Uma pequena e instrutiva história de como os presidentes da República caem no Brasil
01 julho 2017 às 09h30

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A palavra golpe é central na história do Brasil. O que derrubou Dilma Rousseff? Mais a incompetência do que a corrupção. O que pode derrubar Temer? O cansaço com a corrupção

O maior artista brasileiro tem um nome singelo — Golpe da Silva Canarinho. Desde 1930, o país definiu sua arte: derrubar presidentes da República. Trata-se da arte patropi mais refinada.
A Revolução de 1930 é tratada como “revolução”. Na verdade, uma denominação justa é outra: golpe. Havia um presidente no poder, Washington Luís, e havia um presidente eleito, Júlio Prestes. Mesmo assim, Getúlio Vargas uniu-se a Antônio Carlos de Andrada, além de outros políticos, para derrubar Washington Luís e impedir a posse de Júlio Prestes.
A “revolução”, se houve, ocorreu mais tarde, com o longevo governo do presidente Getúlio Vargas. Ditador, perseguiu de maneira implacável seus opositores — Washington Luís e Euclides Figueiredo, pai do presidente-geral João Figueiredo, foram exilados —, mesmo antes do Estado Novo (1937-1945). Ao mesmo tempo, promoveu uma ampla modernização da economia e da estrutura do Estado. As mulheres passaram a votar. O governo criou o salário mínimo e uma legislação trabalhista moderna. Foi decisivo na expansão da siderurgia. Criou a Petrobrás, já no governo democrático.
Em 1930, Getúlio Vargas chegou ao poder nos braços dos militares — os chamados “tenentes”. Em 1945, com o “pretexto” de que era preciso acabar com a ditadura, considerando que uma ditadura havia caído na Europa, o nazi-fascismo, os mesmos militares o apearam do poder. A preocupação com a ditadura, ou com o ditador, era tanta que, para sucedê-lo, o país elegeu Eurico Gaspar Dutra para presidente da República. Dutra era general, dos mais conservadores — teve sua paixonite pelo nazismo de Adolf Hitler e pelo fascismo de Benito Mussolini —, e recebeu o apoio de Getúlio Vargas. A ditadura ruiu porque a democracia é sinônimo de “tanto bate até que fura”. É um vírus, às vezes de alcance lento, mas sempre poderoso. Os ditadores conseguem segurá-lo por um tempo, mas não para sempre.
Terminado o mandato de Dutra, que fez um governo anódino — moralista, proibiu, a pedido de sua mulher, o jogo nos cassinos —, Getúlio Vargas, o que havia caído em 1945, levantou-se e voltou ao poder, agora nos braços do povo. Mas, em 1954, na iminência de ser derrubado — havia aceitado tirar uma licença —, mata-se com um tiro no coração. Costuma-se informar que o suicídio evitou ou retardou o golpe. Na verdade, o suicídio foi provocado por um golpe — os fatos, contrários ao governo, já mandavam mais do que Getúlio Vargas. Carlos “Meu Nome É Golpe” Lacerda havia operado, ao lado de aliados políticos e militares, como Café Filho e Juarez Távora, e vivandeiras jornalísticas, como Assis Chateaubriand e Roberto Marinho, para arrancar o presidente do poder.
Em 1961, para a felicidade geral da nação (o cacófato é inevitável), os udenistas, artífices do golpismo, depois de terem tentado ganhar com Eduardo Gomes e Juarez Távora, encontraram um outsider populista, Jânio da Silva Quadros, para enfrentar o populismo que, paradoxalmente, apoiava um não-populista, o marechal Henrique Lott, do PSD.
Jânio Quadros ganhou de Henrique Lott. Carlos Lacerda e sua turma, Picassos e Rodins do golpismo, avaliaram que o outsider aceitaria os udenistas como insiders. Estavam enganados. O presidente era populista e, como Getúlio Vargas, autoritário. Portanto, não aceitava duplo comando. Mandava sozinho e, frequentemente, contrariava os liberais e os conservadores da UDN.
Embora tenha sido eleito pelo voto popular, Jânio Quadros pensou num golpe talvez inspirado no Estado Novo. Seu Plano Cohen atendia pelo nome do vice-presidente da República, João Goulart, o Jango. O presidente queria ser investido de poderes discricionários, com o apoio dos militares e da sociedade. Por isso, renunciou, acreditando que o povo da caserna não aceitaria a posse de João Goulart, o vice, e assim poderia voltar nos braços dos fardados e do povão. A renúncia era, pois, um golpe.
O “drummond” no meio do caminho é que Jânio Quadros, talvez acometido pela uisquezofrenia, não soube dialogar com a política do país e não entendeu que a história se repete mais como farsa do que como realidade — 1961 não era 1937 — e acabou sendo vítima da tradição conciliatória das, digamos, elites. A gestação do parlamentarismo era, por assim dizer, três golpes. Primeiro, contra os golpistas, pois impedia o golpe civil-militar. Segundo, travava o golpe de Jânio Quadros. Terceiro, era um golpe contra o novo presidente, João Goulart, pois reduzia seus poderes. Implantado como golpe democrático, se se pode assim, o parlamentarismo tinha tudo para dar errado, e deu. Logo, por meio de um plebiscito, Jango assenhorou-se do poder em definitivo.
Em 1964, aparentemente sem perceber que estava caindo, que estava se tornando o Getúlio Vargas de 1954, João Goulart desafiou a tradição conciliatória — aquela que permitiu a sobrevivência do governo de Juscelino Kubitschek, do qual havia sido vice — e partiu para o enfrentamento com os setores conservadores (muitos, a rigor, eram liberais), tanto civis quanto militares. Ao contrário de JK, que percebia a conjuntura com sua ampla visão de estadista, Jango cavou sua própria cova, ao se aliar a sargentos e marinheiros, e entregou o poder de bandeja para os coronéis e generais e civis como Carlos Lacerda e Magalhães Pinto.
Trinta e quatro anos depois, os tenentes de 1930 — Cordeiro de Farias e Juarez Távora — estavam finalmente instalados no poder, como ditadores inquestionáveis. Eles e os generais Castello Branco e Costa e Silva, entre outros.
Em meados da década de 1970, o presidente Ernesto Geisel, um general da escola de Castello Branco — a ala da Sorbonne militar —, percebeu que era preciso matar a ditadura, antes que a ditadura desmoralizasse as Forças Armadas. Mas era preciso devastá-la aos poucos, pois era vital minar, por dentro, a linha-dura — aquela que, numa espécie de golpe castrense, impôs Costa e Silva para suceder Castello Branco. Controlada a linha-dura da esquerda, os experts em guerrilha do ALN, da VPR e do PC do B, era hora de manietar a linha-dura da direita.
O ministro do Exército, Sylvio Frota, tentou um golpe contra o presidente Ernesto Geisel, mas este acabou por exonerá-lo, passando a controlar a linha-dura. Deu-se o contragolpe. Finalmente, os militares deixaram o poder em 1985, com a eleição de Tancredo Neves para presidente da República no Colégio Eleitoral. Como o político mineiro morreu, assumiu José Sarney. Comentaristas maliciosos sugerem que, com seu fardão da Academia Brasileira de Letras, José Sarney comportou-se, de certa maneira, como se fosse o último presidente militar.
Terminado o governo de José Sarney, com o país em crise, Fernando Collor, após derrotar Lula da Silva, assumiu a Presidência da República. Era um político fabricado em parte pela mídia, que comprou o discurso do caçador de marajás e de gestor capaz de modernizar o país — de fato, acabou com os automóveis-carroças —, e pelo povão, que acreditou na sua verborragia.
A República de Alagoas, com Fernando Collor no proscênio, havia decidido “privatizar” o governo, instaurando uma espécie de corruptocracia. Quem examina a história escrita pela imprensa fica com a impressão de que o país, promovido a príncipe da moralidade, ergueu-se, tornou-se gigante e derrubou o governo corrupto do playboy. O Congresso Nacional, tornando-se cidadão, quebrou as asas do aliado-mor de PC Farias. Uma história arrumadinha. Há outra história mais próxima da verdade.
Fernando Collor, no afã de constituir um grupo de poder, para além das forças partidárias, parece ter se esquecido que não se governa com um Congresso hostil. Seu estilo bonapartista contrariou o secular poder regional que, instalado na Câmara dos Deputados e no Senado, governa ao lado do presidente da República. Portanto, o presidente caiu, sofreu impeachment, menos por ser corrupto e mais por ter contrariado às forças políticas dominantes.
Na sequência, depois de um período de estabilidade, caiu a presidente Dilma Rousseff. A corrupção é um problema gigante, mas se torna ainda mais gigante dada a questão da moralidade. Mas, ao menos no caso do governo da petista, ela esconde outro problema gravíssimo: a incompetência técnica, a falta de visão de como se deveria conduzir tanto a política quanto a economia.
Dilma Rousseff é a face feminina — espécie de “similar” — de Fernando Collor. Lidava mal com os políticos, subestimava a inteligência e, sobretudo, a esperteza deles. Acabou devorada, junto com o PT e seus aliados. A corrupção nos governos do PT era pantagruélica, mas a petista caiu, em larga medida, porque dialogou mal com senadores e deputados federais e porque, ao tomar decisões erradas, criou uma crise econômica interna, sem nenhuma determinação externa. O golpe da incompetência a destronou, e não o suposto golpe das instituições (o tal “golpe constitucional”).
Michel Temer, ao contrário de Fernando Collor e Dilma Rousseff, conhece como poucos a força de deputados e senadores. Trata-se de um político do establishment congressual. Pode cair? Pode, mas, se depender da Câmara dos Deputados e do Senado, será muito difícil arrancá-lo da Presidência. Os que querem derrubá-lo falam em moralidade e em retirar um gestor corrupto do poder? É a verdade? Em parte, sim. Em parte, são os interesses de grupos e pessoais. A maioria pensa menos no país, na sua estabilidade — Temer tem garantido uma estabilidade pelo menos econômica —, e muito mais nos interesses. Porém, se Temer cair (o que pode derrubá-lo é o cansaço com a desfaçatez com que os políticos tratam os cofres públicos), o que acontecerá? O país continua. A democracia é assim mesmo. Se a Alemanha sobreviveu a Hitler, o Brasil não vai sobreviver a Temer? Vai, ainda que aos trancos e barrancos. O que todos querem, de verdade, é a manutenção da política econômica — não necessariamente a presença de Temer no Palácio do Planalto.