Elder Dias

Os eventos extremos estão aumentando e os mais afetados serão cada vez mais os mais vulneráveis. A advertência é de Gislaine Cristina Luiz, do Laboratório de Análise da Interação da Atmosfera e da Paisagem (LAP) da Universidade Federal de Goiás (UFG) e não tem nada de novidade. Pelo contrário, assim como ocorre no satírico Não Olhe Para Cima (EUA, 2021), tem sido um alerta reiterado à exaustão.

Diante de cenas trágicas – como a destruição e mortes no litoral norte de São Paulo – ou tragicômicas – como os pedalinhos do Lago das Rosas “fugindo” para a Avenida Anhanguera, em recente temporal em Goiânia –, a professora é assertiva: “O problema não é a chuva, mas a forma com que ela está sendo ‘recebida’, como estamos lidando com ela.” No caso específico da capital goiana, Gislaine lamenta a falta de vontade política dos gestores para com a questão.

Goianiense graduada e mestra em Geografia pela UFG e com doutorado em Geotecnia Ambiental pela Universidade de Brasília (UnB), a pesquisadora recebeu a reportagem do Jornal Opção em seu gabinete no Instituto de Estudos Socioambientais (Iesa), no Campus Samambaia da UFG para discutir a situação da cidade diante da questão das chuvas. Sua área de atuação passou, nos últimos tempos, a ser focada na climatologia urbana com atenção a eventos extremos associados a alagamentos, inundações e ilhas de calor.

Em seu trabalho, sua cidade natal ganhou relevância por conta das particularidades: por ter períodos de estiagem longos e temperaturas elevadas e por ter sido edificada sem levar em consideração as questões climáticas – o que, como se verá no curso desta entrevista, em sua opinião, infelizmente continua ocorrendo.

Fevereiro tem sido sempre um mês muito complicado para o Brasil em relação a catástrofes climáticas. Foi assim em 2022, em Petrópolis (RJ), como em anos anteriores ocorreu em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, e este ano no litoral norte de São Paulo. É uma repetição que leva aquele antigo jargão da “crônica anunciada”. Tecnicamente, o que provocou a tragédia da semana passada em São Sebastião (SP) e outros municípios próximos?

Estamos chegando a três anos de ocorrência do fenômeno La Niña, que causa o resfriamento das águas do Pacífico Sul. À medida que a temperatura do oceano foi caindo, isso alterou o comportamento da chuva em vários lugares do Brasil. Temos visto isso sempre, desde 2021.

O La Niña é um fenômeno natural, não tem nada a ver com as mudanças climáticas?

Sim, é um fenômeno ainda de causas conhecidas, assim como o El Niño, que, ao contrário, aquece as águas do Pacífico Sul. Nos últimos três anos, tivemos a configuração desse resfriamento, ou seja, de La Niña. Isso potencializou as chuvas em praticamente todas as regiões do Brasil – Norte, Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste –, à exceção do Sul, que está presenciando uma escassez de chuvas.

Ou seja, o La Niña altera o comportamento da atmosfera e a distribuição das chuvas no Brasil, potencializando a entrada das frentes frias que, ao se chocarem com as massas de ar quente e úmidas que vêm da Amazônia nesta época do ano, fazem com que ocorram esses grandes volumes de precipitação, em uma alta pluviometria. Assim, temos em alguns locais chuvas extremas, com muita água em pouco tempo.

O que tivemos no litoral norte de São Paulo, além do quadro que acabei de relatar – o encontro do calor úmido vindo da Amazônia com o avanço dessa frente fria –, foi uma temperatura do Oceano Atlântico naquela região um pouco mais aquecida. Esse cenário todo é a fórmula para que tenhamos chuvas intensas e de forma prolongada na mesma região. Essa temperatura um pouco mais alta favoreceu a evaporação com um ar mais úmido e quente para a atmosfera. Foi o que vimos ocorrendo ali neste feriado de carnaval.

No litoral de SP, houve uma chuva de meses caindo em poucas horas

Infelizmente, a expressão “tempestade perfeita”, usada para outros contextos, em que vários fatores se combinam, pode ser colocada aqui de forma literal, então…

Sim, tudo configurou para que se evoluísse para um índice pluviométrico de mais de 600 milímetros em menos de 24 horas. Isso é muito mais do que estar bem acima da média, é de fato um dilúvio, uma chuva de meses caindo em poucas horas. Para ter ideia, em Goiânia, no mês que mais chove – nossa estação mais chuvosa é também o verão – a gente tem em torno de 240 milímetros. Então, em uma única área, ter mais de 600 milímetros, é realmente muita, muita coisa para poucas horas.

Estamos tendo eventos extremos um dia após o outro em Goiânia

Dados mostram que, mesmo naquela região, a chuva registrada no fim de semana foi maior do que a soma das chuvas de todo o verão anterior, entre 2021 e 2022, no mesmo local. É algo assustador. Nós vamos ter de nos adaptar? Isso será mesmo cada vez mais recorrente?

Sim, e nós podemos ver isso também já aqui em Goiânia. Agora, em fevereiro, tivemos dois episódios seguidos, em dias consecutivos, de chuvas respectivamente de 70 e 80 milímetros, em uma mesma região da capital. Se formos tomar uma escala temporal de 50 anos, na história da cidade, vamos ver que isso já aconteceu de chover em Goiânia essa quantidade – aliás, já choveu até 100 milímetros. Só que isso era espaçado no tempo: ocorria em um ano, depois passavam-se cinco ou dez anos e chovia mais 100 milímetros. Agora, não: estamos tendo eventos extremos seguidos, literalmente um dia depois do outro. O que estamos observando é um aumento da intensidade da chuva.

E é possível ver como essa distribuição da chuva se dá em Goiânia?

Espacialmente, temos a porção noroeste e a porção centro-sul da capital com maior pluviometria, as que chovem com mais intensidade.

Isso tem a ver com o microclima da cidade ou é apenas coincidência?

Pode ter a ver, sim, até porque a porção sul da cidade é a mais densamente ocupada. Os picos de pluviometria mais elevada nessa região pode ter a ver com a concentração de poluentes, com um aquecimento maior daquela área, que são fatores que convergem para a convecção do ar. Isso gera chuvas isoladas intensas na cidade.

Se esperamos 240 milímetros para um mês inteiro e caem 70 milímetros em uma hora e meia, imagine o que isso significa

No domingo passado, dia 19 de março, houve uma cena tragicômica durante o temporal na região central: os patinhos-pedalinhos do Lago das Rosas “invadindo” a Avenida Anhanguera, levados pelas águas. Na região norte da cidade, porém, a chuva veio também, mas em bem menor intensidade. Isso pode ser explicado por essa forma particular de aquecimento das partes da cidade, já que a região norte é menos densa em ocupação?

São vários fatores que fazem essa configuração. Um é a própria dinâmica dos ventos, que faz com que em determinadas áreas haja uma pluviometria mais elevada. No caso, o centro-sul de Goiânia, por ser um aglomerado urbano mais denso, pode justificar, sim, essas chuvas de intensidade mais elevada. Essa “chuva do pedalinho”, para registrar, foi de mais de 70 milímetros em pouco mais de uma hora naquela região. Isso é muito. Se, para um mês inteiro, esperamos 240 milímetros e, em um dia do mês, caem 70 milímetros em apenas uma hora e meia, imagine o que isso significa.

Ou seja, os índices pluviométricos – ou, no popular, a quantidade de chuva – pode variar bastante dentro do mesmo município?

Sim, com certeza. Temos dados de uma chuva que ocorreu em 2013 e que ficou em minha memória. Ela caiu no fim da tarde, com uma hora e 45 minutos, no Alto do Bueno [região sul de Goiânia]. Lá, choveu 113 milímetros; no Centro, a estação do Inmet [Instituto Nacional de Meteorologia] registrou 80 milímetros; já em outra estação do Inmet, no Aeroporto [Santa Genoveva, região norte da capital], a medição foi de 30 milímetros. Ora, 30 milímetros já seria um “chuvão”, muita água para pouco tempo. Quando se fala nesses outros índices, a gente pode dizer que houve um dilúvio naquela tarde.

A gente precisa entender que, como estamos em uma região tropical, nosso sistema atmosférico vai ter como uma de suas principais características essa variação no espaço. Tem a ver com os sistemas convectivos do ar: a massa se eleva muito rapidamente, se resfria muito rapidamente, formam-se nuvens pesadas muito rapidamente e chove muito em determinado lugar, para em seguida se espalhar de forma menos intensas para outras regiões da cidade.

Mal comparando, numa imagem mais leiga, é como se fosse um imenso balde cheio fosse despejado quase todo em um determinado local e depois espalhasse o restante do conteúdo ao redor?

A nuvem descarrega, digamos, seu teor mais denso de forma rápida, mas não se desfaz completamente, permanecendo com condições de precipitação. E então pode ir, lentamente, sendo levada pelo vento, “esvaziando” o restante de sua carga, não mais tão intensa, um pouco mais branda, para outras regiões e bairros da cidade.

Décadas atrás, na estação chuvosa – principalmente entre novembro e dezembro –, quem é goianiense com um pouco mais de idade vai se lembrar: a gente presenciava frequentemente muitas chuvas contínuas, mas leves, durante dias. Era o que se chamava de “invernar”. Isso às vezes durava semanas. Isso hoje parece coisa do passado, acontece agora muito raramente. A tendência é de que tenhamos ainda menos essa “chuva tranquila” e, infelizmente, mais tempestades?

É verdade, havia longos dias de chuva mais fina, que às vezes parava, mas continuava nublado ou abria um sol tímido e depois voltava a chover. Era aquela chuvinha “de molhar bobo”, como se diz. Pois os mesmos estudos que nos mostram que está havendo um aumento da intensidade das chuvas também nos revela que está havendo uma redução do número de dias com chuva. Isso quer dizer que está chovendo em menos dias, mas quando chove é um “pancadão”.

Em Goiânia, temos registrado essa diminuição do número de dias com chuva, mas, em contrapartida, a intensidade das chuvas está mais alta. Ou seja, se chove em média 1.580 milímetros na capital por ano, isso se mantém. O que está acontecendo é que essa quantidade vem em menos dias e, quando a chuva cai, ela vem em 30, 50 milímetros. E aqui tem uma coisa importante, que falo muito para meus alunos: ver não “quanto” choveu, mas “como” choveu, em quanto tempo isso aconteceu.

Estamos em uma região tropical e a tendência é, cada vez mais, que essas chuvas ocorram de uma só vez, em um “pancadão”, como eu disse. São esses eventos que estão se intensificando, os de grande volume em pouco tempo.

Ultimamente, a sequência de tempestades está tão grande que não temos mais como guardar memória dos temporais, como ocorria. É como se houvesse uma “banalização dos temporais”. A gente está se acostumando com a tragédia ambiental?

Parece que as pessoas agora se assustam momentaneamente com as chuvas fortes. Mas o que não podem se acostumar, o que não pode acontecer, é achar que esses temporais sejam “banais” ou “normais”. A perda de casas ou mesmo de vidas é uma decorrência desses eventos e isso não pode jamais ser banalizado. O que está havendo é que há uma frequência tão maior desse tipo de ocorrência que as pessoas estão fazendo com que isso entre na própria rotina.

Nos últimos tempos, muita gente já tem evitado sair de carro ou de moto em determinadas horas do dia, onde são mais prováveis as pancadas de chuva, com medo de ser pega por uma delas. Ou seja, estão se adaptando à nova realidade. Já o poder público parece ainda não estar entendendo o que está acontecendo. A reação dos gestores, em uma cidade como Goiânia, está aquém do necessário?

Na verdade, não existe essa reação. Os gestores ainda estão inertes.

A UFG, ou ao menos sua equipe aqui no Iesa, tem sido chamada pela Prefeitura de Goiânia para discutir esse problema?

É algo que ficamos sem entender. Nós temos dados, divulgamos nossas informações, mas não sabemos se os gestores as acessam. O que vejo é que eles, se começam a ter algum movimento – se é que realmente isso existe –, é de forma muito tardia. Pelo menos a gente não percebe isso ocorrer. O que percebemos são os mesmos problemas nos mesmos locais. E não adianta colocar placas como “área sujeita a alagamento”. Não adianta. Precisa, sim, é ter uma ação mais incisiva do poder público.

É preciso ressaltar que alagamentos e inundações em Goiânia são um gargalo antigo. E aqui entra outra questão que também gosto de colocar para nossas turmas: os problemas aqui são enrustidos, não se percebe de imediato – percebe-se quando há uma morte.

Nossas chuvas mais intensas ocorrem no fim da tarde, no início da noite ou de madrugada. Muitas vezes, apenas a população diretamente afetada é que sente os efeitos de uma tempestade. O restante nem vai ter visto que choveu bastante. Foi o que ocorreu em 2016 na região da Vila São José, com a inundação provocada pela cheia repentina do Ribeirão Anicuns, em que bombeiros tiveram de tirar gente das áreas de risco ali usando botes e lanchas. O restante da população estava dormindo. Foi apenas uma parcela mais sofrida que compôs os atingidos pelo evento.

O poder público está inerte com um problema que tende a se agravar em Goiânia. A impermeabilização da cidade não parou. Não é só desentupir boca de lobo que vai solucionar a questão, porque não é só aquele lixo que está causando o transtorno. O contexto todo envolve algo estrutural: nós temos avenidas abertas ao longo de uma vertente na direção do fluxo da água para os córregos. São quilômetros de rampeamento em vias pavimentadas que levam toda a água da chuva que não conseguiu se infiltrar. A cada metro, acelera-se a potência da energia cinética desse escoamento superficial e as águas vão chegar com o máximo de intensidade na baixada. Então, o recado é: quando chover intensamente, corram das baixadas, fiquem nas partes altas. Porque não tem quem se segure quando essa enxurrada chega lá embaixo.

A Vila Roriz [bairro construído no fim da década de 80 pelo então interventor da capital Joaquim Roriz] é um lugar alagadiço…

Ali é uma planície de inundação, do Rio Meia Ponte.

A engenharia tem projetos belíssimos para reter a água por quarteirão

Existe uma solução para aquele lugar e aquelas pessoas, para que não fiquem à mercê das águas?

Como eu disse, o poder público não age no sentido de resolver os problemas. Da mesma forma que há uma população na Vila Roriz, também há os ribeirinhos do [Córrego] Capim Puba, do Anicuns. Vez ou outra, o córrego vai encher e essas pessoas vão ver as águas solapando as margens e vão sofrer com as consequências ou mesmo com o pânico de sofrer consequências. Temos vários locais na cidade que são conhecidos como pontos de problemas de alagamento e de fluxo intenso de água superficial – um deles passa pela Avenida Feira de Santana, no Parque Amazônia [onde uma mulher morreu em 2011, arrastada pela força das águas do Córrego Serrinha]. Não adianta colocar placa ali, ou na Marginal Botafogo. Ora, se vir que o tempo fechou nas cabeceiras da região sul da cidade e que pode chover forte, a solução é não entrar na marginal.

Outra coisa que precisa ser desmistificada é que “a chuva causou”. Não, a chuva não “causou”. Se está chovendo forte ou de modo intenso, o problema gerado está em como essa chuva foi recebida na superfície. É preciso entender por que o caos: se a água não tinha como infiltrar, com ser escoada, não tinha um sistema de captação eficiente. E aqui é preciso falar que captação não é apenas pegar a água e jogar no córrego, porque isso leva a outro problema. A engenharia tem projetos belíssimos, por exemplo, no sentido de reter a água por quarteirão, para não deixá-la se avolumar e aumentar sua energia cinética. Então, técnica nós temos; o que nos falta é boa vontade para fazer a coisa certa. Desmanchar o que está pronto não tem mais como, mas a gente precisa encontrar soluções.

Qualquer intervenção precisa ter participação da população daquele local

De qualquer forma, esse “desmanchar” sofreria a resistência da população em grande parte dos casos. Por exemplo, as populações ribeirinhas, dos morros ou de outras áreas de risco formam uma comunidade e ali criam seus laços e um sentimento de pertencimento. É como retrata a canção “Saudosa Maloca” [composição de Adoniram Barbosa interpretada pelo grupo Demônios da Garoa em sua versão mais conhecida]. A Justiça pode, por vezes, determinar uma retirada forçada da zona de perigo, como parece que vai ocorrer em partes do litoral norte de São Paulo. Como se pode fazer uma adequação, uma “redução de danos” em relação a essa questão? Uma solução seria construir um residencial perto do local original para essas pessoas – como ocorreu no caso da ampliação da Marginal Botafogo, com o Residencial América Latina, erguido no Jardim Goiás para os moradores da área de risco da região?

Qualquer intervenção a ser feita em um local, para buscar amenizar o problema, precisa ter a participação daquela população. É preciso envolver os moradores na elaboração de diretrizes para amenizar o próprio problema. Eles precisam ser coparticipantes. Não devem ser intimadas a sair de seu lugar. Podem até sair, mas antes precisam estar envolvidas em uma discussão e tendo autonomia para resolver aquilo, ajudando a encontrar a solução. Talvez seja o melhor caminho.

Vamos pensar em algo que soa hoje um tanto surreal: a própria Vila Roriz, já citada. É um planície de inundação onde não deveria haver ocupação. Será que temos como deslocar aquelas pessoas para um local na mesma região? E, quem sabe, onde eram as casas, ter um trabalho de reflorestamento, talvez um parque linear a que essas mesmas pessoas pudessem ter acesso? Isso certamente suavizaria o drama do pertencimento, dos laços construídos ali. No fundo, é um trabalho de educação ambiental, o que não é feito apenas em um ano, mas ao longo de um período, em etapas de um projeto a ser executado, para que essa população sofra o menos possível.

É algo que, além de não ser feito de um dia para o outro, também envolve custos, às vezes altos, para o poder público e também algo que todo político vai pensar “isso vai dar voto?”. Meio ambiente, como educação, é sempre um bom tema para discursos, mas, na hora da campanha, ao chegar até aquelas pessoas, vai ser mais eficiente convencê-las, como eleitoras, falar “vamos recapear o asfalto de vocês!”. Porque, assim como os políticos, a população também é imediatista.

É realmente uma questão muito complexa, nada fácil. Costumo dizer que nossos gestores mataram algumas aulas de ciências (risos), de explicação do ciclo hidrológico. Às vezes, é melhor até pensar assim, que fazem as coisas sem pleno conhecimento.

Goiânia tem um novo Plano Diretor, aprovado no ano passado. Como a sra. vê esse documento? Ele vai “ao encontro das” ou “de encontro às” expectativas do que pensam os técnicos da UFG da área ambiental e de planejamento urbano?

Com certeza, ele bate de frente com o que precisamos. É preciso pensar, antes de tudo, que 98% dos problemas ambientais do Brasil advêm de questões climáticas – secas, chuva em excesso etc.

Não há como impedir alagamentos, mas é possível reduzir os danos

E o Plano Diretor de Goiânia não se atém a nada nesse ponto?

Na questão climática, não. É até complicado falar sobre isso, porque temos uma época muito seca na capital, entre o inverno e a primavera, que é muito seca. Ano a ano estamos registrando queda na umidade relativa do ar. Já observamos índices baixarem até 8%. Para ter ideia, na década de 60, o porcentual mais baixo de umidade do ar era de 20%, basta olhar os dados. Nos momentos mínimos, hoje em dia, já chegamos a 7% em alguns pontos. É como estar em um deserto.

Então, o que vemos nas pessoas em geral – e especificamente nas que fazem as leis – é que elas parecem não se atinar para o fato de que é preciso combater esse tipo de questão, de que nossa temporada de tempo seco está cada vez mais grave, que vai ficar cada vez mais difícil respirar, que vamos ter, no mínimo, mais problemas de saúde e internações na cidade.

Da mesma forma, pensando nas chuvas torrenciais, também não vejo nada que tenha sido feito para coibir as áreas de alagamento, no sentido de minimizar os efeitos para a população. Realmente, não temos como impedir os alagamentos, mas poderíamos reduzir os danos para as pessoas, tentando controlar essa água superficial. É preciso sentar com os técnicos e falar: “olha está chovendo 70 milímetros em uma hora e meia, como vamos fazer com essa água de superfície que não infiltra?”. Se continuar assim, mais mortes virão, casas e pontes vão cair. E aí? É preciso ter uma integração interdisciplinar para podermos chegar a um consenso.

E a sra. e sua equipe na UFG não têm notícia de algum movimento nesse sentido por parte das autoridades políticas em Goiânia?

Que eu saiba, que tenha chegado até mim, não.

No filme Não Olhe Para Cima [Don’t Look Up (EUA), 2021, dirigido por Adam McKay], há a metáfora do corpo celeste que vai atingir a Terra para falar sobre o drama do aquecimento global e das mudanças climáticas. Qual é nosso momento atual, no Brasil e no mundo? Já estamos começando a “olhar para cima”?

Não. A pandemia veio e causou um sofrimento mundial, com milhões de mortes. Foi resultante de um vírus decorrente de um desequilíbrio ambiental. Achamos que isso fosse sensibilizar as pessoas, mas não resolveu. Temos outras grandes tragédias, causadas por tsunamis, furacões, terremotos – veja a situação da Turquia e da Síria, com mais de 40 mil mortos… parece que o homem ainda não acordou para sua condição, de que é apenas mais uma espécie na Terra e não um ser supremo. Há anos repito para minhas turmas que o ser mais ostensivo é o homem, o mais ignorante, o mais orgulhoso e vaidoso. E, nessa conjunção, ele vai cavando seu próprio sofrimento.

O ser humano tem atuado como um predador tecnológico da natureza, com uma velocidade sem precedentes. Mas depreda também os mais fracos, os mais pobres, que são as primeiras vítimas desses fenômenos extremos. Já temos, pelo mundo, o cenário de potenciais guerras climáticas, de conflitos por conta de água e de áreas cultiváveis. É o futurismo caótico de Mad Max [filme australiano lançado em 1979 (depois com sequências), tendo Mel Gibson como protagonista em uma história pós-apocalíptica]?

Sim, exatamente. O homem ainda não está “olhando para cima”. E, enquanto estivermos vendo mudanças climáticas “globais”, não vai haver a tomada de consciência. A partir do momento em que essas mudanças se tornarem “locais”, acontecendo com impactos onde a pessoa vive, aí, talvez, se faça de fato alguma coisa.

O clima não é o maior responsável por tudo que ocorre. Nosso maior problema é o impacto socioeconômico e a vulnerabilidade que afeta a população. Por isso, a África, diante das mudanças climáticas, é o continente que mais tende a sofrer as consequências. Da mesma forma, é a população mais pobre das grandes cidades que tem os primeiros afetados.

É definitivamente uma questão social e econômica. Em Goiânia, os que mais sofrem são os que estão nas planícies de inundação e em áreas de risco. É quem se vê obrigado a transitar pelas ruas em um momento de chuva intensa, arriscando-se com um bem que custou a adquirir com algum sacrifício – uma moto, uma bicicleta – e, muitas vezes, perde a vida tentando conservar esse bem em meio a uma enxurrada. A chuva causa problemas, sim. Mas espacialmente vai causar problemas onde está a população mais vulnerável, não no Aldeia do Vale [condomínio de luxo na região norte de Goiânia].