helicóptero dos bombeiros no pátio, que levaria o órgão até o aeroporto. Eu estava preocupada com a possibilidade de membros da família do doador estarem no pátio. Eu queria proteger a família, porque pensei que talvez não fosse bom para eles olhar aquela caixa passando com o coração dentro. Mas não tivemos tempo de verificar se havia alguém no pátio.
Quando saímos do hospital, havia cerca de dez pessoas da família no pátio. Eles assistiram toda a cena, da caixa passando. Em vez de acharem ruim, eles começaram a aplaudir, e aplaudiram até o helicóptero partir. Aquele momento foi emocionante e me marcou muito. Eles agradeceram e disseram “ame mais, abrace mais, faça o que você puder em vida”.
São muitos casos emocionantes. Saímos do extremo da dor para o extremo do amor. Essas famílias têm muito a ensinar sobre altruísmo, superar a sua dor naquele momento difícil para ceder algo, doar algo de um ente querido para salvar outras vidas.
Italo Wolff – A família do doador sabe quem foi o paciente que recebeu o órgão? É comum que exista esse contato?
Não. Pela legislação, nós da central de transplantes não podemos facilitar esse contato nem fornecer informações sensíveis. Podemos apenas dar algumas informações, como a idade, sexo e estado do paciente transplantado. Algumas famílias descobrem quem foi o receptor por notícias na imprensa, mas isso não é incentivado pelas centrais e nem pela legislação.
Existem várias razões para manter essa distância. Primeiro, porque uma das partes pode não querer estabelecer esse vínculo. Segundo, é possível que a família do doador queira receber algo por ter feito a doação. Além disso, é possível que essa relação não seja harmoniosa. As pessoas acham que vai ser um encontro lindo, mas é preciso respeitar os limites da outra parte. A família do doador sofreu uma perda, está abalada. Buscamos resguardar as privacidades.
Italo Wolff – Por que a pandemia aumentou a fila de transplantes? Por que ainda não recuperamos taxas de doações pré-pandemia?
A pandemia de Covid-19 suspendeu os transplantes por seis meses. Os surtos dentro das unidades de saúde, a circulação de pacientes contaminados, a imunossupressão dos receptores, tudo isso influenciou. Foi uma época em que a doação de órgãos era uma preocupação secundária da imprensa, pois todos os olhos estavam voltados para o novo vírus.
A retomada pós-pandemia envolve um trabalho de sensibilização. Agora, entramos em setembro e vamos mobilizar as equipes para o setembro verde, com ações de conscientização.
Hoje, os efeitos são menores, mas ficou o impacto. A fila de espera tem 2 mil pessoas em Goiás, são 65 mil em todo o Brasil. A maioria no estado (1,5 mil) esperam córneas, cerca de 400 esperam rins.
Italo Wolff – O maior obstáculo continua sendo a recusa das pessoas de doar?
Sim. Temos demanda e pessoas para realizar o transplante, mas o gargalo são os doadores. Se você se questionar qual a maior probabilidade, de entrar na fila para receber um transplante ou de se tornar um doador de órgãos, vai concluir que é bem mais provável precisar de um órgão. Apenas quem tem morte encefálica pode doar, e apenas 3% das pessoas no país chegam a este diagnóstico.
Só vamos conseguir reduzir as listas se conseguirmos aumentar as doações. Para isso, temos de diminuir a recusa. Estados como Santa Catarina têm 28% de recusa; em Goiás, 63% das famílias que podem dizer “sim” acabam recusando.
Italo Wolff – Onde a central de transplantes realiza esse trabalho de conscientização?
Em todos os locais onde somos solicitados. Vamos a escolas, igrejas, empresas, onde quer que possamos sensibilizar as pessoas para essa causa.
Edson Leite Junior – As igrejas são receptivas?
Sim. As pessoas acham que a igreja vai ser contra, mas não são. A maior dificuldade associada com as religiões é a ideia de milagre; da interpretação de que o familiar com morte encefálica pode passar por um milagre e ser curado. Na realidade, a morte encefálica é a completa e irreversível parada de todas as funções do cérebro.
É uma parada permanente, mas, pelo fato de que o coração continua batendo, as pessoas têm esperança. O que eu sempre levo para essas ocasiões é o que uma mãe de paciente com morte encefálica me disse no Hugol. O filho dela tinha 16 anos. Quando foi oferecido para ela a possibilidade da doação, ela me disse: “Eu vim até aqui rezando por um milagre. Eu não sabia que o milagre seria o meu filho na vida de outras pessoas.”
Esse, para mim, é o milagre da doação de órgãos. É a oportunidade de salvar outras vidas, mesmo depois da morte.
Italo Wolff – Qual a perspectiva para o futuro da área em Goiás? Há investimentos para ampliação do programa?
Estou na central de transplantes desde uma época que não tínhamos sede, nosso número de funcionários era muito reduzido, nossa estrutura era bem menor. Hoje temos sede, três unidades dentro dos maiores hospitais de urgência do estado, mais de 130 funcionários, cada vez mais profissionais treinados e habilitados para transplantar. Então, a tendência é evoluir.
O HGG é hoje o nosso maior centro transplantador, com 85% dos procedimentos do estado. Todos feitos pelo SUS, com uma estrutura que é melhor do que a da maioria dos hospitais privados. Em breve, começaremos a fazer transplantes de medula e pâncreas no HGG.
Já foi investido muito e os investimentos estão cada vez maiores. A atual gestão da SES abraçou a causa dos transplantes. Temos acesso ao secretário de saúde e podemos resolver problemas de forma rápida. A coordenação nacional já esteve em Goiás e ficou surpresa com o apoio e eficiência.