Ficar ao lado da mudança, de uma sociedade institucional, é postar-se ao lado de procuradores e promotores de Justiça, de policiais e magistrados decentes

Há uma tradição difícil de ser “dissolvida”: o País adere a um processo de mudança, às vezes de maneira acelerada, e, de repente, se dá uma marcha-à-ré. Trava-se a mudança ou então, de maneira hábil e sutil, trabalha para modulá-la, de modo a reduzir seu impacto. O que parecia algo densamente real se torna, aos poucos, uma quimera. As elites, tanto econômicas quanto políticas, quase sempre muito bem conectadas, se unem e, adotando a famosa “conciliação pelo alto”, esmagam a semente que poderia contribuir para a germinação de uma sociedade, se não nova, pelo menos mais inclusiva. (Quem não se recorda do homem que, para se mostrar superior a um entregador negro, mostrou a pele branca e se apresentou como rico? Este é o Brasil real — tão racista quanto desigual. Felizmente, a sociedade condenou a violência racista.)

Pode-se sugerir que, no nascedouro e até certo momento, o Partido dos Trabalhadores era agente de mudança? Talvez. Ocorre que, para manter-se no poder, no plano federal, o petismo “comprou” as elites estaduais e federais, num pacto faustiano, que acabou praticamente por destruí-lo — anulando sua capacidade de “mexer” nos alicerces da sociedade patropi. Voltou-se à estaca zero: à “tese” de que todos os políticos são iguais. Portanto, os eleitores concluíram que o objetivo número um deles é assaltar o Erário. Ante o radical de esquerda, que se tornou “ladravaz”, os eleitores optarem, na eleição de 2018, pelo radical de direita, que não é ou não parece ser “larápio”. Na sua maioria, os eleitores são mais “moralistas” e bidimensionais — o político “rouba” ou “não rouba” — e pouco afeitos ao debate ideológico. As ideologias servem, no máximo, para o combate entre os fronts de esquerda e de direita, mas não interessa ao brasileiro médio.

Deltan Dallagnol e Sergio Moro: símbolos de uma operação, a Lajo Jato, que quebrou o secular sistema de impunidade do Brasil | Foto: Reprodução

Deu-se, porém, um fenômeno no País, ainda não devidamente analisado — falta o necessário distanciamento — que pode ser nominado de “descolamento” de determinadas instituições, amparadas pelas leis, com uma geração mais jovem agindo com firmeza e competência, do controle do poder político e empresarial. Ministério Público Federal, Polícia Federal e Justiça Federal, cada qual com suas atribuições mas conectados, mostraram ao País, sobretudo aos homens dos poderes político e financeiro, que é preciso acatar as leis. Mostraram e continuam mostrando que as leis são para todos. Aconteceu uma “revolução” — pequena, média ou grande, ainda não se tem a dimensão exata — que, como ainda não acabou, não pôde e não pode ser descrita a contento, apesar da existência de alguns livros e análises consistentes. Como há forte envolvimento da esquerda no processo de corrupção investigado e denunciado — já com algumas condenações —, e ela exerce forte controle do pensamento acadêmico, a Operação Lava Jato ainda não foi examinada de maneira ampla.

Neste momento, há um pacto entre vários grupos políticos (e não deixa de ser sugestivo que um banco esteja comprando revistas importantes) — e, no geral, o meio universitário alinha-se, frise-se, nas críticas — contra a Lava Jato. A “conciliação pelo alto” inclui direita, centro e esquerda, porque, a rigor, quase todos chafurdaram no lamaçal da corrupção. Há inclusive jornalistas — um deles pego supostamente sendo “pautado” pela irmã de um político, e por isso se tornou adversário figadal da Lava Jato — que aderiram ao dique de contenção da operação que investigou o maior esquema de corrupção da história do país.

Pacto da impunidade foi rompido no Brasil. Parte das elites não “perdoa” o ex-juiz Sergio Moro e  o procurador Deltan Dallagnol

Depois de incensada, e agora atacada, a Lava Jato é importante por vários motivos.

Primeiro, por mostrar que o Brasil está mudando, se tornando, por assim dizer, mais institucional. A lei se tornou efetiva, não tem mais caráter simbólico.

Segundo, as leis não servem mais, pelo menos não totalmente, para reforçar e enfatizar as diferenças de classes sociais. Estabeleceu-se que os ricos e poderosos podem ser investigados, denunciados e, finalmente, condenados. E, se condenados, podem ir para a cadeia — e ficar lá por algum tempo, mesmo a despeito das ações hábeis de advogados que conhecem os caminhos certeiros para aliviar as penas de seus clientes.

O empresário Marcelo Odebrecht, chamado de “o príncipe dos empreiteiros”, ficou um longo tempo na cadeia — assim como outros empresários-executivos. O ex-presidente Lula da Silva e o ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci foram presos. O emedebista baiano Geddel Vieira, que pontificava na política nacional, dorme no xilindró há meses. Parece que há uma muralha a proteger o deputado federal Aécio Neves, do PSDB, mas não é improvável que acabe no xadrez. Provando a solidez tanto das instituições quanto da sociedade, que entendeu a necessidade do que está ocorrendo, alguns homens do poder foram levados à prisão e não houve nenhum estremecimento político e social. O país permanece sob regime democrático.

Há um terceiro aspecto, a respeito do qual o brasileiro é cético, mas se trata de uma questão factual: os corrutos devolveram e estão devolvendo dinheiro (e até quadros de artistas famosos) ao Erário. Sim, os poderosos foram presos, dormiram no xilindró, e ainda tiveram de repassar o dinheiro da corrupção — ou parte dele — ao Erário. Observe-se que a Operação Lava Jato quis repassar parte do dinheiro amealhado com as ações judiciais ao combate à pandemia do novo coronavírus, mas foi barrada pelo Supremo Tribunal Federal (onde pontificam grandes magistrados, como Celso de Mello, Edson Fachin, Cármen Lúcia e Luís Roberto Barroso). Os corruptos não estão sendo penalizados tão-somente com o arranhamento da imagem pública e com a perda, ainda que circunstancial, da liberdade. Estão sendo obrigados a devolver aquilo que roubaram ao Erário, ou, noutras palavras, à sociedade.

Faça um teste com você mesmo. De tão acostumado com denúncias de corrupção e malversação com o dinheiro público, é provável que não tenha pulado da poltrona, no café da manhã ou no jantar, ao ouvir a notícia de que o doleiro Dario Messer (prenome de um centroavante poderoso, Dadá Maravilha, e quase o sobrenome do craque argentino Messi) vai devolver ao Erário 1 bilhão de reais. Se leu a notícia em algum jornal e revista, se a observou bem, deve ter se perguntado: cadê, minha gente, a exclamação!? Sim, o doleiro dos doleiros está devolvendo aos cofres públicos 1 bilhão de reais! Notou, leitor, duas exclamações singelas neste parágrafo? Em jornalismo, sabe-se, exclamar não é de bom tom, porque é uma ação afeita ao campo subjetivo, não ao objetivo. Entretanto, para aliviar a alma, às vezes precisa-se do ponto de exclamação.

Dario Messer devolveria tal fábula — os brasileiros comuns “guerreiam” nas lotéricas, os cassinos legais da Caixa Econômica Federal, por causa de prêmios acumulados da Mega-Sena nos valores de 11 milhões e 23 milhões de reais, em média  — se não tivesse sido investigado pela excelência da Polícia Federal (o presidente Jair Bolsonaro está redondamente enganado se pensa que vai manietá-la), denunciado pelo Ministério Público Federal e laçado pela Justiça? O acordo estabelecido na Justiça prova que os corruptos estão finalmente devolvendo aquilo que afanaram, de maneira solerte, dos cofres públicos. Lembre-se, leitor, que o doleiro está devolvendo 1 bilhão de reais! (perceba, por favor, a exclamação). Caso raríssimo. Mas saiba, leitor, que muito já foi devolvido pelos corruptos que, há décadas, vêm roubando o dinheirinho ou dinheirão “suado” da sociedade.

O Ministério Público Federal — assim como os estaduais, o de Goiás é um dos mais qualificados do País —, com apoio de juízes (como o ex-magistrado Sergio Fernando Moro) e desembargadores conscienciosos, não é perfeito, claro. Mas, ainda assim, é excelente e merece que a sociedade o aplauda de pé. Os procuradores de justiça — assim como os promotores de cada Estado da Federação — contribuíram para o rompimento do pacto das elites, o da “conciliação pelo alto”, e por isso estão sob ataque, inclusive de setores da imprensa. Mas quem é decente, e não está envolvido, direta ou indiretamente, com falcatruas, certamente se incluirá na torcida dos que esperam que a imprensa não “compre” o discurso dos poderosos e não adira à “conciliação pelo alto” para conter a mudança. O que se quer, sublinhe-se, é que a sociedade dê um passo atrás. Por isso, de uma hora para a outra, o que mais se quer, aparentemente, é “desmoralizar” procuradores, como se eles, por algum excesso aqui e acolá — não dá para pegar grandes corruptos, organizados em máfias super organizadas e com amparo dos melhores advogados do País, seguindo todos os ritos legais (por acaso, os mandriões e seus protetores os seguem?) —, fossem venais, e não estivessem, isto sim, investigando e denunciando aqueles que se especializaram em assaltar os cofres públicos, reduzindo a capacidade de o Estado investir em educação, saúde e segurança. (O objetivo da máquina que trabalha para “triturar” Deltan Dallagnol é muito mais tentar desmoralizar a Lava Jato do que meramente destruir a reputação de um único procurador. Ocorre, porém, que Dallagnol é um dos principais símbolos da operação. Convém observar o “currículo” dos que frequentemente, no papel de vestais, atacam tanto o procurador quanto seus pares. Vale sublinhar que, para enganar os incautos, falam em defesa do Estado Democrático de Direito, como se, na prática, existisse para todos.)

Portanto, leitor: retirar a força do Ministério Público, conspurcando a Lava Jato — e o objetivo é impedir outras operações semelhantes à Lava Jato —, é estar a serviço dos que querem, a todo custo, conter a mudança em curso no País. Então, antes de atacar o Ministério Público, reflita: você pode estar, ainda que indiretamente, a serviço dos que não querem uma sociedade brasileira mais justa para todos. Ficar ao lado da mudança, de uma sociedade institucional — na qual as leis têm de ser cumpridas por todos —, é, neste momento, postar-se ao lado de procuradores e promotores de justiça, de policiais e magistrados decentes (como o ex-juiz Sergio Fernando Moro). Eles “quebraram” o secular Sistema de Impunidade dos poderosos no Brasil, criando uma espécie de “revolução institucional”, e parte das elites jamais vai perdoá-los. Pense nisto.