Pós-doutoranda do IMT-USP afirma que estudo sobre mutações do Sars-CoV-2 no Brasil, com amostras de vários Estados, deve ser publicado nas próximas semanas

Jaqueline Goes de Jesus 7 - Foto Reprodução TV Globo
Biomédica Jaqueline Goes de Jesus, pós-doutoranda do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo da Universidade de São Paulo (IMT-USP) | Foto: Reprodução/TV Globo

A biomédica baiana Jaqueline Goes de Jesus, de 30 anos, viu a ciência ganhar holofotes nunca imaginados em sua carreira acadêmica. Ao lado da imunologista Ester Cerdeira Sabino, diretora do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo da Universidade de São Paulo (IMT-USP), Jaqueline coordenou a equipe do Instituto Adolfo Lutz que sequenciou no final de fevereiro o genoma dos dois primeiros casos do novo coronavírus no Brasil.

Além do trabalho inédito, o tempo gasto na pesquisa, de 48 horas, chamou a atenção do mundo. “Trabalhamos com a tecnologia desde 2016. Na nossa rotina laboratorial, fazemos isso em menos de 24 horas. Falamos 24 horas para pensar no processamento inicial da amostra até a geração do genoma, o que costumamos fazer em menos de 24 horas. Mas como era a primeira vez que fazíamos para o novo coronavírus, precisamos repetir”, explica a coordenadora da pesquisa.

Com a visibilidade que ganhou com a publicação do sequenciamento do genoma do Sars-CoV-2, Jaqueline continuou sua militância antirracista nas redes sociais. Os casos George Floyd, João Pedro e Miguel Otávio são abordados pela pesquisadora na entrevista ao Jornal Opção, assim como os avanços no trabalho de vigilância genômica, o uso da tecnologia na ciência e outros vírus, como dengue, zika e chikungunya.

Como a equipe que a sra. coordenou conseguiu sequenciar o RNA dos dois primeiros casos de novo coronavírus no Brasil?
Nós trabalhamos em termos de vigilância genômica, que consiste basicamente em sequenciar vírus com o quais já trabalhávamos, como zika, chikungunya, dengue, febre amarela, e acompanhar os casos ao longo do tempo no Brasil para ter uma noção de como esses vírus são transmitidos.

A ideia da vigilância genômica é gerar genoma dos casos que são identificados, diagnosticados, no Brasil para entender se os vírus passam por mutações com uma taxa maior. Se as mutações são benéficas ou maléficas, vantajosas ou desvantajosas para os vírus, se existe o indício de alguma nova epidemia em surgimento pelo aumento do número de casos.

Por conta da estratégia que temos, conseguimos nos organizar em termos laboratoriais para atender outras demandas ou para sequenciar outros vírus, como foi o caso do novo coronavírus. Quando soubemos dos casos na China, principalmente do fechamento da cidade de Wuhan, começamos a cogitar a possibilidade de o vírus de fato se espalhar pelo mundo e chegar ao Brasil. Começamos a preparar e solicitas os reagentes, alguns são específicos para cada vírus, de modo que tivéssemos tudo preparado no Brasil para o caso de o vírus chegar.

Como já tínhamos a colaboração com o Instituto Adolfo Lutz por conta de um projeto de dengue, ocorreu de o caso chegar ao Adolfo Lutz por conta da necessidade da contraprova e nos convidaram a participar do sequenciamento. Como nós temos a expertise e dominamos a tecnologia, fomos para o Adolfo Lutz para trabalhar junto com a equipe do instituto e para ensiná-los a fazer. Tanto é que o Adolfo Lutz continua a sequenciar os outros casos que são diagnosticados. Não sei se estão usando a mesma metodologia de sequenciamento, mas em termos de protocolos, reagentes, os primers (iniciadores) que são específicos para o vírus, transferimos toda a tecnologia para eles.

O trabalho iniciado pela sra. e a professora Ester Cerdeira Sabino tem novos resultados?
Continuamos a trabalhar no âmbito do Cadde [Centro Conjunto Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus], que é o projeto que tem essa tecnologia, no qual desenvolvemos a vigilância genômica. Não mais no Instituto Adolfo Lutz, mas no laboratório do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo (IMT-USP).

Temos hoje cerca de 500 amostras de genomas gerados que estão em análise para publicação que provavelmente sairá em breve. Ainda não posso passar informações porque, em alguns momentos, a cadeia científica precisa segurar os dados para conseguir publicar. No meu caso, por exemplo, como divulgamos logo os primeiros sequenciamentos e fizemos postagens nos blogs científicos, depois tivemos dificuldade de publicar em uma revista renomada na área da saúde e de ciência por não ter mais o ineditismo.

É um fato claro entre os pesquisadores de que há a necessidade de se compartilhar as informações de novas descobertas o quanto antes para que os dados colaborem com possíveis avanços de outras pesquisas, como no caso do novo coronavírus?
É consenso entre os cientistas que precisamos divulgar o resultados, que quanto mais cedo trouxermos as informações a público, principalmente para a comunidade científica, melhor são os resultados que podemos ter de forma conjunta. A questão é que as revistas científicas não têm se portado da mesma forma. Particularmente com o trabalho que fizemos com os primeiros casos, tive dificuldade de publicar por ter divulgados os dados.

Talvez se tivesse ficado mais quietinha tivesse conseguido publicar em uma revista mais renomada para publicação ou citação de artigos. Não consegui pelos resultados terem sido muito divulgados na mídia nacional e internacional. Entre os cientistas, entendemos que é preciso compartilhar os dados, mas ao mesmo tempo precisamos de nos resguardarmos um pouco para que as revistas possam aceitar os artigos e publicar. É um verdadeiro dilema.

Chamou muita atenção o fato de o genoma do Sars-CoV-2 ter sido decodificado em 48 horas. Mas a tentativa, por meio da tecnologia MinION, era de chegar ao sequenciamento em 24 horas. Por que para o grupo que trabalha na pesquisa não é uma surpresa?
Trabalhamos com a tecnologia desde 2016. Na nossa rotina laboratorial, fazemos isso em menos de 24 horas. Falamos 24 horas para pensar no processamento inicial da amostra até a geração do genoma, o que costumamos fazer em menos de 24 horas. Mas como era a primeira vez que fazíamos para o novo coronavírus, precisamos repetir.

Fizemos a primeira vez. Como o genoma não ficou próximo de 100% de cobertura, resolvemos repetir. Na segunda tentativa foi que nós conseguimos então o que chamamos de cobertura do genoma, que é o percentual aproximado de um genoma completo. A primeira tentativa chegou a pouco mais de 96% e na segunda foi 98%.

Para nós não é uma novidade porque a tecnologia que usamos permite essa rapidez na geração do genoma, que é a tecnologia do MinION. Até pouco tempo, poucos países e grupos de pesquisa conheciam. Ficou muito conhecida recentemente por conta do coronavírus. Muitos grupos de pesquisa que já utilizam tecnologia também publicaram rapidamente as suas sequências, o que trouxe luz para uma coisa que nós já conhecemos e trabalhamos, mas que muitos pesquisadores ainda não conheciam.

Quando o uso da tecnologia MinION começou a ser utilizada no Brasil, o custo era maior para gerar os resultados. O que fez com que o valor de utilização nas pesquisas fosse barateado?
Trabalhamos há quatro anos com a tecnologia. No nosso grupo de pesquisa, temos uma estudante de doutorado, Ingra Morales, que trabalha especificamente com a redução de custos nos protocolos. Antes de chegar ao grupo da dra. Ester, eu já trabalhava em colaboração com essa tecnologia, mas em Salvador (BA). Fui para o laboratório do dr. Nicolas Lobo, na Inglaterra, que é um dos pesquisadores que trabalham fortemente com essa tecnologia e que tem feito muitos testes para a empesa que comercializa o sequenciador.

Eu fui para a Inglaterra em 2017 e voltei no início de 2018. Voltei para o Brasil e Ingra foi logo depois. Com isso, temos reduzidos os custos porque temos alterado o protocolo. Ao alterar o protocolo, optamos por reagente mais baratos, etapas que conseguem ser reduzidas durante o protocolo que reduzem o número de reagentes que usamos, a quantidade de material utilizado.

Além disso, a própria empresa – Oxford Nanopore Technologies – tem trabalhado cada vez mais para aumentar a quantidade de amostras que podem ser processadas ao mesmo tempo. Isso também traz um custo menor, considerando que quanto mais amostras conseguimos sequenciar ao mesmo tempo menor é o custo dos reagentes que utilizamos, uma vez que a maioria dos reagentes que utilizamos para uma amostra também usamos para 20 ou 30 amostras. Em tese, quanto mais amostras são incluídas em uma corrida menor é o custo por paciente.

Quando pensamos no desenvolvimento de um medicamento ou uma vacina para o novo coronavírus, é preciso levar em consideração as mutações do Sars-CoV-2. Alguns cientistas dizem que a mutação do coronavírus é muito pequena. É o que se constatou no Brasil até agora?
Identificamos as mutações que o vírus tem sofrido ao longo do tempo, principalmente por avaliarmos diversas amostras dos Estados, não só de São Paulo. Além de termos as amostras que circula em São Paulo, conseguimos fazer parceria e receber amostras de ouros Estados que têm mostrado cepas diferentes do vírus por conta das mutações que são adquiridas. Principalmente por conta das particularidades da população.

Cada transmissão tem uma particularidade. Temos cepas que vieram da Espanha, da Itália, da Suíça. Até o momento, identificamos mutações importantes, mas que não têm uma significância tão relevante para a produção de uma vacina no sentido de que não estão abrigadas em regiões consideradas hidrogênicas, que são aquelas usadas para se produzir a vacina. São resultados que ficarão públicos em breve. Em semanas devemos submeter o artigo [a publicação], que costumam ser respondidos rapidamente.

O exemplo dos vírus Influenza mostra que o alto nível de mutação exige que anualmente seja desenvolvida uma vacina diferente. Seria diferente no caso do novo coronavírus, que provavelmente uma vacina seria eficiente na prevenção em dose única?
Sim. Muito diferente. Porque a taxa de mutação do vírus é bem menor do que a Influenza. Temos uma taxa de mutação de duas a três por mês. Isso já é suficiente para termos uma tranquilidade de que, inicialmente, com uma vacina teremos uma boa cobertura vacinal [imunização].

“Para nós não é uma novidade porque a tecnologia que usamos permite essa rapidez na geração do genoma”

Jaqueline Goes de Jesus Ester Cerdeira Sabino - Foto Reprodução TV Globo
Ester Sabino e Jaqueline Goes queriam sequenciar o genoma do novo coronavírus em 24 horas, mas foi preciso refazer o processamento da amostra para chegar a uma cobertura de 98% do Sars-CoV-2 | Foto: Reprodução/TV Globo

Nos últimos meses, houve um aumento significativo no número de seguidores nas suas redes sociais. E são canais que a sra. usa para falar de outras questões além da ciência, como o racismo. Desde o início da carreira como pesquisadora, quais foram as dificuldades enfrentadas pelo fato de ser negra? Como a sra. vê os negros na carreira científica hoje no Brasil?
Já fazia militâncias nas minhas redes sociais. Sempre fiz. Ocorreu de a rede ter um alcance muito maior. Continuo fazendo a mesma militância, que agora tem uma relevância maior por conta do alcance. Eu nunca sofri nenhum episódio explícito de racismo. Não na academia, no meu ambiente de trabalho. Entre os meus parceiros de instituto, na Fiocruz [Fundação Oswaldo Cruz], nunca sofri qualquer episódio explícito.

O que sofremos todos os dias está relacionado com o racismo estrutural, que é justamente aquele conjunto de ações, atitudes, pensamentos e falas das pessoas, que sempre foram consideradas normais, mas entendemos que são falas racistas. Algumas expressões, a forma como a pessoa se comporta. Comigo sempre foi dessa forma.

Precisamos estar muito atentos, ter uma sensibilidade bem aguçada para entender, perceber e estar bem ligados nas questões de discurso racial para perceber que está vivendo situações de racismo. Comigo, as situações que vivi sempre foram de racismo velado. E vamos assim, batendo de frente enquanto dá, quando é possível. Nem sempre é possível, mas tentamos desconstruir.

É uma ideia mesmo de desconstrução porque é uma construção social e as pessoas acreditam mesmo que estão fazendo a coisa certa. Elas seguem a ter certas atitudes por acharem que fazem a coisa certa. E na verdade não é bem dessa forma.

Na sua carreira como pesquisadora, a cada degrau que a sra. avançou, da graduação ao pós-doutorado, trabalhou com outros negros ao longo da sua atuação?
Tive contato com poucos. Se fosse fazer uma estimativa, diria que 5% das pessoas que conheci na academia eram pessoas pretas. O acesso hoje está mais facilitado, mas a manutenção na vida acadêmica é difícil. É bem difícil porque requer uma dedicação que muitas vezes as pessoas não podem ter, principalmente pessoas com menor poder aquisitivo, em situação social mais difícil. Não conseguem manter porque a remuneração na academia nos primeiros estágios não corresponde com o custo de vida.

Para você se manter na academia, fazer mestrado e doutorado, normalmente é preciso ter um aporte financeiro da família. Socialmente, sabemos que as pessoas com menor poder aquisitivo são também as pessoas pretas. Isso acaba por alimentar o sistema que já existe. São poucas as pessoas pretas que têm poder aquisitivo para se manter na academia, considerando que a própria academia não dá condições suficientes para que a pessoa, sozinha, com a remuneração da bolsa de mestrado ou de doutorado possa se manter.

Na pesquisa de sequenciamento do novo coronavírus em parceria com o Adolfo Lutz, houve alguma dificuldade no financiamento do trabalho? E o que ainda há de dificuldade em estrutura e material que ajudaria no avanço da pesquisa?
No nosso trabalho, temos a vantagem de ter parceria, inclusive financiamento, vindo de uma agência de fomento muito consolidada no Brasil, que é a Fapesp [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo]. Como nosso edital foi em conjunto com o MRC [Medical Research Council], que é uma agência de fomento do Reino Unido, não sentimos dificuldade financeira para tocar o projeto porque temos recurso destinado especificamente para a vigilância genômica. Como ainda está em desenvolvimento, tudo isso facilita.

Mas conheço muitos grupos de pesquisa, não só em São Paulo, mas em Salvador e no Rio de Janeiro, que tiveram seus aportes financeiros reduzidos por conta da redução nos investimentos em pesquisa e que tiveram de reconfigurar a estrutura, não só de projetos em desenvolvimento, como também de recursos humanos. Muitos colegas da Fiocruz na Bahia não puderam continuar seu ciclo de mestrado e doutorado porque, nessa transição, deixaram de ganhar uma bolsa que era costume de ter.

Quando pensamos nos processos seletivos, de dez bolsas ofertadas agora só tem duas. Imagine que oito pessoas que tinham previsão de serem aprovadas no processo seletivo para receber a bolsa agora não têm mais previsão. Muitos colegas perderam bolsas de mestrado, de doutorado, no processo de transição de uma fase para outra. Obviamente, isso impede que eles continuem a fazer seus projetos com a mesma dedicação. Porque não tem como você trabalhar com uma carga horária de 40 horas semanais, por exemplo, e desenvolver uma pesquisa de mestrado e doutorado, que exige uma dedicação maior.

Estamos vivendo esse momento. Nosso trabalho especificamente não, mas colegas e pessoas do meu convívio perderam financiamento, bolsa, e estão paradas. Não trabalham com coronavírus e não tiveram como reverter seus projetos para incluir o novo coronavírus.

Como a sra. tem percebido a relação que a sociedade tem com as pesquisas científicas e com o meio acadêmico?
Ainda existe muita resistência. Principalmente porque vivemos uma dicotomia em termos políticos e ideológicos no Brasil que acabam por atrapalhar. Ainda se duvida muito dos resultados científicos, as pessoas atacam muito os resultados que não condizem com o que elas querem acreditar ou que é posto em discussão pela mídia ou pela própria política brasileira.

No início, estava bem confiante e otimista em relação ao ganho de apoio da população. Mas hoje vejo que ainda temos um caminho longo a percorrer. Acredito que a ciência ganhou muito, não só a ciência brasileira, mas a ciência mundial com toda repercussão. Não minha especificamente, do nosso grupo, mas a repercussão da ciência como uma luz no fim do túnel em relação à pandemia.

Todo mundo hoje espera uma vacina, um medicamento eficaz. E todo mundo sabe que quem faz, quem produz, quem desenvolve vacina são pesquisadores, são cientistas. Quem trabalha com fármacos, seja testando ou produzindo, são pessoas relacionadas à área da ciência. Hoje a ciência tem um valor inestimável que está sendo reconhecido pela população. Mas ainda, mesmo assim, enfrentamos muita resistência.

A sra. acredita que, em algum momento, a universidade se afastou da sociedade?
Acredito que a academia se afastou por um bom tempo. Não sei dizer se já esteve presente, se já dialogou de forma compreensível com a sociedade. Quando revemos a história científica, vemos que muito do que foi feito e tem uma relevância enorme para a sociedade veio de uma forma vertical. Muitas das decisões anteriores foram feitas de forma vertical. Tanto é que temos casos com a Revolta da Vacina, de o povo desacreditar dos benefícios da ciência.

Nós cientistas nos afastamos muito da sociedade. Também por uma falta de habilidade em conversar em termos mais populares. Por incrível que pareça, com todo nosso conhecimento, com tudo que alcançamos em conhecimento técnico e específico na nossa área, ainda temos dificuldade de trazer isso para uma linguagem mais própria para a população entender.

Tem uma outra discussão em relação a isso que é o fato de nós cientistas não sermos comunicadores. Não temos uma formação para ser comunicador. Talvez a ciência precise ter contato ou contar com uma equipe de comunicação especializada. Não sei nem se de fato existe interesse nisso, mas agora é o momento de repensar essas questões para que possamos conversar com a população de modo que as pessoas entendam o que ocorre.

Falar termos técnicos ou muito específicos, às vezes nós, que somos de outra área de pesquisa, não conseguimos compreender. Quem dirá a população que não foi à universidade e que não é daquela área. É um conjunto de coisas. Mas sim, sem dúvida, nós cientistas temos uma parcela de culpa.

Desde o final de fevereiro, quando foi confirmado o primeiro caso de Covid-19 no Brasil em um homem de 61 anos, o que mudou na rotina diária da sra.? Como está a vida da sra. hoje?
Inicialmente ficamos com a rotina bem corrida por causa do laboratório, as amostras chegavam em precisávamos dar uma resposta bem rápida. Inicialmente foi muito difícil. Ficamos voltadas especificamente para gerar mais genomas, o que ocorreu por volta de um mês e meio a dois meses. Passávamos, inclusive, madrugadas no laboratório porque entendíamos que precisávamos fazer tudo de forma mais rápida para dar uma resposta.

Hoje estamos tentando voltar à normalidade porque fisicamente existe um limite. Não conseguimos nos dedicar muito mais do que nos dedicamos porque o próprio corpo começa a dar sinais de esgotamento. Começamos a reduzir o ritmo de trabalho, com tentativas de intercalar neste momento as pessoas que vão ao laboratório também pela questão de exposição, que precisamos nos guardar.

Minha vida tem sido em torno da ciência. Todas as atividades que fazia fora as atividades científicas eram atividades comunitárias que hoje estão zeradas porque não podemos nos aglomerar. Fazia escola de dança, que está fechada. As atividades que eu fazia no Ibirapuera, que também está fechado. Não podemos fazer muita coisa. Fico em casa quando estou de folga. Quando estou em casa também faço coisas do trabalho, com dedicação a alguma parte mais burocrática ou analítica. A vida tem sido desse jeito, é o nosso novo normal por agora.

Como a cidadã Jaqueline tem encarado todos os fatos mais recentes, como o Brasil ter atingido mais de uma morte por minuto na quarta-feira, 4, o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, de João Pedro no Rio e Miguel Otávio em Recife?
Acredito que as discussões que estão ocorrendo no momento são importantes. Mas elas não podem se resumir a este momento. É muito bacana que houve uma comoção nas redes sociais em relação à morte de George Floyd, por exemplo, mas é muito hipócrita a gente se portar nas redes, que é o que mais temos visto na pandemia porque as pessoas não podem sair, como antirracista ou preocupado com as questões sociais só naquele momento.

Essas mortes ocorrem no Brasil o tempo inteiro. As estatísticas mostram que a cada 23 minutos um preto – mas entenda-se jovens de condições sociais menos favorecidas – é assassinado. É revoltante, obviamente, mas não sei se já estou em um nível de anestesia social talvez tão grande que a única coisa que consigo pensar agora é: quando é que nós vamos discutir isso de forma constante?

As mortes que estão ocorrendo não são novidade. Pelo menos não para mim, que estou acostumada a ver isso. Não naturalizado, obviamente, isso revolta toda vez que ocorre. Mas ocorre todos os dias, o tempo inteiro. E agora que tenho tido mais contato com pessoas do movimento negro, com pessoas dos movimentos sociais, ficamos sabendo de coisas que ocorrem nos bastidores, muito mais do que sai na mídia.

Ficamos cansados de todos os dias receber notícias de duas, três, quatro mortes por conta dessas questões sociais. Hoje, como cidadã, acho muito bacana que haja essa discussão. Mas luto e reivindico para que isso ocorra constantemente. E que, mais do que isso, tenhamos representatividade, porque não existe. Não temos. Se pensarmos em termos percentuais, a população negra do País ocupa muito menos do que 10% dos cargos de chefia, dos boards (conselhos de administração) das grandes empresas.

Essa mudança precisa começar e só vai ocorrer quando as pessoas começarem a reconhecer seus privilégios, sejam eles financeiros, raciais ou qualquer outro tipo de privilégio, e derem espaço para aquele que tem menos privilégio ou que não teve privilégios. Só assim que vamos conseguir mudar.

“Se fosse fazer uma estimativa, diria que 5% das pessoas que conheci na academia eram pessoas pretas”

Jaqueline Goes de Jesus - Foto Reprodução TV Globo
“Para você se manter na academia, fazer mestrado e doutorado, normalmente é preciso ter um aporte financeiro da família. Socialmente, sabemos que as pessoas com menor poder aquisitivo são também as pessoas pretas” | Foto: Reprodução/TV Globo

Como é a sua relação pessoal com a Covid-19: é uma doença que lhe causa medo ou preocupação?
A minha relação pessoal é obviamente enviesada. Para quem é da área da saúde, por mais que saibamos das dificuldades e das gravidades doença, estamos acostumados a viver com o risco. Para quem já trabalhou com amostras de HIV, que é o meu caso, amostras de HTLV, sempre fico exposta. Sempre estive na berlinda de me infectar com aluma coisa. Acabamos por criar uma capa dura. Perdemos um pouco do medo de nos infectar.

Mas é óbvio que vejo com preocupação porque sei que muitas pessoas são de grupos de risco ou não e que estão desprotegidas na pandemia. E isso pode realmente ceifar vidas que para mim são importantes – não que as outras não sejam -, mas falo das que estão no meu círculo de convívio. Tenho meus pais, minhas avós, que ainda são vivas, e que podem se infectar a qualquer momento se houve um deslize no controle, nos cuidados.

Pode ocorrer. Eu tenho medo disso. A minha preocupação está muito mais relacionada às pessoas que eu amo, da minha família, com quem eu convivo do que por mim mesma.

Além do trabalho com o novo coronavírus, a sra. trabalha com outros vírus, como zika, dengue e chikungunya. Temos alguma perspectiva de avanço no tratamento dessas doenças?
No momento ainda não. Inclusive tivemos as pesquisas interrompidas por causa da Covid-19. Eu, particularmente, estou com a minha pesquisa um pouco prejudicada por conta de não ter mais acesso aos pacientes.

Sabemos que há um surto de dengue concomitante ao surto de Sars-CoV-2, mas não temos acesso a esses pacientes principalmente porque os serviços de saúde que atendiam e diagnosticaram, muitos se voltaram para as pesquisas de Covid-19. Estamos tendo um surto de dengue sendo mascarado pela pandemia.

Não deu para progredir muito desde de quando cheguei a São Paulo. Tenho um estudo que vamos pensar como vamos fazer. Tinha um objetivo de apresentar mil genomas de dengue tipo dois incluindo o Estado de São Paulo e alguns Estados do Sudeste e Tocantins. Mas que provavelmente será reduzido. Não chegaremos a mil porque perdemos o surto deste ano.

Isso também ocorre com os outros vírus, como chikungunya, que tem sido mascarado por causa da pandemia. Zika não temos muitos relatos hoje de casos no Brasil, considerando o surto de 2015, mas volta e meia temos pequenos picos emergindo em algumas cidades.

Tentamos acompanhar. Diagnóstico continua a ser feito, mesmo que em menor escala. Mas em termos de terapêutica, inclusive prevenção com a produção de vacinas, está tudo um pouco prejudicado por causa da pandemia. Não temos muitos avanços.

A sra. citou desde que chegou a São Paulo. Está na capital paulista há quanto tempo? Foi para São Paulo para fazer o pós-doutorado?
Exato. Vim para São Paulo por causa do pós-doutorado. Estou aqui há 11 meses. Completo um ano no início de julho.

Se importa de dizer a sua idade?
Tenho 30 anos. Nasci em 1989.

Tem algum assunto que eu não perguntei e que a sra. gostaria de abordar?
Gostaria de reforçar a colaboração. É sempre um trabalho em equipe, apesar de eu ter ficado à frente midiaticamente falando. Inclusive até recuei um pouco para que outras pessoas da equipe possam se destacar. Não fazemos nada sozinho aqui no Brasil.

Temos colaboração com outros centros de pesquisa, como a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC), a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e com a Fiocruz da Bahia. Fora do Brasil temos colaboração com a Universidade de Oxford, a Universidade de Birmingham, a Universidade de Edinburgh.

É uma rede muito grande. E seria injusto eu ficar falando dos resultados como se tivesse feito tudo sozinha. Acho importante destacar a questão da colaboração, que é muito grande e que cada um faz um pouquinho.

A sra. ainda tem ligação com a Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública?
Sim. Sou professora adjunta. Estou de licença para fazer o pós-doutorado por conta da dedicação exclusiva que é exigida pela Fapesp. Ainda estou no quadro de professores, mas não estou exercendo nenhuma atividade.

Nasceu em Salvador?
Sou soteropolitana. Nasci em Salvador mesmo.

Ester e Jaqueline Goes 1 - Ilustração Turma da Mônica
Ester Sabino e Jaqueline Goes foram homenageadas no projeto Donas da Rua, da Turma da Mônica em parceria com a ONU Mulheres | Ilustração: Turma da Mônica/Donas da Rua/Mauricio de Sousa