Ao contrário de João Moreira Salles, professor da UERJ afirma que há o bolsonarismo, sistema coerente baseado em conjunto de falsidades e que não se pauta pela realidade

Professor João Cezar de Castro Rocha lança em breve o livro "Guerra Cultural e Retórica do Ódio: crônicas de um Brasil pós-político" | Foto: Reprodução/Assembleia MG
Professor João Cezar de Castro Rocha lança em breve o livro “Guerra Cultural e Retórica do Ódio: crônicas de um Brasil pós-político” | Foto: Reprodução/Assembleia MG

Em março, o professor titular de Literatura Comparada da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), João Cezar de Castro Rocha, estava na sala de embarque quando atendeu o Jornal Opção para dar detalhes de sua pesquisa em andamento sobre a guerra cultural bolsonarista, baseada na “mentalidade militarista do bolsonarismo através do resgate da doutrina de segurança nacional, da matriz narrativa do Orvil e do sistema de crenças do Olavo de Carvalho”.

Mais de uma hora depois, a conversa foi encerrada para que o doutor em Letras pela UERJ e Literatura Comparada pela Stanford University pegasse o voo para os Estados Unidos, onde lançaria mais outro livro. No meio da viagem, a pandemia da Covid-19 foi decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

De lá para cá, o Brasil, que ainda não tinha qualquer morte confirmada pela doença causada pelo novo coronavírus, ultrapassou as mais de 114 mil vítimas Covid-19 e trocou de ministro da Saúde duas vezes. Enquanto o total de infecções e óbitos subia de forma cada vez mais rápida no País, um general da ativa do Exército foi efetivado como interino na pasta, cargo que ocupa há mais de três meses.

“Acredito que a minha hipótese infelizmente se confirma de maneira absoluta. O bolsonarismo não permite o governo Boslonaro”, afirma João Cezar em nova entrevista ao Jornal Opção. O professor fala sobre a conclusão da pesquisa, o lançamento previsto para setembro do livro “Guerra Cultural e Retórica do Ódio: crônicas de um Brasil pós-político” pela goiana Editora Caminhos, o risco de uma possível reeleição do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em 2022 e em que situação se encontram os partidos de esquerda.

Como foi o contato com a Editora Caminhos para viabilizar a publicação do livro “Guerra Cultural e Retórica do Ódio: crônicas de um Brasil pós-político”?
Tenho contato com a Editora Caminhos há bastante tempo. O editor Cláudio Ribeiro, um jovem de brilhante historiador, foi meu aluno e é uma pessoa muito preparada. Mário Zeidler Filho é o editor do livro, com quem mantenho um produtivo diálogo intelectual. Conversamos muito sobre vários projetos possíveis. Pareceu uma excelente opção editar com a Caminhos porque assegura ao projeto um cuidado editorial que, infelizmente, nem sempre é comum hoje no Brasil.

Mais do que apenas editar o livro, dialogamos frequentemente sobre o tema. Os dois me mandam referências e trocamos ideias. É na verdade uma interlocução, que redunda na edição. Para mim é uma parceria muito interessante.

O livro já tem uma data definida de lançamento?
Temos a capa definida e a diagramação foi iniciada. Estamos nas revisões finais. Acredito que até o final de setembro o livro deve estar disponível. Inicialmente, a versão que terá mais visibilidade será em Kindle (e-book) ou em um aplicativo similar dada a dificuldade atual de fazer lançamentos físicos. Mas haverá a edição impressa. Zeidler Filho tem planejado uma pré-venda com o recebimento do livro autografado. A dificuldade da edição impressa agora é circular devido à pandemia.

“Temos a capa definida e a diagramação foi iniciada. Estamos nas revisões finais. Acredito que até o final de setembro o livro deve estar disponível” | Imagem: Divulgação/Editora Caminhos

O sr. divulgou recentemente a capa do livro.
Ficou bonita, não foi?

Os detalhes das letras lembram etiquetas de arquivos antigos, o que ficou muito bonito. Como se chegou a esse modelo final da capa do livro?
O subtítulo do livro é “Crônicas de um Brasil pós-político”. A dificuldade real de escrever um livro como este é que ao mesmo tempo já existe uma bibliografia bastante ampla da cena política contemporânea desde as manifestações de junho de 2013. Há uma bibliografia muito valiosa e que situa a ascensão da direita e da extrema direita no Brasil em um escopo comparativo com fenômenos similares em todo o mundo.

Contudo, me parece que o que falta é o que meu livro pretende oferecer: uma análise, por assim dizer, antropológica do bolsonarismo como um movimento com sua dinâmica própria. Isso é bem importante porque o livro, muito mais do que uma publicação acadêmica, é um conjunto de observações baseada em vasta bibliografia, mas, sobretudo, é baseado em observações do próprio momento contemporâneo.

O sr. discute a questão antropológica de como funciona o bolsonarismo, com seu apoio e o governo em si. E tem se discutido bastante a mudança para um Jair Bolsonaro (sem partido) mais calado, o que analistas apontam como a atuação de partidos do Centrão para tornar o governo mais palatável. Mas semanalmente na internet, o presidente volta a atacar o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, cita a hidroxicloroquina. O que mudou na análise que o sr. fez antes da pandemia e o que mudou a partir do comportamento do governo diante da Covid-19?
Antes é preciso esclarecer o que defino como análise antropológica. Em um ensaio publicado na edição de julho da revista piauí, João Moreira Salles escreveu um texto (“A morte e a morte”) muito inteligente, como tudo que ele faz, mas um ensaio que me parece profundamente equivocado, embora revelante, por ser sintomático do que eu tento fazer pelo avesso. João Moreira Salles afirmou que não há bolsonarismo, só há bolsonaristas; retirando do bolsonarismo qualquer espécie de conjunto coerente de ideias ou de uma direção específica para determinados princípios. Só haveria então bolsonaristas. Não haveria um cérebro orientador, só haveria corpos.

É uma análise que me parece profundamente equivocada e que tem consequências muito graves para a reflexão, mas, sobretudo, para a ação política. Se, de fato, o bolsonarismo não existe, só há bolsonaristas, isto é, não há cérebro, só há corpos em movimento, podemos, de um lado, cruzar os braços, porque um dia esses corpos vão se cansar. Por definição, não existe uma maratona infinita. Levaria o corpo à exaustão e à morte durante a corrida mesma.

Por outro lado, se afirmarmos que não há bolsonarismo e só há bolsonaristas, eu apaziguo a minha consciência, me considero moralmente superior ao fenômeno e posso, por assim dizer, arrebitar o nariz e me preocupar pouco com ele, como se o bolsonarismo a mim não me dissesse respeito. É como se, em relação ao bolsonarismo, eu não tivesse nenhuma espécie de participação ou responsabilidade. As duas atitudes me parecem muito danosas.

O que proponho com uma discussão de caráter antropológico supõe, no primeiro momento, descrever a dinâmica do movimento. Uma vez que se compreenda a dinâmica do movimento, é preciso criar uma linguagem para comunicar à sociedade as consequências desastrosas do bolsonarismo. A dificuldade que há é que hoje no Brasil a direita dispõe de linguagem, coerência interna e tem princípios muito claros. Para uma pessoa como eu, de esquerda, é o oposto de tudo que eu imagino. Mas precisamos reconhecê-lo.

Quando digo que o bolsonarismo tem linguagem, afirmo que todos os bolsonaristas têm um discurso uníssono em relação a uma série de questões. Na educação, por exemplo, os bolsonaristas dirão que o fracasso no Pisa [Programa Internacional de Avaliação de Estudantes] se deve à doutrinação provocada pelo método Paulo Freire. E dispõem de um “estoque” de argumentos para os mais diversos temas.

Na live semanal de 23 de julho, Bolsonaro citou o Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação] com o discurso de que o governo federal sempre apoiou a aprovação. Foi quando o presidente disse que a educação no Brasil está ruim por culpa da esquerda.
Exato. O bolsonarismo tem linguagem. Se o assunto for o Poder Legislativo, os bolsonaristas dirão que o PT corrompeu todas as instituições. E terão clichês na ponta da língua: Mensalão, Petrolão e “o maior escândalo da história da humanidade”. Os clichês estão preparados e são bem usados. Se se tratar de uma opção ao bolsonarismo em 2022, dirão que os governadores de São Paulo, João Doria (PSDB), e do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), são comunistas. E que prefeitos e governadores tentam implantar a ditadura comunista que fracassou em 1964.

Se eu simplesmente digo “esses dados são equivocados” porque são evidentemente baseados em falsidades, logo, a narrativa é “falsa”, tal afirmação é antropologicamente absurda. Pensemos com Claude Lévi-Strauss e seu clássico “Raça e História”, apresentando em 1948, em um congresso da Unesco, reunido para debater a questão da raça e, sobretudo, para repudiar o holocausto. Os textos apresentados mostravam que, cientificamente, a raça não é um conceito. Do ponto de vista científico, não existem raças diferentes. Somos todos homo sapiens. Sem dúvida.

Isto é, se você tem olhos azuis ou olhos negros, se a sua pele é branca ou preta, somos todos homo sapiens. Cientificamente, o conceito de raça é um não-conceito. E Lévi-Strauss advertia: sabemos disso e é muito importante sabê-lo. No entanto, isso não quer dizer que o conceito de raça, embora cientificamente inadequado, não produza efeitos sociais profundos. Seria absurdo que um antropólogo dissesse: “eu me recuso a estudar o efeito social da ideia de raça porque cientificamente o conceito não existe”.

A minha proposta é a mesma. O bolsonarismo reúne um conjunto de coerente de ideias, embora com base em dados falsos. Esta reunião tem uma coerência interna tão grande, que chega a ser paranoica, dispensando o princípio da realidade. Um exemplo: você diz para um bolsonarista que não há doutrinação de Paulo Freire na escola pública brasileira. Você explica que o método Paulo Freire foi criado para o que se denomina EJA: Educação de Jovens e Adultos.

É um método de alfabetização que somente pode ser aplicado em adultos, porque implica que o adulto já tem uma vivência própria no mundo, da qual se extraem “as palavras geradoras”. Para uma criança em idade de alfabetização escolar, de 5 a 7 anos, é simplesmente impossível aplicar o método Paulo Freire porque a criança não possui a vivência que o adulto possui. É algo bem elementar, não é mesmo?

Na mesma live de 23 de julho, Bolsonaro usou o método Paulo Freire para criticar a esquerda, ao dizer que culpado pelo fracasso da educação no Brasil seria o método Paulo Freire.
O que tento mostrar é que precisamos ter uma estratégia dupla. Em um primeiro momento, é preciso compreender, com olhar antropológico, como a coerência interna de um conjunto de falsidades transforma-se em verdade absoluta para os bolsonaristas. Insisto: imagine que você é um antropólogo, visita um determinado grupo e pede que o narrador conte o mito de origem daquela comunidade. No meio do mito de origem, o antropólogo interrompe o ancião e diz: “me desculpe, mas isso não é verdade, o mundo começou com o Big Bang”. Seria absurdo!

Quando João Moreira Salles diz que não bolsonarismo, só há bolsonaristas, isso é o que se diz em inglês wishful thinking, o que ele deseja que seja. Não é correto. O bolsonarismo é um sistema profundamente coerente, reunindo um conjunto de falsidades, cuja inter-relação produz um sistema de crenças que não pode ser destruído exclusivamente do ponto de vista racional. Tem de ser compreendido e precisa ser exposto. Para cada situação polêmica, os bolsonaristas têm uma linguagem própria. E uma visão de mundo uniforme, uma visão de mundo bélica, agônica.

É sempre um combate. Combate contra quem? É quando surge a estrutura de pensamento, na qual existe uma constante, por assim dizer, eterna, conspiração da esquerda, que não deseja mais tomar o poder pelas armas para impor a ditadura do proletariado. Agora, pelo contrário, a esquerda compreendeu que esta forma de tomar o poder não é tão eficaz quanto conquistas corações e mentes. Qual a resposta possível? Vencer uma eleição é muito pouco. É preciso destruir as instituições que foram aparelhadas pela esquerda, segundo a narrativa bolsonarista

Sabemos que o que eu disse agora é historicamente  absurdo, um delírio. Porém, 57,7 milhões de brasileiros acreditaram nesse enredo… Para os bolsonaristas radicais, o que acabei de dizer é a mais profunda verdade. Se eu tentar demonstrar historicamente o equívoco, dirão que estou cego. O que se faz em uma situação como essa? Não é nada fácil. O que pode ser feito é expor a dinâmica interna deste movimento e derivar a consequência desastrosa: uma sociedade autoritária, dominada pelo ódio, pelo desejo de eliminar tudo que não seja espelho.

E o que mudou da percepção do início de março para hoje?
Se você lembrar o que eu propunha em março, parece que eu tinha absoluta razão. Nossa conversa em março foi a última entrevista que concedi antes da decretação da pandemia. Quando cheguei nos Estados Unidos, em Boston, para lançar meu segundo livro publicado em inglês, a pandemia havia chegado no país, mas ainda não ao ponto de cancelarem eventos. Tanto que pude lançar meu livro. Quando voltei, a pandemia já estava declarada.

Disse em março que o paradoxo do bolsonarismo era o paradoxo da guerra cultural. Sem guerra cultural não há bolsonarismo. Não há bolsonarismo sem criação de inimigos em série. Não se pode criar inimigos em série se não se desconsiderar dados objetivos e se não se fantasiar a realidade. Na educação, o inimigo é o método Paulo Freire. Na política, o inimigo é a tentativa constante da esquerda de tomar o poder. Na economia, o inimigo é o Estado patrimonialista. Sempre há um inimigo, impulso agônico que dá linguagem, coerência interna e reúne esse conjunto de falsidades.

Mas eu dizia que, desta forma, não haveria governo. O paradoxo é que sem guerra cultural não haveria bolsonarismo. E com bolsonarismo não haveria governo Bolsonaro. Infelizmente, infelizmente, infelizmente, e é preciso repetir e repetir, infelizmente, superamos hoje 114 mil mortos vítimas da Covid-19. É a segunda maior tragédia da história brasileira. Já são mais mortos do que nos cincos da Guerra do Paraguai. Só há um fato que supera esta pandemia na história brasileira desde o ano de 1.500. Quando chegaram os portugueses, o genocídio indígena foi muito pior.

“Quando anunciou que estava contaminado, com uma alegria de difícil compreensão depois de ter se recusado a mostrar os exames durante meses, retirou a máscara diante de jornalistas”

"Isto supera as nossas piores expectativas. Porque não é apenas uma inépcia completa em termos de administração. É uma incúria absoluta em relação ao outro" | Foto: Reprodução/Facebook
“Isto supera as nossas piores expectativas. Porque não é apenas uma inépcia completa em termos de administração. É uma incúria absoluta em relação ao outro” | Foto: Reprodução/Facebook

Até porque é um genocídio que não acabou.
E que se agravou com a pandemia. Quase 115 mil mortos e a curva de óbitos segue alta. E nesse cenário trágico ultrapassamos três meses sem um ministro efetivo na Saúde. No dia 23 de julho, o general da ativa, ministro interino – essa novidade semântica do governo Bolsonaro, que é o interino permanente – Eduardo Pazuello, declarou que pessoas assintomáticas não transmitem a doença.

Baseado em quê?
Este senhor está no comando interino do Ministério da Saúde há mais de três meses e ainda não aprendeu que o grande dilema da Covid-19, diferentemente de outras gripes, é que, se nas outras gripes os sintomas eram evidentes e por isso o isolamento era mais eficaz, um dos maiores problemas do controle da Covid-19 é que há um período longo em que a pessoa assintomática contamina outras. Depois de mais de três meses à frente do ministério, o general não aprendeu isso?

Dos recursos emergenciais destinados ao combate à pandemia, o ministro interino utilizou apenas um terço. O que o interino permanente está economizando? Antes, o dilema era o de que o êxito do bolsonarismo implicaria no fracasso do governo Bolsonaro. A previsão que fiz, com base na análise da guerra cultural, infelizmente tornou-se cristalina com a atual crise na saúde. Temos um presidente – e esqueçamos a sua falta de empatia, as suas declarações estapafúrdias, a sua total incapacidade de pensar em outra coisa que não seja ele mesmo – que foi dar um passeio de motocicleta no jardim do Palácio da Alvorada no horário de expediente. Sem máscara, o presidente retira o capacete e conversa com funcionários que cuidam do jardim.

Mas Bolsonaro estava contaminado! Este senhor estava contaminado! Quando anunciou que estava contaminado, com uma alegria de difícil compreensão, depois de ter se recusado a mostrar os exames durante meses, retirou a máscara diante de jornalistas. Isto supera as nossas piores expectativas. Porque não é apenas uma inépcia completa em termos de administração. É uma incúria absoluta em relação ao outro.

São quase 115 mil mortos. E este senhor tira fotografia com a camisa de um time de futebol. Sorrindo. Nem sequer possui o mínimo de compostura. Uma compostura elementar. Este senhor toma o remédio de eficácia ainda não  comprovada e levanta uma caixa do remédio para uma multidão como se fosse uma hóstia.

Muitos fizeram piada com a situação ao comparar com a cena do filme “O Rei Leão” em que o rei ergue seu filho, Simba, e o apresenta aos súditos do reino animal. O jornalista e comentarista Calos Andreazza, da BandNews FM, descreveu aquele momento como um culto à hidroxicloroquina. Como o sr. avalia a situação?
A análise do Carlos Andreazza foi brilhante. Este gesto possui, inclusive, um mobiliário próprio, que tem um nome muito bonito: ostensório. O ostensório literalmente ostenta a hóstia sagrada aos fiéis. Há uma questão teológica fascinante. Houve na Idade Média um momento de dúvida. A hóstia, que é o pão que Cristo consagra na última ceia, representa para o católico literalmente trazer o corpo de Cristo para dentro de si mesmo. Portanto, é o que há de mais sagrado na eucaristia. Ora, tal sacramento fundamental podia ser ministrado por padres que tinham filhos, que tinham uma vida dissoluta, que não eram respeitados pela comunidade? Era um problema sério.

A Igreja, no século XIII, estabeleceu uma regra: no momento em que o padre levanta a hóstia e a consagra, o padre é redimido de todos os seus pecados. Em uma igreja católica, geralmente no local onde o padre consagra a hóstia tem uma claraboia, numa imagem muito bonita da iluminação redentora. E o padre vira de costas para os fiéis porque, em primeiro lugar, o padre mostra a hóstia para Deus. Só depois da consagração da hóstia por Deus é que ele se vira e a oferece à comunidade.

No caso do Bolsonaro, não há claraboia possível! O presidente não mostra a cloroquina para uma instância sacra, a não ser diretamente para a própria multidão. É uma profanação completa do sacramento. É um absurdo. É uma profanação tão grande que o gesto de mostrar a cloroquina para o povo, desrespeitando profundamente todos os elementos do ritual, que assim se torna pura caricatura. O Messias Bolsonaro chegou a mostrar a mesma hóstia-cloroquina a uma inocente ema. A cena é ainda melhor porque a ema dá de costas e vai embora.

O bolsonarismo se caracteriza por dar de costas à realidade. Pois, agora, infelizmente, com a crise da saúde, é a realidade que dará as costas para o bolsonarismo.

“O presidente não mostra a cloroquina para ninguém a não ser para a própria multidão. É uma profanação completa do sacramento. É um absurdo”

Quando o sr. concedeu a primeira entrevista, a pesquisa apontava para o fato de a guerra cultural fazer com que o bolsonarismo exista e sobreviva como pensamento, instituição e governo. Como o sr. enxerga a guerra cultural bolsonarista na saúde, considerando que temos um ministro interino há mais de três meses, Bolsonaro volta a criticar Mandetta, que se colocou como pré-candidato disposto a dialogar com Sergio Moro, e a constatação do baixo investimento na área durante a pandemia, com kits de testagem entregues com menos reagentes do que o necessário?
Acredito que a minha hipótese infelizmente se confirma de maneira absoluta. O bolsonarismo não permite o governo Boslonaro. Sem considerar dados objetivos, não se administra: é simples assim. Dizia em março que imaginava que o governo Bolsonaro entraria em colapso por volta do primeiro semestre de 2021. O governo Bolsonaro começa a entrar em colapso agora. O paradoxo que se viverá agora é o fato de que Bolsonaro para sobreviver como governo terá de se afastar sistematicamente do bolsonarismo. Mas afastado do bolsonarismo, Bolsonaro volta a ser o que o presidente sempre foi: nada.

Mas, cuidado: não é um nada qualquer. É um nada cujos últimos verões nós sabemos o que a família Bolsonaro fez. Bolsonaro não é apenas um político, ele é toda uma franquia. Levou para o negócio da política três filhos e uma ex-mulher. E agora o Supremo Tribunal Federal, o Ministério Público do Rio de Janeiro e jornalistas investigativos tocam o dedo na ferida. O Bolsonaro que se apresentou como antissistêmico revelará exatamente o que é: uma franquia para obter dinheiro de recursos públicos.

A crise da saúde deve acelerar o processo de decomposição do governo Bolsonaro, o que era um processo inevitável. Enquanto o bolsonarismo existir não pode haver governo Bolsonaro. É uma equação simples. Mas uma equação simples que precisa ser explicada. O bolsonarismo só existe se o motor da guerra cultural se mantiver ativo. E o motor da guerra cultural é uma identificação de inimigos em uma memória perversa da Doutrina de Segurança Nacional da ditadura militar. Havendo inimigos, reunimos forças para eliminá-los. A reunião de forças assegura a coerência interna do grupo. Coerência de rebanho. É o que temos visto até agora.

No entanto, o bolsonarismo só é possível se o movimento der de costas à realidade, baseado na coerência interna de um sistema de crenças todo composto por falsidades, mas cuja inter-relação das falsidades forma uma teoria conspiratória labiríntica que dá força de coesão para o grupo. A crise da saúde, infelizmente, tende a acelerar o processo de decomposição.

Um exemplo são os jornalistas do Terça Livre, que fizeram uma dancinha macabra sobre o coronavírus. É uma dança infame de 45 segundos, em que Italo Lorenzon e Allan dos Santos debocham do coronavírus e Allan dos Santos diz “coronavírus é o caral…”. Não preciso completar. Olavo de Carvalho negou que tivesse havido uma única morte devido ao coronavírus. Você viu isso?

O próprio YouTube removeu o vídeo por violação de regras da plataforma.
O negacionismo do Bolsonaro o torna hoje uma figura caricata no mundo inteiro. O Brasil se tornou um país pária. Muitos brasileiros não poderão viajar, porque terão de ficar em quarentena. No final de julho, a Federação Internacional de Automobilismo (FIA) anunciou que não haverá Grande Prêmio do Brasil em 2020.

Será a primeira vez desde 1973 que o Brasil ficará de fora da Fórmula 1.
É a primeira vez em 47 anos que não haverá Grande Prêmio no Brasil. Se o bolsonarismo só existe virando as costas à realidade, a crise causada pela pandemia anuncia o momento em que a realidade dará as costas ao bolsonarismo.

Há analistas que colocam que Bolsonaro talvez não esteja a abandonar completamente a ala ideológica mais radical, o que o sr. chama de guerra cultural, mas teria a deixado fora da superfície, a partir do segundo escalão do governo. Com o acordo com o Centrão para dar rumo ao governo, Bolsonaro se fortaleceria com a aprovação de pautas pontuais no Congresso. Enquanto youtubers bolsonaristas passaram a apagar seus vídeos como numa queima de provas, políticos como Roberto Jefferson (PTB) passaram a ser parte da defesa incondicional de Bolsonaro. É possível que a guerra cultural seja mantida, mas não nos cargos de destaque do governo?
Acredito que isso seja difícil. Porque não há Bolsonaro sem bolsonarismo. Bolsonaro sem bolsonarismo não é um político, é uma franquia. Bolsonaro sem bolsonarismo fica sem a incitação permanente das massa digitais dispostas a ir às ruas. Bolsonaro sem isso, abre espaço para o que o Ministério Público do Rio de Janeiro avance sem freios na investigação sobre o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ). Não é uma investigação sobre Flávio Bolsonaro. É uma investigação da franquia Bolsonaro.

Insisto: Jair Messias Bolsonaro não é um político, é uma franquia. Uma franquia montada para desviar dinheiro dos cofres públicos. O caso de Flávio Bolsonaro não é excepcional. Há pouco tempo, um veículo de comunicação mostrou as movimentações atípicas dos funcionários de Jair Bolsonaro enquanto deputado federal. Inúmeras pessoas eram demitidas e recontratadas no mesmo dia, às vezes com salários maiores ou menores. Uma autêntica orgia de nomeações, destituições e renomeações.

Vou repetir mais uma vez: Bolsonaro não é um político, é uma franquia. Assim como tem a loja de chocolates Kopenhagen, tem a família Bolsonaro. Já são quatro políticos, Jair e três filhos. Uma ex-mulher foi vereadora no Rio de Janeiro. Sem o bolsonarismo, isto é, sem a pressão popular declarada, tanto nas redes sociais quanto nas ruas – sobretudo nas ruas –, Bolsonaro é o alvo mais fácil de todos os presidentes da República que o Brasil jamais teve! Basta que o Ministério Público do Rio de Janeiro avance na investigação, basta que o Supremo Tribunal Federal investigue as contas de Facebook e de Twitter que realizaram campanhas sistemáticas de difamação e de difusão de notícias falsas. Sabemos que dois filhos de Bolsonaro aí estão.

Sem bolsonarismo, Bolsonaro é alvo fácil. Com bolsonarismo, não há governo possível. Com a crise da pandemia, chegamos a uma situação-limite. Bolsonaro precisou refrear a escalada golpista, mas não tenhamos memória tão curta. Há somente rês meses Jair Bolsonaro deu declarações no seu cercadinho, no seu puxadinho, no Alvorada, para os seus fãs dizendo que “acabou, porra”. No mesmo dia, o filho Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) participou de uma transmissão no Terça Livre e disse a seguinte frase: “Falando bem abertamente, opinião do Eduardo Bolsonaro, não é mais uma opinião de se, mas de quando isso vai ocorrer”. A ruptura institucional! Assisto mesmo ao Terça Livre, não tenho nariz empinado. Se você não assistir ao Terça Livre, como irá entender o que acontece no bolsonarismo?

Há apenas 90 dias, Bolsonaro escalou uma aventura golpista. Lembre-se da nota do general Augusto Heleno [ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República], que dizia que o celular do presidente não seria, em nenhuma circunstância, disponibilizado. Lembre-se da declaração do general Fernando Azevedo e Silva [ministro da Defesa]: “A simples ilação de o presidente da República ter de entregar o seu celular é uma afronta à segurança institucional.” Houve no Brasil há três meses uma escalada golpista. Essa escalada golpista foi o auge do bolsonarismo porque reuniu alguns acontecimentos particularmente graves.

Temos sempre o hábito de conciliar e não evidenciar as fraturas. Mas houve em Brasília um acampamento que, sem dúvida, era uma espécie de Exército de Brancaleone: os 300, que não chegavam a 30… Havia armamentos, os integrantes alardeavam treinamento militar para exterminar a esquerda e havia um acampamento com endereço determinado. Essas pessoas foram ao Supremo Tribunal Federal e lançaram rojões em uma evidente alusão à destruição do STF. Houve durante um mês neste País, todos os domingos, passeatas inaceitáveis para pedir intervenção militar, retorno do AI-5, fechamento do Congresso e extinção do STF.

Tentaram retomar essas manifestações no dia 19 de julho, mas em um número muito menor de participantes.
Foi o momento em que o bolsonarismo tentou tomar controle da situação, por meio de uma escalada golpista. Provavelmente a história dirá que devemos mais do que seremos capazes de reconhecer agora ao Supremo Tribunal Federal. A ação firme do ministro Alexandre de Moraes ao prender a líder dos 300, ao autorizar a investigação de parte dos blogueiros que se dizem jornalistas e ao impor ao presidente uma série de derrotas.

O Congresso tem tido uma importância excepcional neste momento. Ao aprovar o Fundeb, não promoveu uma aprovação qualquer. Contrários só houve sete votos. Não são muitos os exemplos em toda a história do Parlamento brasileiro de uma vitória tão grande de uma ideia e de uma derrota tão acachapante do governo. Mas não nos esqueçamos de que há três meses houve uma preocupante escalada golpista. A escalada golpista correspondeu a uma espécie de tentativa – não quero dizer final, porque não acabou – mais óbvia do bolsonarismo de suprimir as instituições e impor o projeto autoritário de ação direta da extrema direita.

“A escalada golpista marcou a tentativa do bolsonarismo de se impor ao governo Bolsonaro. A disputa interna é entre bolsonarismo e governo Bolsonaro”

“A resposta do Supremo Tribunal Federal e as respostas sucessivas do Congresso marcaram uma derrota significativa do bolsonarismo. Todos os deputados mais radicais foram todos retirados da vice-liderança na Câmara” | Foto: Reprodução/Facebook

Nesse período de constante ameaça às instituições, com o ministro da Defesa a sobrevoar manifestação antidemocrática de helicóptero com o presidente, surgiu a dúvida se as Forças Armadas caminhavam com o projeto golpista. Desde o pronunciamento de Bolsonaro de 24 de março, quando chamou a Covid-19 de “gripezinha” e “resfriadinho”, o comandante do Exercito, general Edson Leal Pujol, geralmente se colocava à disposição na batalha contra a pandemia. Até que assinou uma nota no final de julho a favor da cloroquina, medicamento que o Exército gastou mais de R$ 1,5 milhão na fabricação. As Forças Armadas estão com o coturno atolado no governo até que ponto?
A escalada golpista marcou a tentativa do bolsonarismo de se impor ao governo Bolsonaro. A disputa interna é entre bolsonarismo e possível governo Bolsonaro. A resposta do Supremo Tribunal Federal e as respostas sucessivas do Congresso marcaram uma derrota significativa do bolsonarismo. Todos os deputados mais radicais foram retirados da vice-liderança na Câmara. A última foi a Bia Kicis (PSL-DF).

Houve por parte dos bolsonaristas um movimento de apagamento da memória imediata. O número de vídeos que os bolsonaristas apagaram das redes sociais é uma coisa espantosa. Passa das dezenas de milhares. Todos os vídeos nos quais, valentes e corajosos, ameaçavam ministros do Supremo Tribunal Federal, entre outras instituições e políticos, como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). A escalada golpista foi literalmente uma espécie de golpe interno em que o bolsonarismo tentou tomar as rédeas do governo Bolsonaro com o apoio claro do presidente.

O recuo do bolsonarismo marca a tentativa do governo de sobreviver, ou, mais precisamente, de começar! A presença de um militar da ativa à frente do Ministério da Saúde é um problema. Já são quase 115 mil mortes. Quando o general Pazuello assumiu como ministro interino, o Brasil tinha 14.817 mortos pela Covid-19. A partir da entrada do Exército na Saúde, com um militar da ativa como ministro e praticamente 30 militares para ocupar cargos técnicos em altos escalões, são quase 100 mil mortos nas costas do Exército.

O Exército se comprometeu com a cloroquina. Comprou a substância a um preço muito mais caro do que o usual. É óbvio que houve um aumento do preço devido à procura. Mas ainda assim, parece que ainda assim o preço foi muito alto. Nós temos estoque de cloroquina para os próximos anos. Mas a cloroquina não tem efeito comprovado, por enquanto, contra a Covid-19. É óbvio que a imagem das Forças Armadas, especialmente do Exército, está comprometida.

Há um receito muito claro que me ajuda a explicar uma declaração dadaísta do presidente da República. Em meados de julho, numa de suas lives, o presidente disse que ele não recomendava, mas que tomaria a cloroquina quem desejasse.

E no final da live de 16 de julho, Bolsonaro disse que não é garoto-propaganda da hidroxicloroquina, mas mostrou a caixa do medicamento. Fora a declaração confusa: “Não tem comprovação científica de que seja eficaz, mas também não tem comprovação científica que não tem comprovação eficaz. Nem que não tem, nem que tem”.
O presidente disse que não recomendava porque não é médico, mas que tomava e que tome quem quiser. Esse discurso dadaísta pode ser traduzido. Na entrevista de março, traduzi os tuítes surrealistas do Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) pela matriz narrativa do Orvil [livro ao contrário]. Podemos traduzir a declaração dadaísta do presidente da seguinte forma: receio de uma futura responsabilização jurídica pela condução da questão da saúde durante a pandemia.

Lembre-se que o presidente tentou baixar uma determinação por meio da Medida Provisória 966 segundo a qual nenhum servidor público poderia ser processado por atitudes tomadas no enfrentamento da pandemia. O Supremo barrou a absurda medida. Com as comunidades indígenas foi ainda pior. A populações indígenas tiveram negado o direito, por exemplo, a água potável e a equipamentos de proteção individual (EPIs). Isso caracteriza algo muito grave para tribunais internacionais, que podem vir a responsabilizar a Presidência da República.

Mas, para a comunidade internacional, o fato de que o desmatamento da Amazônia avança durante a pandemia em consonância com as declarações estapafúrdias e abjetas do ministro do Meio Ambiente [Ricardo Salles], que disse que deveríamos aproveitar o fato de que agora os olhos da imprensa estão voltados para a Covid-19 para aprovar medidas de legislação infralegal que em última instância dificultam a fiscalização. Surpreendente que um sujeito faça uma declaração dessa, a fala venha a público, e o sujeito não mude de país, pela enorme vergonha de enfrentar os seus concidadãos no dia seguinte.

Para a comunidade internacional, os prejuízos que serão advindos dessa atitude são palpáveis. É grande a possiblidade de que o tão celebrado acordo com a União Europeia não vingue porque precisa ser aprovado por todos os países. Há países que já sinalizaram que são contrários à assinatura do acordo devido à política ambiental brasileira.

A situação do Exército hoje é uma situação tão delicada quanto a situação do Bolsonaro. Presidente tem sobre si o avanço das investigações do Ministério Público do Rio de Janeiro, o avanço das investigações no Supremo Tribunal Federal da rede de difusão de discurso de ódio e de notícias falsas, há investigações em curso sobre o passado de Bolsonaro, tanto na Assembleia quanto durante um dos casamentos. Uma ex-mulher adquiriu um número enorme de imóveis, alguns pagos com dinheiro vivo. Todas essas situações tornam o cenário político muito complexo.

Diante dessa situação, a única forma de sobrevivência do governo Bolsonaro é alienar o bolsonarismo. Não há outra alternativa. Se, neste momento, houvesse um recrudescimento do bolsonarismo com ataques a Rodrigo Maia, Alexandre de Moraes, ao STF e às instituições, como se o Bolsonaro não fosse o que é: uma franquia. Como se a família Bolsonaro fosse uma família de vestais. Há limite para a mistificação da realidade. E a crise da saúde é o limite máximo.

Alguns empresários, verdadeiramente desprezíveis, disseram que não passaríamos de 4 mil ou 5 mil mortos. O deputado federal e ex-ministro Osmar Terra (MDB-RS) afirmou por diversas vezes que estava tudo sobre controle. Empresários absolutamente espantosos na sua total falta de sensibilidade humana ainda sustentam essa ideia. São mais de 114 mil famílias que choram a perda de entes queridos, amigos, alunos, professores. São quase 115 mil pessoas. O número segue em alta. Podemos chegar hoje ao número espantoso de mais de 115 mil mortos.

Não estou dizendo que a pandemia seja culpa do governo Bolsonaro. Seria um oportunismo barato. Seria algo tão abjeto quanto as declarações do ministro Ricardo Salles ou do ministro Paulo Guedes [Economia].

Gerou muita discussão entre os militares publicamente, mas nos bastidores do poder em Brasília a tratativa foi mais cordial entre o ministro Gilmar Mendes, do STF, e o presidente Bolsonaro e o ministro interino da Saúde. Mendes que a continuação dos militares no governo é se tornarem responsáveis por um genocídio no Ministério da Saúde. Quão grave é falar em genocídio na Saúde?
Genocídio é um termo técnico que surgiu no Direito Internacional depois da Segunda Guerra Mundial como reação ao holocausto para caracterizar um crime que não somente o efeito indesejado de uma guerra. Genocídio sempre implica em uma ação deliberada e determinada contra certa etnia. Tecnicamente, não faz sentido dizer que o governo Bolsonaro pratica genocídio. É preciso ter muito cuidado com as palavras. Se banalizarmos as palavras, quando precisarmos recorrer à palavra justa, ela perdeu a força.

Não diria que o governo é um governo genocida nesta acepção técnica. Eu diria que a omissão do governo federal na contenção e na criação de um planejamento nacional para a contenção da epidemia e recuperação da economia é uma omissão criminosa e que redundará em um número muito maior de mortes do que seria infelizmente necessário pelo próprio fato de que enfrentamos uma peste. Não é possível considerar que, em si mesma, a peste seja responsabilidade do governo. Isso é absurdo.

Sou de esquerda, sou totalmente opositor ao regime, mas procuro ter bom senso. A peste, como a peste negra, não é responsabilidade de ninguém. Mas a omissão deste governo em relação aos cuidados necessários para minorar as mortes, que são inevitáveis, e para prevenir o desastre financeiro que virá pode levar a futuros processos, tanto no Brasil como fora do País. Mas eu não usaria a palavra genocídio, a não ser que se comprove no futuro que houve omissão deliberada em relação, por exemplo, às populações indígenas.

Cresceu a discussão sobre qual seria a imagem que os militares tentaram passar desde o apoio eleitoral a Jair Bolsonaro em 2018. Cada vez mais, as Forças Armadas participam do governo. O Tribunal de Contas da União apontou que são mais de 6 mil militares da ativa e da reserva com cargos na gestão Bolsonaro. É possível que a tentativa de passar a limpo a história de que os militares seriam bons gestores públicos sofra deterioração por uma participação tão ativa no governo?
Se a tentativa dos militares era, em tese, oferecer uma tutela ao destemperado Bolsonaro e mostrar a capacidade logística superior das Forças Armadas, o que permitiria estabelecer um contrapeso para os destemperos do presidente, o que ocorreu, infelizmente, foi o contrário. Os militares que estão no governo foram contagiados pelo destempero do Bolsonaro. No início do governo, o general Augusto Heleno era visto como alguém sensato com quem era possível dialogar e aparar arestas. Hoje, ele entrará para a história o general do “Foda-se!”. Uma trajetória melancólica.

Mas pouco tempo depois começaram a caracterizá-lo como um ministro olavizado. O presidente da Câmara disse que o general Augusto Heleno tinha se tornado um radical ideológico.
Logo depois houve o sacrifício simbólico do Gustavo Bebianno [ex-ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência da República] e o inacreditável e torpe ataque do filho do presidente, Carlos Bolsonaro, ao vice-presidente, algo que não há paralelo na história política contemporânea. O único paralelo é a ditadura de Rafael Trujillo na República Dominicana, com a presença imperial dos filhos do ditador nos negócios de Estado. Mario Vargas Llosa dedicou um romance a essa ditadura: “A Festa do Bode” (Alfaguara, 2011).

Rafael Trujillo, que foi um ditador sanguinário terrível, tinha filhos que eram piores do que o pai. Eram capazes de desrespeitar ministros, desautorizar o vice-presidente. É a única comparação possível do caso que vivemos hoje em dia, no qual temos uma espécie de república monárquica em que os filhos têm direito a voz e que um sujeito que é vereador no Rio de Janeiro vive em Brasília. Isso é incompreensível! É o primeiro vereador federal da história da humanidade.

Com relação às Forças Armadas, houve o contrário. Bolsonaro contagiou os militares que estão no governo. Se radicalizaram, numa espécie de contágio mimético, para ver quem é mais valente, quem fala mais alto, quem diz mais besteiras. É impressionante! Nesse sentido, a imagem das Forças Armadas, do Exército, sobretudo – Aeronáutica e Marinha têm se mantido à parte –, está bastante deteriorada com uma participação tão pouco prudente, de maneira tão aberta, no governo Bolsonaro.

“Temos uma espécie de república monárquica em que os filhos têm direito a voz e que um sujeito que é vereador no Rio de Janeiro vive em Brasília”

“É o primeiro vereador federal da história da humanidade” | Foto: Divulgação

No início da entrevista, o sr. disse que não existe bolsonarista sem bolsonarismo, de que existe toda uma ideia de guerra cultural bolsonarista de deterioração interna das instituições para se manter no poder, que se personaliza na figura de Bolsonaro. O Centrão dá que tipo de sobrevida ao presidente? É possível imaginar que o governo dure mais do que o sr. imaginava com o apoio do Centrão?
Sublinho que a ideia de que só há bolsonaristas, mas não há bolsonarismo, é do João Moreira Salles, ideia da qual discrepo totalmente. Me parece que isso é um enorme equívoco, porque bolsonarismo há. Após passar o caos da pandemia, o governo Bolsonaro só sobrevive se o bolsonarismo for controlado. Mas se o bolsonarismo for controlado, o presidente tende a perder a base popular. Sem a base popular, o presidente será refém do Centrão para que o impeachment não avance e para que possa aprovar qualquer tipo de lei.

O Centrão será rebelde, como sempre foi, a medidas de grande austeridade, porque no reino do controle fiscal rígido não sobra para o Centrão nada. O mais provável é que dentro em breve Paulo Guedes saia do governo, porque não terá o que fazer. Isso quer dizer que, depois da pandemia, o cenário que se desenha no mundo inteiro – e no Brasil em particular – é de difícil recuperação da economia.

Com uma difícil recuperação da economia, com o aumento do número de mortos, com um presidente que, quando o País tinha mais de 85 mil mortos, fazia passeio de motocicleta no jardim do Palácio da Alvorada, conversava com funcionários sem máscara, o presidente não tem trabalho para fazer? A impressão é de que o governo Bolsonaro tende à desagregação. O Centrão é muito volátil.

Até pela derrota que o governo sofreu na votação do Fundeb, o fato de o Centrão ser muito volátil pode levar o novo apoio de Bolsonaro no Congresso a, em algum momento, virar a chave e repetir o que fez com a ex-presidente Dilma Rousseff (PT), ver que o barco está a afundar e votar pela destituição do presidente?
Com toda certeza. Não há dúvida alguma. O Centrão é volátil. É mais ou menos como no início de “La Donna è Mobile”, famosa ária de La Traviata [Giuseppe Verdi]: “La donna è mobile/Qual piuma al vento (A mulher é volúvel/Como pluma ao vento)”. O Centrão é volúvel como uma pluma no vento. É volátil. O fato de que Bolsonaro tenha de se apoiar no Centrão é a prova concreta de que o presidente deixa de lado o bolsonarismo. Mas o governo Bolsonaro não existe enquanto tal. Esse é o paradoxo.

Quando João Moreira Salles diz que não existe bolsonarismo, está apegado a uma visão tradicional de política, na qual um movimento só se configura quanto tem projetos propositivos. Quando se pergunta o que foi o trabalhismo em Getúlio Vargas, sabemos que foi a criação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a criação de uma relação menos conflituosa entre capital e trabalho e a possibilidade de certo nível de inserção de massas urbanas trabalhadores que estavam excluídas do processo político.

O que foi o lulismo? Não haveria lulismo sem expansão do crédito, aumento substancial do salário mínimo, aumento considerável do poder de compra, inclusão social de milhões de pessoas, por meio de mecanismos eficientes, tanto no ensino superior quanto na sociedade de consumo. Ao mesmo tempo, lulismo, na brilhante análise de André Singer, foi uma espécie de conciliação com as elites para a realização de alguma transformação para as classes mais desfavorecidas.

Na sua análise, a tentativa de conciliação feita nos governo do PT pode ter sido um erro?
Na minha avaliação, de alguém que tem uma visão de mundo de esquerda, foi um grande erro do Lula. O ex-presidente desejou ser o impossível Macunaíma das improváveis conciliações de antagonismos permanentes. Em algum momento no Brasil, dentro da normalidade democrática, vamos ter de confrontar os privilégios. Teremos de questionar os privilégios do sistema financeiro. Teremos de confrontar os privilégios do sistema tributário. Teremos de questionar os privilégios dos três poderes.

Os privilégios que os ministros, os desembargadores, os juízes, os procuradores e os promotores se atribuem transformam a todos eles em uma autêntica casta. É vergonhoso que num país com tanto desequilíbrio fiscal como o Brasil haja nestas categorias de juízes, procuradores, desembargadores salários que respeitam o teto constitucional, mas incluem penduricalhos que elevam o salário aos R$ 100 mil mensais. Isso é uma vergonha! Nada justifica.

Vamos ter de confrontar o sistema político. Não é possível que um candidato à Presidência da Câmara envie para cada um dos deputados um anel banhado em ouro. Esse sujeito deveria, de imediato, ser levado ao Conselho de Ética. É candidato a presidente da Câmara e envia um anel de ouro para futuros eleitores! Nem Paulo Maluf teve tal desfaçatez. Não podemos conviver com um poder Executivo com sua miríade desnecessária de cargos de comissão, cuja única finalidade é facilitar a governabilidade pela distribuição de cargos. E um cartão corporativo com o qual Bolsonaro gastou mais do que todos os presidentes anteriores.

Não é possível que sigamos a ser o único país, junto com a Estônia, que não cobre imposto sobre lucros e dividendos. Não é possível que continuemos a cobrar da transmissão de herança 4% enquanto países como os Estados Unidos cobram mais de 20%. Será que Donald Trump é comunista?

Me parece que o problema real é que, ao chegar ao poder, o PT conciliou demais. As pessoas dizem que o PT queria transformar o Brasil em uma Venezuela. É um delírio completo. Impressionante porque é um delírio que se tornou uma espécie de verdade. Mas é um delírio absoluto: os bancos nunca ganharam tanto dinheiro quanto com o PT em Brasília.

“Não há a menor chance de o PT fazer qualquer autocrítica. PT está feliz da vida com a maior bancada da Câmara”

“Se para chegar ao governo federal é necessário lotear os ministérios, por exemplo, como Dilma Rousseff fez, e ter Marcelo Crivella como ministro da Pesca… Marcelo Crivella. Ministro da Dilma! Se for necessário lotear estatais, o melhor para a esquerda é não chegar ao poder” | Foto: Roberto Stuckert Filho/PR.

Na entrevista que concedeu ao programa Roda Viva, o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), é foi perguntado sobre quando o PT fará uma autocrítica por integrantes do partido terem sido condenados por participação em esquemas de corrupção no Mensalão e na Lava Jato. O sr. acredita que em algum momento o PT terá de fazer um pedido público de desculpa? Seria um trabalho interno? Cabe espaço no partido para abrir mão na disputa presidencial ao protagonismo de outra legenda de esquerda?
O debate político no Brasil só vai avançar quando reconhecermos que o Partido dos Trabalhadores é o mais importante partido de esquerda das democracias ocidentais das últimas três décadas. Na primeira década de sua existência, o PT estava se estruturando. O PT, desde 1989, ganhou ou ficou em segundo lugar em todas as eleições presidenciais. O PT, democraticamente, ganhou quatro eleições seguidas. Depois de um processo de enorme desgaste, chegou ao segundo turno em 2018, elegeu o maior número de governadores por partido, com quatro eleitos, a maior bancada de deputados federais e teve o segundo candidato mais bem votado, com 44 milhões de votos.

O PT, salta aos olhos, tem méritos excepcionais. A visão de estruturação de um partido, o comprometimento com a história desse partido, a militância orgânica e aguerrida e o mais importante líder popular da história dos 520 anos do Brasil: Luiz Inácio Lula da Silva. Se alguém não aceitar essas duas premissas, é muito difícil dialogar, porque são pessoas que foram fanatizadas a tal ponto que já não são capazes de fazer uma análise minimamente objetiva.

No entanto, eu não voto mais no PT. Por quê? Vamos lá: hora de desagradar a todos. Aliás, a tarefa do pensamento não pode ser outra: incomodar. Ao chegar ao governo federal, o Partido dos Trabalhadores abandonou o projeto real da esquerda. O projeto da esquerda não é chegar ao poder, é transformar as estruturas de um país desigual para criar uma nação fraterna. Esse é o projeto da esquerda. A esquerda não precisa chegar ao Poder Executivo – e isso em nenhum nível. Explico.

Se para chegar ao Poder Executivo nos níveis municipal, estadual ou federal for necessário destituir um homem como Olívio Dutra de um ministério capital, que era o Ministério das Cidades, para colocar Márcio Fortes, indicado por Severino Cavalcanti, melhor não chegar ao poder. Se para chegar ao governo federal é necessário lotear os ministérios, por exemplo, como Dilma Rousseff fez, e ter Marcelo Crivella como ministro da Pesca… Marcelo Crivella. Ministro da Dilma! Se for necessário lotear estatais, o melhor para a esquerda é não chegar ao poder.

O melhor para o projeto de uma esquerda democrática é estabelecer uma interlocução forte com a sociedade, defender projetos muito específicos e relativos, sobretudo, às áreas da educação, ciência, meio ambiente, cultura, saúde e, naturalmente, direitos humanos. Se a esquerda tiver uma presença forte na Câmara de Vereadores, na Assembleia Legislativa, na Câmara dos Deputados e no Senado, não é necessário que o presidente seja de esquerda, se isso significar a multiplicação de Macunaímas em Brasília.

Mas é necessário que a esquerda tenha um compromisso inabalável com uma condução ética do fazer público e que tenha um compromisso inabalável com os setores mais vulneráveis da sociedade. Deverá ser possível produzir transformações muito mais profundas e duradouras sem necessariamente chegar ao Poder Executivo. Esse é o projeto da esquerda que eu defendo. Um projeto que, por isso, hoje, passa longe do PT. Porque o PT, para chegar ao poder, fez conciliações demais e algumas delas francamente não têm justificativa.

Nesse sentido, recordo um ponto de virada para a política brasileira recente: a campanha sórdida que o PT fez contra Marina Silva em 2014. Uma campanha de baixíssimo nível, eivada de notícias falsas. Marina Silva: uma mulher que era uma seringueira, que até os 16 anos de idade era analfabeta. Uma mulher que tem problemas físicos decorrentes da situação de absoluta precariedade em que viveu. Uma mulher digna, honrada. Como é possível que uma presidente-mulher, como Dilma Rousseff, tenha aprovado aquela campanha tão sórdida contra Marina Silva? Como é possível que tenham feito aqueles anúncios com Marina Silva mancomunada com os bancos, tirando comida da mesa dos trabalhadores?

Ora! Dilma Rousseff assume o governo e quem a presidente chama para o Ministério da Fazenda e para o Ministério da Agricultura? Joaquim Levy e Kátia Abreu. Não há a menor chance de o PT fazer qualquer autocrítica. O PT está feliz com a maior bancada da Câmara. Em 2018, o PT concebeu uma estratégia exitosa. O PT também venceu as eleições de 2018. As eleições de 2018 tiveram dois vitoriosos: Bolsonaro, evidentemente, e o PT. Explico: 2016 foi o pior ano eleitoral na história do PT. Em 2016, de cada dez eleitores nas eleições municipais, o PT perdeu seis. Se em 2012, o melhor ano para o PT, o Partido dos Trabalhadores passou, no ranking dos partidos com o maior número de prefeitos, para o terceiro lugar, atrás apenas do MDB e do PSDB, em 2016, o PT desceu para o 10º lugar, atrás, por exemplo, do PTB, do PDT, do PP, do PSB, do DEM, etc..

Em 2016, repito, o PT perdeu 60% dos seus eleitores. Qual foi a estratégia do PT em 2018? A impossível candidatura do Lula teve como finalidade reorganizar as forças em torno do partido. Era impossível a candidatura do Lula, já que o ex-presidente era inelegível, mas mantê-la até os 45 minutos do segundo tempo assegurou a Lula e ao PT uma exposição contínua na imprensa em horário nobre e, sobretudo, permitiu algo que o PT tinha perdido a partir de 2013: o contato com as ruas e com a militância.

Tanto que em 2016 as maiores manifestações da história brasileiras ocorreram a favor do impeachment. Não eram contra o golpe. A militância do PT estava desmobilizada. A candidatura do Lula, que era impossível, mas ela tornou possível o reforço da militância e a recuperação de certa aura do partido. Resultado: quatro governadores, a maior bancada na Câmara e 44 milhões de votos para Fernando Haddad. PT também venceu as eleições de 2018. O Brasil perdeu.

Nessa lógica, não creio que o PT venha a fazer a tão mencionada autocrítica. Como disse Gleisi Hoffmann no final de julho, o PT não precisa pedir perdão porque não tem nada para ser perdoado. Isso vai criar um problema sério, porque a militância do PT antecipou nas redes sociais contra Ciro Gomes (PDT) a campanha que o PT fez contra a Marina em 2014. E o alvo da campanha é muito claro.

O PT foi bem-sucedido em retirar simbolicamente da Marina Silva (Rede) qualquer chance de pertencimento a um campo, senão de esquerda, de centro-esquerda, e a campanha do PT, em última instância, jogou Marina em um campo conservador ao qual ela nunca pertenceu. O PT pretende repetir o truque e excluir Ciro Gomes do campo da esquerda, mesmo da linha da centro-esquerda. Recentemente em uma transmissão ao vivo, tratavam com a ex-presidente Dilma Rousseff do campo da esquerda no Brasil de hoje. Quando perguntaram o que Dilma achava do Ciro, a ex-presidente respondeu “mas ele pertence a outro campo”. Essa é a estratégia do PT.

E será uma estratégia bumerangue: não tem como dar certo. Marina cometeu um grave erro político ao não brigar para valer em 2014. Se alguém diz que você vai tirar comida da mesa dos trabalhadores e faz uma campanha como o PT fez contra a Marina em 2014, você pode até perder a eleição, mas não tem alternativa, você tem de virar a mesa. Se você perder a eleição por isso, paciência, mas era preciso ter denunciado publicamente a rede de notícias falsas e a campanha de difamação. Era preciso ter procurado reparação na Justiça. Não tem alternativa. Marina preferiu se calar e passo a passo começou a desaparecer. Infelizmente. Na última eleição, teve menos votos do que o Cabo Daciolo.

Isso significa que Ciro Gomes não tem opção. E no caso do Ciro Gomes, não é nem uma questão de opção, mas de temperamento. É partir para a luta em campo aberto. E a luta será sangrenta, o que criará uma divisão muito grande no campo da esquerda, que certamente favorecerá o Bolsonaro. Sobretudo como perspectiva em 2022. Mas, felizmente, a direita também deve dividir forças.

“Se para chegar ao Poder Executivo for necessário destituir um homem como Olívio Dutra de um ministério capital, que era o Ministério das Cidades, para colocar Márcio Fortes, indicado por Severino Cavalcanti, melhor não chegar ao poder”

“Com a crise do Mensalão, Severino Cavalcanti, para assegurar apoio do PP ao governo Lula, exigiu o Ministério das Cidades. O que fez Lula? Demitiu Olívio Dutra” | Foto: Ricardo Stuckert/PR

Em meio à divisão na esquerda, com a disputa entre os Gomes e o PT cada vez mais personificado na figura do Lula, é possível imaginar espaço para a frente ampla puxada pelo governador do Maranhão, Flávio Dino, e a possível fusão do PCdoB com o PSB?
Confio que Flávio Dino não seja ingênuo a ponto de acreditar na ideia de que o PT cogita a possibilidade de o atual governador do Maranhão ser o cabeça de chapa em 2022. Recordemos que, pela primeira vez em 2018, o PCdoB não bateu a cláusula de barreira. Para não perder completamente o fundo partidário e todas as benesses de quem bate a cláusula de barreira, o PCdoB teve de fazer uma aliança com o PPL. O PT foi contrário à aliança! O PCdoB poderia ter perdido tudo.

Manuela D’Ávila escreveu uma carta, na verdade, um desabafo, afirmando que era difícil de acreditar que o PT e o PSOL faziam isso com o PCdoB porque houve uma discordância na votação para a presidência da Câmara. O que o PT tentou fazer com o PCdoB teria transformado o PCdoB em um partido fantasma, sem nenhuma das vantagens do fundo partidário.

Como homem de visão, Flávio Dino não acredita nessa possibilidade só por ser agora cortejado por algumas lideranças do PT. Espero que o governador do Maranhão saiba que no frigir dos ovos o PT sempre quer manter a hegemonia do campo da esquerda. Compreende-se: o PT é o maior partido de esquerda das democracias ocidentais hoje e tem muitos méritos como partido.

No entanto, o PT teve 14 anos para governar o País. Nos 14 anos em que o PT governou o País, não houve reforma política, não houve reforma tributária, não houve aprofundamento na reforma agrária, não houve qualquer proposta para taxação especial de grandes fortunas ou para taxação de lucros e dividendos, como há em todo o mundo. Itamar Franco taxou lucros e dividendos; Fernando Henrique Cardoso (PSDB) suspendeu a taxação e Lula manteve a suspensão.

O PT teve 14 anos para governar o País. 14 anos não é um curto período de tempo. O que houve? Não é uma situação simples. A opção do PT em 2018 foi o fortalecimento da sigla depois da debacle séria que ocorreu em 2016, quando o PT perdeu seis de cada dez eleitores. A eleição de 2018 teve dois vencedores: Jair Messias Bolsonaro e o Partido dos Trabalhadores.

Onde está o PSOL nessa discussão da esquerda de 2020 no Brasil? Vimos o fortalecimento das figuras do pré-candidato a prefeito de São Paulo Guilherme Boulos e do deputado federal Marcelo Freixo no Rio. O PSOL tende a se manter como auxiliar do PT nos Estados e municípios? Há espaço para protagonismo do PSOL na esquerda?
Precisamos de um partido de esquerda que não tenha como objetivo primeiro chegar ao poder e nele se manter a todo custo. Essa é a questão fundamental. O PSOL pode decidir ser esse partido. Não é claro se essa é a decisão. O PSOL pode abraçar determinadas causas e se tornar muito forte. Por exemplo, se tratamos de segurança pública e do combate às milícias, a figura mais importante no Brasil é o Marcelo Freixo. É uma figura incontornável.

Se pensarmos em educação, o PSOL do Rio de Janeiro tentou eleger uma professora, Tatiana Roque. Se tivesse sido eleita deputada federal, com certeza em pouco tempo seria uma referência nacional na política de apoio à educação, ciência e tecnologia. Podemos pensar em um partido de esquerda que tenha personalidades políticas que trabalhem no nível municipal, estadual e nacional para determinar as causas: saúde, educação, cultura, segurança pública, transporte público, meio ambiente e direitos humanos. Não é pouca coisa.

Por que não pensar em partidos de esquerda ou de centro-esquerda que abdicassem da ideia de que o objetivo exclusivo de todo partido é chegar ao Poder Executivo. Não é! Você pode organizar um partido forte, cuja finalidade seja eleger uma bancada coerente no Legislativo, sem a qual nenhuma lei daquelas áreas temáticas passará sem o seu apoio. Tal estratégia pode transformar o País muito mais do que chegar ao Poder Executivo e não realizar transformações estruturais, profundas e permanentes, porque para se manter no poder precisa fazer acordo com Severino Cavalcanti.

2013 foi um ponto de virada inesperado cujas consequências se desdobraram no impeachment ou no golpe da Dilma. Lula, em seu primeiro governo, teve uma iniciativa absolutamente excepcional: criou o Ministério das Cidades. O que pretendia o Ministério das Cidades? Desenvolver e coordenar políticas nos níveis municipal, estadual e federal em relação aos dilemas das urbes: transporte público, segurança, inserção da juventude no mercado de trabalho e saúde.

Com a crise do Mensalão, Severino Cavalcanti, para assegurar apoio do PP ao governo Lula, exigiu o Ministério das Cidades. O que fez Lula? Demitiu Olívio Dutra. O político gaúcho é um homem que mora no apartamento onde sempre morou e que se locomove em Porto Alegre por meio do transporte público. Olívio Dutra é um homem honrado, íntegro, e foi retirado do Ministério das Cidades. No seu lugar entrou Márcio Fortes, indicado por Severino Cavalcanti.

Eis uma análise muito boa do antropólogo Antônio Risério: seria uma tolice dizer que 2013 é resultado da demissão do Olívio Dutra em 2005. Mas 2013 é a explosão da indignação em relação ao transporte público, segurança, saúde e falta de inserção dos jovens no mercado de trabalho. Se para chegar ao Poder Executivo é preciso trocar Olívio Dutra por uma indicação do Severino Cavalcanti, melhor não chegar ao Poder Executivo. Afinal, um dia, a conta chega…

Nesse sentido, precisamos de um partido de esquerda ou de centro-esquerda que não seja o partido que faça qualquer conciliação macunaímica impossível para chegar ao poder e nele permanecer. Precisamos de um partido de esquerda ou de centro-esquerda que tenha um projeto e que, em relação a esse projeto, se for necessário abandonar o projeto para preservar o poder, melhor abrir mão do poder.

“Em 20 meses, Ricardo Salles conseguiu desmontar a fiscalização do Ibama, conseguiu desmontar o sistema de vigilância e de punição de crimes ambientais”

“Todo fiscal que realiza um bom trabalho é exonerado” | Foto: Reprodução/Presidência da República

A partir do lançamento do livro, como o sr. pretende trabalhar a divulgação durante a pandemia? Como se dará o debate do conteúdo do livro a partir da publicação?
Provavelmente a partir de transmissões devido à atual situação. Sou um especialista nas obras de Machado de Assis e William Shakespeare. Abandonar meu querido Machado e meu querido Shakespeare para ler Olavo de Carvalho é realmente é uma missão cívica. A minha ideia é a de que o bolsonarismo é uma esfinge que, se não a decifrarmos, ela nos devorará.

A concepção do livro é muito modesta. Como disse no começo, não faço análise de toda a história brasileira a partir de 2013, de todas complicações do golpe branco, do lawfare de 2016, que levou à destituição da presidente Dilma Rousseff, de todas as derivações das eleições de 2018. O meu interesse no livro é caracterizar a mentalidade militarista do bolsonarismo, através do resgate da doutrina de segurança nacional, da matriz narrativa do Orvil e do sistema de crenças do Olavo de Carvalho.

Se eu conseguir demonstrar essa dinâmica da maneira a mais clara possível para todos, o livro se justifica, porque teríamos compreendido que existe bolsonarismo. O caráter inédito é o fato de ser o primeiro movimento político brasileiro movido pelo ódio. E é o primeiro político brasileiro cujo conteúdo não é propositivo. Por isso, algumas pessoas creem que não haja bolsonarismo. Há. O conteúdo do bolsonarismo é destrutivo.

Em 20 meses, o bolsonarismo destruiu instituições que demoramos décadas para erigir desde a Constituição de 1988. O bolsonarismo acabou com o Ibama. Em 20 meses, Ricardo Salles conseguiu desmontar a fiscalização do Ibama, conseguiu desmontar o sistema de vigilância e de punição de crimes ambientais. Todo fiscal que realiza um bom trabalho é exonerado. Agora temos crises na Floresta Amazônica, a Mata Atlântica e o Pantanal. O bolsonarismo conseguiu manietar a Fundação Casa de Rui Barbosa. Deseja agora acabar com a fundação e transformá-la em um museu.

É a imagem e a cara do bolsonarismo acabar com a pesquisa, acabar com a ciência e transformar tudo em museu. Um dos mais importantes editais do mundo foi inventado pelo CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]: o edital de iniciação científica, que permite que alunos de graduação a partir do terceiro semestre tenham experiência de pesquisa. Geralmente quem possui bolsa de iniciação científica acaba por fazer mestrado, doutorado e torna-se um profissional da área. O CNPq retirou do edital de iniciação científica toda a área de humanidades. É a primeira vez na história. Nem o nazismo fez isso. O nazismo procurou instrumentalizar as humanidades. O bolsonarismo destrói.

Na Fundação Zumbi dos Palmares, o bolsonarismo coloca na presidência um senhor que nega a existência de racismo, que retira do site da fundação biografias de brasileiros ilustres, negros e negras. Cria um selo antirracista, que é uma coisa absolutamente nojenta. Na Cultura, Bolsonaro valorizou inicialmente um sujeito que fez uma ode a Goebbels [ministro da Propaganda do nazismo]. Uma paródia ridícula de Joseph Goebbels. Que lança mão de frases de discurso nazista. Depois coloca uma atriz que acha que cultura é pum de palhaço. Agora temos um ex-ator de Malhação. Querem destruir a Cinemateca do Brasil. A lista não tem fim!

É evidente que há bolsonarismo. Infelizmente, há bolsonarismo demais. Mas bolsonarismo demais é também completamente governo Bolsonaro de menos, isto é, a pura destruição de um governo enquanto arquitetura da destruição. Me diga qual é o governo no Brasil com 20 meses que conseguiu destruir tanto quanto o bolsonarismo? Nenhum. Minha angústia é que precisamos reconhecer que a novidade é que, enquanto conteúdo propositivo, o bolsonarismo é vazio. Isso foi muito favorável na eleição de 2018, porque permitiu que as pessoas projetassem no bolsonarismo o seu antipetismo. Mas, com máquina de destruição, nunca tivemos um governo tão eficiente…

A ideia de contra tudo e contra todos?
Isso. As pessoas diziam “voto no Bolsonaro porque, além de ser antipetista, há o Paulo Guedes”. “Voto no Bolsonaro porque, além de ser antipetista, há a Lava Jato.” “Voto no Bolsonaro porque, além de ser antipetista, ele é cristão.” Mas enquanto conteúdo negativo, de destruição, o bolsonarismo é o mais eficiente sistema político jamais montado no Brasil. Esse é o paradoxo.

Boa parte do meu livro é uma tentativa de mostrar para sociedade que se não reagirmos a tempo, “Não Verás País Nenhum”, que é o título de um romance premonitório de Ignácio de Loyola Brandão. “Zero”, outro romance fundamental de Ignácio de Loyola Brandão, foi proibido pela ditadura militar e foi publicado na Itália antes de ser publicado no Brasil. “Zero” se converterá no bolsonarismo no menos zero. Não sobrará nada.

A simples possibilidade de uma reeleição do Bolsonaro é um autêntico pesadelo. Porque se isso acontecer, depois de oito anos de uma destruição sistemática provocada pelo bolsonarismo, aí sim muito pouco sobrará. Por isso a minha urgência de escrever este livro, para tentar mostrar às pessoas a terrível ameaça que enfrentamos.

Pela primeira vez, temos um governo que se baseia num movimento pautado pelo ódio, cujo combustível é o ressentimento. O desejo é a eliminação de tudo que não seja espelho. Temos, pela primeira vez, um movimento político de ineficiência completa no que se refere à administração pública, mas de eficiência completa no que se refere à destruição das instituições.

Quero muito conversar com as pessoas sobre o tema, sem radicalismos, mas deixando claro que nossa opção é só uma: nos unimos agora para enfrentar a esfinge bolsonarista ou haverá muito pouco a se fazer depois. É preciso que saibamos que há bolsonarismo, há muito bolsonarismo. Se não reconhecermos isso, não teremos como enfrentar os bolsonaristas.

“O verbo dominante nos vídeos dos intelectuais bolsonaristas é eliminar. E o substantivo é limpeza”