Fernando Navarrete: “Celgpar deveria ser um órgão de assessoria do Estado; temos expertise”
24 setembro 2023 às 00h01
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Aline Bouhid e Italo Wolff
Desde 2011, o advogado e economista José Fernando Navarrete Pena esteve na presidência de todas as empresas desmembradas da Companhia Energética de Goiás (Celg) – Celg GT, Celg D, Celg T – e atualmente é o presidente da última remanescente da companhia, a Companhia Celg de Participacoes (Celgpar). Navarrete ficou com a responsabilidade de gerenciar o ocaso daquela que já foi uma das maiores companhias do estado de Goiás.
Nascida em 1955, a Celg foi uma peça estratégica para o desenvolvimento do Estado. Foi por excelência uma representante das estatais brasileiras, com vocação para transformar investimentos em serviço público até ser atingida por uma crise causada por gestão ineficiente que levou ao início de seu processo de privatizações. Em 2006, foi criada pelo Governo do Estado de Goiás a Celgpar, com objeto social principal a participação em outras sociedades como acionista. A Celgpar passou então a ser desde o momento de sua instituição a controladora (holding) da Celg.
Navarrete cedeu na redação do Jornal Opção a presente entrevista antes da quinta-feira, 21, quando deputados da Assembleia Legislativa de Goiás (Alego) aprovam a privatização da Celgpar em definitivo. O diretor, entretanto comunicou ao jornal sua opinião sobre o Proejto de Lei (PL) que prevê a privatização da Celgpar.
Aline Bouhid — Como vê o PL aprovado para desestatização da Celgpar?
Fernando Navarrete — O PL de desestatização da Celgpar aprovado nesta quinta-feira, 21, vem ao encontro da necessidade de readequar a realidade da companhia, que nasceu com a missão de ser uma holding, portanto gestora de outras empresas estatais indutoras do desenvolvimento em nosso estado (a saber, Celg D, Celg T). Resta apenas na companhia as participações acionárias em outras empresas.
Portanto, considero este um projeto que vem em bom tempo. O consenso na diretoria da Celgpar é de que o principal ativo da companhia são os seus servidores, seus colaboradores. Todos são funcionários com uma expertise notória, que podem fornecer consultorias na área de projetos de infraestrutura energética. A partir dessa desestatização, a diretoria da Celgpar defende o aproveitamento desses colaboradores na própria Celgpar sem participação estatal, mas como empresa de consultoria. Entendemos que o ideal é a construção de uma empresa pública que possa aplicar essa expertise ao servir a comunidade goiana como um órgão de auxílio ao governo estadual e aos governos de municipais.
Aline Bouhid – Como que está o estudo de privatização na Celg? Será vantajoso? Quais são so prós e os contras?
A privatização é uma decisão de Estado, de governos, e não depende da diretoria da empresa. Em princípio, estamos partindo para a contratação de um estruturador que vai apresentar ao governo os cenários possíveis, dentro dessa perspectiva de privatização. Os cenários vão desde a venda total do que resta da Celgpar, que nasceu estatal, até a opção de vender as investidas – as participações da companhia com outras empresas.
Eu, particularmente, com a experiência que tenho de mais de uma década na Celg, acredito na riqueza da mão de obra que temos. A Celg, ao longo desses anos, tem investido muito no seu quadro de colaboradores. Toda essa expertise adquirida ao longo dos anos pode ser aproveitada no setor de infraestrutura, diretamente na área de energia, mas também em muitas outras. É uma riqueza de tal ordem que não deveria ser desperdiçada.
Eu defendo a venda das participações, mas também defenderei a manutenção da Celgpar enquanto um órgão de assessoria do Estado. Um braço do governo estadual que seja capaz de fazer um papel análogo ao que o Ministério de Minas e Energia desempenha no governo federal.
A Celg está apta a acompanhar qualquer projeto para resíduos sólidos, energia limpa, fibra ótica, carros elétricos
Fernando Navarrete
Italo Wolff – Como funcionaria esse modelo ideal para o senhor?
A Celg tem cinco sociedades investidas e duas concessões. Nesse modelo ideal, nós abriríamos mão mão dessa parte em que há a participação de terceiros e manteria o quadro de pessoal, que já é bastante enxuto. Hoje, a Celgpar tem 47 colaboradores com vínculo direto com a companhia, trabalhando lá; e outros 52 também com vínculo na companhia sendo já aproveitados pelo Estado.
Mantendo essa estrutura de pessoal e com toda a estrutura física que já possuímos, podemos ter uma empresa prestadora de serviço para o Estado. Podemos desenvolver a agenda de energia renovável, energia limpa, tratamento de resíduos sólidos, eletricidade nos veículos do transporte público, nos próprios carros de uso do Estado, em pesquisa do hidrogênio verde. São tantas as possibilidades que a Celg tem com a expertise do seu pessoal que reestruturar a empresa direcionando-a para prestar serviços ao Estado seria simples e oportuno.
O governo não tem uma empresa preparada para assessorá-lo nesse assunto. Com nosso quadro de profissionais, poderíamos tocar projetos na área de fibra ótica, por exemplo. Temos expertise para levar conectividade a qualquer região do estado. A empresa construiu uma rede de 650 quilômetros de fibra ótica na região metropolitana de Goiânia, e isso foi feito por servidores que ainda trabalham na Celgpar.
Porem, se a decisão for da alienação total da participação do Estado na companhia (hoje o Estado representa 99% dos investidores da Celgpar), aí acabou. A Celg, que nasceu em 1955 em Piracanjuba com a Usina Hidrelétrica Rochedo, deixará de existir.
Aline Bouhid — Existem muitas críticas à privatização de um modo geral. Para tomar a decisão de privatizar ou não a companhia, se calcula o desgaste político. O senhor acredita que valeria a pena assumir esse desgaste?
Essas discussões acerca do benefício ou malefício das privatizações, no fundo, são conversas ideológicas entre uma economia liberal e uma economia com intervenção estatal. Na minha opinião, é relativo. Décadas atrás, o setor de energia era tão estratégico para o país que imaginar sua privatização implicava em riscos até à segurança nacional. Hoje, com as novas tecnologias de minigeração, por exemplo, mais importante do que gerir subestações é que o estado preste um serviço de excelência, como o que Goiás presta.
Eu entendo que é muito complicado para um governo dispensar uma assessoria na área de energia e de infraestrutura tão qualificada. Hoje, a Celgpar é demandada pelo estado – nós somos jurisdicionados a Secretaria-Geral da Governadoria (SGG), que tem uma subsecretaria direcionada a energia e infraestrutura. A SGG nos demanda cotidianamente, o que demonstra a dependência clara que o estado tem da mão de obra qualificada da Celgpar.
Aline Bouhid — Como a Celgpar tem atuado nas usinas fotovoltaicas neste momento de transição energética para fontes limpas?
Essa foi uma das missões mais importantes que nos foi dada. A preocupação com a transição é primordial para o governo, que determinou que o Estado seja exemplo em eficiência energética e demonstre preocupação com fontes limpas de energia. Estamos concluindo nos próximos dias uma usina de 6,5 megawatts em Cachoeira Dourada pensada para atender todo o Grupo B da Secretaria de Educação no município. O Grupo B é o grupo de baixa tensão, o que significa as escolas pequenas da cidade. A usina já está pronta, falta apenas ajustar detalhes para que o governador possa inaugurá-la.
Outra usina, na Universidade Estadual de Goiás (UEG) em Anápolis, está 50% concluída. Essa irá atender todas as unidades da UEG no estado e também a Secretaria Estadual de Educação. Começaremos na próxima semana a construção de mais uma usina, na Central de Abastecimento de Goiás (Ceasa), e tornará a Central completamente independente da energia distribuída pela Equatorial. Parte da energia excedente será destinada à unidades de abastecimento do estado que serão definidas pela SGG.
Há duas outras usinas fotovoltaicas em planejamento. A Celgpar já tem os recursos necessários para construí-las. A companhia está bem capitalizada. Aguardamos apenas o planejamento final para definir a localização para a construção dessas usinas. Em resumo, a proprietária terá cinco noas usinas fotovoltaicas cuja produção soma 30 megawatts de energia absolutamente limpa e renovável.
Italo Wolff – Pode explicar as regras para a propriedade da distribuição, geração e transmissão no Brasil?
Até 2005, o setor tinha uma organização que permitia a mesma empresa distribuir, gerar e transmitir energia. A partir de então, o setor desmembrou essas atividades e uma mesma companhia não pode fazer todas. A distribuição foi separada completamente da geração e da transmissão. O mesmo grupo econômico não pode distribuir e transmitir. Mas, tecnicamente, se distribui por meio das linhas de transmissão.
As linhas de transmissão que servem para distribuição e que são de baixa tensão pertencem à distribuidora. Ela, na verdade, recebe a prestação de serviço pelo transporte da energia nas suas linhas de transmissão. As linhas de transmissão de alta voltagem (duzentos e trinta volts ou mais) são de transmissoras. O estado de Goiás tem muitas linhas de transmissão de várias transmissoras, não só da Celg, mas Furnas, State Grid, e outras as empresas que tem linhas de alta tensão, rebaixadas e depois distribuídas. Sobre as geradoras, o estado tem centenas de proprietários de geradoras de energia.
A Celgpar não tem mais nenhuma linha de transmissão para receber carga dessas empresas privadas de geração. As que tínhamos foram adquiridas pela EDP. Então não, a Celgpar não tem como contribuir com as geradoras fazendo conexão nas redes de alta tensão.
Italo Wolff — Se diz que a venda da Usina de Cachoeira Dourada quebrou a Celg Distribuição. É verdade?
Evidentemente que isso é uma discussão política sem fundo técnico. Aqui, tenho de fazer uma defesa técnica ao ex-governador Maguito Vilela. Eu não vou discutir a questão da oportunidade ou não da venda de Cachoeira Dourada, mas certamente essa venda em nada contribuiu para quebrar a Celg Distribuição. O que quebrou a Celg Distribuição foram outros fatos. Se a venda foi boa ou não – essa é uma discussão em que não entro. Mas garanto que não contribuiu para a falência da distribuidora.
Os colaboradores da Celgpar tem uma altíssima expertise e essa riqueza não deveria ser desperdiçada.
Fernando Navarrete
Aline Bouhid — O senhor mencionou que a Celgpar está bem capitalizada. Pode falar em valores? Quanto dinheiro a companhia tem em caixa?
Em 2021 foi promovido um um leilão de muito sucesso da Celg Transmissão. Uma coisa é a Celgpar com a transmissão no grupo e outra coisa é a Celgpar sem essa empresa. Até a ocasião da venda, o governo de Ronaldo Caiado (UB), por meio da Celg, conseguiu acumular três anos de lucro que somaram R$ 400 milhões em superávit na empresa, resultado de boa gestão.
É evidente que agora, sem a transmissão, os números vão ser mais modestos. Nós perdemos 87% da nossa receita e estamos nos reinventando. Ainda assim, somos independentes do tesouro estadual. Nós não dependemos do tesouro para seguir investindo nas nossas várias e diversas áreas de influência. Todas as usinas que mencionei estão sendo construídas com recursos próprios. Hoje, se tivéssemos um investimento para fazer, temos fôlego para chegar a R$ 150 milhões.
Italo Wolff — Pelo PAC, foi anunciado um investimento de R$ 30 bilhões em energia renovável. O senhor sabe como esse investimento pode vir e se a Celgpar pode receber investimentos dessa fonte?
Três anos atrás, houve o desenho de um projeto para o Estado gerar toda a energia que consome em suas sedes administrativas e também para a administração indireta. Para isso, seria necessária a construção de cerca de 25 usinas fotovoltaicas. Naquele primeiro momento, a Celgpar ficaria encarregada de fazer o projeto e a execução dessas obras. Entretanto, tivemos resistência.
A então secretária de economia, Cristiane Schmidt, se opôs a que o Estado fosse responsável diretamente por esses projetos e essas edificações. Nessa salutar queda de braço entre Celgpar e a secretaria de economia, acabou prevalecendo a ideia da secretária. Todos sabemos que ela tem um pensamento e segue uma doutrina 100% cento liberal. Já eu, em certa ocasião, dei uma entrevista para o Jornal Opção e acabei sendo qualificado como neokeynesiano (risos).
Eu particularmente sou muito favorável à intervenção estatal nos lugares certos, no tempo certo e no modo certo. É difícil justificar que o Estado seja dono de uma subestação de energia. Agora, o investimento, em hidrogênio verde é altíssimo, e se o Estado puder facilitar o investimento, essa é sua obrigação.
Além de gastar com órgãos próprios na gestão direta de autarquia e na gestão indireta com as empresas ligadas ao Estado, a Secretaria de Desenvolvimento Social arca com o ônus da eletricidade e saneamento e água de instituições filantrópicas, que também têm o Estado presente. Quer dizer, o investimento é muito alto. O que a gente não pode confundir é a má gestão de recursos com a ineficiência estatal em atuar. Essa confusão interessa a quem?
Um exemplo de que o bem público pode ser bem gerido e bem administrado é essa gestão do governo Ronaldo Caiado. Todos sabemos como essa gestão recebeu o Estado e o sacrifício que foi para as contas nos trilhos. Isso é sinal de que o Estado pode ser eficiente lidando com investimentos e recursos públicos.
Aline Bouhid — O senhor falou em hidrogênio verde. Quais ações de pesquisa existem dentro da Celgpar?
Em Rochedo, nós temos uma uma concessão de geração de energia. Ali, há um espelho d’água. Hoje, já existem já tratativas em andamento com Furnas, Governo do Estado e uma grande empresa da iniciativa privada para produzir por meio do hidrogênio verde insumos que possam ser utilizados na agricultura, aproveitando a vocação agropecuária do nosso estado.
O investimento em hidrogênio é altíssimo e seu retorno não será de curto prazo, mas é inevitável. É inevitável. Por essa razão, eu digo que a Celgpar sempre terá espaço para existir. É um braço do estado que não tem a obrigação de entregar R$ 400 milhões de lucro — tem a obrigação de entregar um resultado social. E preocupação social, este governo tem. Por isso, vou defender que a Celgpar continue existindo com seu quadro de pessoal de excelência, que pode fazer contribuições impossíveis de outra maneira.
Temos dois engenheiros eletricistas embarcando para a Áustria atualmente. Eles irão a um congresso internacional sobre manejo de resíduos sólidos. Nós já atuamos dentro desta área com as prefeituras, que, por lei, já deveriam ter implantado a coleta seletiva e o tratamento dos resíduos. O prazo que a lei federal deu já se esgotou e muitos municípios não têm ainda o know-how necessário. Os prefeitos desses municípios podem contar conosco.
Há vários meses atuamos na capacitação do pessoal de cidades do interior e fazemos tudo em nosso poder para oferecer soluções de coleta e reaproveitamento de resíduos sólidos. Com a prefeitura de Goiânia nós já tivemos cinco reuniões. Além de resíduos sólidos, oferecemos serviços e formação nas áreas de energia elétrica para soluções veiculares no transporte público. Somos capacitados para gerar energia limpa e renovável via biomassa, solar, hidroelétrica. Somos pioneiros nesse tipo de atuação.
Italo Wolff – Como a Celgpar pode ajudar a tratar resíduos sólidos?
Uma das etapas do tratamento de resíduos sólidos é a de geração de energia. Isso pode ser feito de forma indireta em depósitos por meio da queima de metano, um gás produzido pela decomposição da matéria orgânica nos lixões. Essa queima não gera poluição, pois o tratamento é todo feito dentro da unidade geradora, sem contato com a atmosfera.Entretanto, para se chegar na fase de geração de energia, é necessário ter uma expertise. A Celg está apta a acompanhar qualquer projeto de aproveitamento de resíduo sólido.
As prefeituras que demandarem know-how para isso podem nos procurar. Nossa vocação é pública. Enquanto empresa de capital aberto, existe uma minoria de investidores privados que nos obrigam a buscar equilíbrio econômico, e geração de dividendos, e lucro. Mas é notória a vocação pública da empresa. O que eu acho e lamento é que muitos entes públicos não conhecem a Celgpar, porque, se conhecessem, fariam uso de nossa capacidade de prestação de serviço.
Estamos abertos para receber todas as prefeituras do estado, sem distinção. Quem quiser se valer do nosso conhecimento para o que julgar necessário, pode contar com apoio na área de infraestrutura sobretudo de geração de energia, de tratamento de resíduos, de implantação de soluções em fibra ótica.
Italo Wolff – Existem projetos para carros elétricos?
Temos um projeto piloto em parceria com uma empresa da iniciativa privada que já está funcionando. Abastecemos veículos elétricos em quatro pontos de Goiânia. Mas nossa ideia é nos nos tornarmos independentes e atendemos o setor público. Com nossa capacidade de investimento e intimidade com o setor, já estamos preparados. O Estado tem o projeto de converter toda a frota que ele utiliza em veículos movidos à energia elétrica. Por isso, julgamos que será necessário esse apoio.
Italo Wolff — A Celgpar está assessorando o Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO)?
O TJ trabalha para se tornar 100% independente da rede normal de distribuição elétrica. O Judiciário deve se tornar o primeiro poder a utilizar exclusivamente energia limpa. Nós estamos trabalhando nesse projeto e vamos entregar a usina do Tribunal, e também faremos a operação de manutenção dessa usina, que será localizada ao lado da Usina da Seduc em Cachoeira Dourada.