“Se um político quiser ser reeleito, que invista no bem-estar das pessoas”, diz Minouche Shafik

09 janeiro 2022 às 00h01

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“A eleição deste ano será a da barriga cheia. Governantes que se preocuparem com a sociedade em geral, notadamente com os pobres, certamente serão reeleitos”
A caminho do trabalho, o casal Helena e José França Marques passa quase todos os dias pela Avenida 136 (Jamel Cecílio), entre os setores Sul e Marista, em Goiânia. Ela dirige e, por isso, nem sempre pode prestar a devida atenção às acontecências das ruas. José, do banco do passageiro, observa João, um homem que, com problemas nas pernas, quiçá em decorrência de poliomielite, está sempre por ali, a esmolar. Quando o semáforo fecha, João, ancorado por uma muleta, passa pelos automóveis com a mão estendida, como se o gesto fosse fala, e agradece as moedas que recebe. Com sorte, ganha uma nota de 2 reais. Se nada recebe, não reclama, não xinga; antes, recolhe-se à larga ilha da rua.

Na mesma Avenida 136, nas proximidades do shopping Flamboyant, mais pessoas pedem esmolas. Mulheres, homens, jovens e meninos clamam por dinheiro para, dizem, “comer” alguma coisa (e fazem um sinal com as mãos informando que têm fome). Ao lado, numa unidade do McDonald’s, há uma fila de automóveis. O cheiro de carne grelhada é forte, quiçá prazeroso, para uns, talvez enjoativo, para outros. Os que pedem eventualmente exibem cartazes explicando a sua situação e sua reivindicação. Há motoristas que dão alguma coisa. Há motoristas que fecham os vidros, receando o assédio dos pobres ou com medo de assalto (há de se constatar que os que não têm nada ou têm muito pouco estão apenas pedindo).
Nas proximidades do Restaurante Mau Nenhum, na Rua T-4, no Setor Bueno, um homem magro, de 47 anos, que se identifica como Camilo, clama para Helena e José: “Vocês podem comprar um ‘malmitec’ para mim? Estou sem comer nada desde às 6 horas da manhã”. É verdade: ele está trêmulo. Parece ter “vergonha” de pedir comida. Camilo levanta-se com o sol raiando para catar papelão nas ruas de Goiânia. Quando o dia é “excelente”, pode faturar até 70 reais. Em média, depois andar vários quilômetros com seu “carrinho”, ganha de 30 a 40 reais por dia. Mora em Aparecida de Goiânia e paga 350 reais de aluguel. É casado, tem dois filhos e sustenta a família com o que recebe por ajudar a limpar a cidade. Nasceu no Maranhão, mas, ao saber que em Goiânia poderia ter uma vida melhor, não pensou duas vezes. Veio primeiro e, depois, trouxe a mulher e os filhos. “Até a escola é melhor em Goiás”, diz.
Helena e José, conversando a respeito do que veem todos os dias, notam duas coisas. Primeiro, há mais pedintes nas ruas de Goiânia, e de vários Estados — como Maranhão, Pará, Tocantins e Bahia — e também da Venezuela. Segundo, ante a pobreza histórica, percebe-se uma certa “naturalização” ou, quem sabe, “fatalismo”. A pobreza está ali, aí, então é quase “natural”. É um “problema” ao qual muitos, talvez a maioria, já se acostumaram. Os deserdados de tudo são um fato “incontornável” da sociedade brasileira.

Quando chegam ao trabalho, num escritório de advocacia, Helena e José conversam com seus clientes — empresários e políticos. Todos falam de eleições e de crescimento econômico. Há os que reclamam do preço da gasolina e comentam sobre a vacinação contra a Covid-19 e a variante Ômicrom.
A política é vital para qualquer sociedade, sabem Helena e José. Mas o que os pré-candidatos a presidente da República — de centro, esquerda e direita — realmente estão apresentando, neste momento, para os brasileiros?
Ao menos um, Lula da Silva (PT), sugere que pode extinguir a Reforma Trabalhista, que teria “prejudicado” os trabalhadores e, sobretudo, os sindicatos, que ficaram mais pobres.
Sergio Moro quase “fura” o disco ao falar que é preciso “acabar” com a corrupção.

Ciro Gomes, do PDT, parece ter solução para tudo, lembrando, ainda que vagamente, o célebre Simão Bacamarte, da novela ou conto espichado “O Alienista”, de Machado de Assis. Na verdade, o paulista-cearense é preparado, mas não há solução para tudo, e muito menos quando se sabe que um presidente governa quatro ou, máximo, oito anos.
João Doria é apegado à ideia de crescimento econômico. Aqui e ali, menciona a palavra “desenvolvimento” (a distribuição dos frutos do crescimento), mas não como centro do discurso. Sua fala é, aparentemente, mais para o mercado.
Jair Bolsonaro, o caubói de Marlboro, que talvez precise de “obstrução” na boca, não é o estadista adequado para um país do porte do Brasil. Qual é sua vocação? A rigor, não se sabe. Porém, de certa maneira, os brasileiros parecem entendê-lo, e talvez por isso o estejam rejeitando. Mas o presidente não compreende o país, seu imenso poder de uma das maiores potências globais, para o qual foi eleito. Não será surpresa se o político de direita travar, por vários anos, o caminho da direita de volta ao poder. Bolsonaro, além de desvalorizar a direita — a esclarecida, liberal —, acabou por “ressuscitar” a esquerda petista.

O que se está a sugerir é que praticamente todos os candidatos, que adotam discursos populistas — mesmo aqueles que dizem rejeitar o populismo —, têm um olhar mais para seus projetos pessoais ou de grupos do que uma visada para todos os brasileiros. Os que estão na base da pirâmide social, os pobres, aparecem nos discursos de maneira ilustrativa. Mas a preocupação real com os deserdados parece ser mínima. É provável que Lula da Silva, até por sua origem pobre — é, a rigor, um retirante nordestino que migrou para São Paulo para tentar re-fazer a vida —, tenha preocupações sociais genuínas. Entretanto, mesmo o petista precisa modernizar o discurso, porque há uma nova realidade social com o advento da pandemia.
Os homens de Estado, que dirigem a Presidência da República, os governos estaduais e municipais, precisam entender que não se pode “abandonar” os desertados ao deus-dará — como parece pensar o ministro da Economia, Paulo Guedes. Escreve-se “parece” admitindo a possibilidade de dúvida. Há uma tendência de avaliar que os pobres, os retardatários, podem ficar “para depois”, “para mais tarde”. Não podem. Porque precisam de ajuda não para o luxo, o ornamento, e sim como garantia de sobrevivência física. Neste momento, e enquanto existirem pessoas em situação de miséria praticamente absoluta, cuidar delas é uma questão de emergência. O assistencialismo, tão criticado por liberais ortodoxos — insensíveis às dores dos homens e mulheres das ruas e dos casebres —, é visceralmente necessário. Mas, claro, não basta “assistir”, porque se trata de uma inclusão vital mas parcial. Ao Estado — que deve ser um instrumento da sociedade, por isso não pode ser “apropriado” ou “privatizado” por uma classe social — cabe apoiá-los.

Minouche Shafik e o pacto social
A ideia de pacto social lembra, por vezes, embustes políticos. Mas não é um embuste o que propõe a dirigente da prestigiosa London School of Economics, Minouche Shafik. A economista é autora do livro “Cuidar Uns dos Outros” (Intrínseca, 336 páginas, tradução de Paula Diniz)
Numa entrevista ao “Valor Econômico”, de 3 de dezembro de 2021, Minouche Shafik afirma que, depois de eventos trágicos, como a depressão americana e a Segunda Guerra Mundial, a sociedade (os políticos na linha de frente) adotou estratégias para melhorar a vida das pessoas. “Não foi um momento de epifania, em que, de repente, tudo foi revolvido. Há progressos e regressões”, afirma.
A economista anglo-egípcia postula que nos Estados Unidos (Trump), no Brasil (Bolsonaro), na Europa e nas Filipinas políticos populistas chegaram ao poder “explorando o fato de as pessoas estarem frustradas e com raiva, por verem que o sistema não está funcionando para elas. As pessoas fizeram o diagnóstico correto, mas as respostas estão erradas: nacionalismo, xenofobia, protecionismo, sentimento anti-imigrante não vão solucionar os problemas”.
Minouche Shafik sublinha que “o Brasil tem um contrato social frágil e o resultado é um país muito desigual. Os dados de mobilidade social mostram que são necessárias nove gerações para o pobre chegar à classe média. Na Dinamarca, bastam duas gerações; nos Estados Unidos, cinco. A produtividade nos EUA cresceu muito ao incluir as mulheres, as minorias e os filhos das famílias pobres no mercado do trabalho. O Brasil perde muito em não permitir maior mobilidade social”.
O leitor certamente tem lido sobre as ideias de Lula da Silva, Bolsonaro, Sergio Moro, Ciro Gomes e João Doria. Qual deles discute, de maneira leve ou ampla, a questão esboçada acima? Ah, sim, falam em reduzir a pobreza. Mas qual é o projeto que apresentam? Até agora, nenhum. Há mais palavras, aparentemente, para o mercado — para conquistá-lo e tranquilizá-lo.
A pesquisadora aponta que o novo papel das mulheres e a revolução tecnológica romperam o “atual” contrato social. “A desigualdade entre mulheres e homens é uma das causas” da fratura social — “que leva também à desigualdade nos empregos e na segurança dos empregos. Em muitas sociedades, o Brasil entre elas, parte do contrato social é baseado nas famílias. Se você está doente, se alguém não pode trabalhar, a família absorve esses riscos. Frequentemente, são as mulheres que absorvem esses riscos. Cuidados com as crianças e os velhos tendem a ficar com as mulheres. Como as mulheres estão mais educadas e entraram no mercado de trabalho, ficou mais difícil para elas assumir essas responsabilidades. Isso me levou a pensar no papel das mulheres na economia e em como criar melhor infraestrutura de cuidado para mulheres poderem trabalhar. (…) Muitos culpam a globalização pelo fato de os empregos estarem mudando e algumas habilidades não serem mais valorizadas. Mas a verdadeira mudança é causada pela tecnologia”.
Um ponto da entrevista da especialista lembra as conversas ocorridas entre Helena e José com seus clientes a respeito do crescimento do PIB. “Muitos políticos pensam que, se o PIB crescer, eles serão reeleitos, acreditando naquela velha frase de que as pessoas votam com o bolso. Uma pesquisa feita na London School of Economics mostrou que as pessoas votam pensando no seu bem-estar, e o que faz as pessoas reelegerem alguém é a melhoria do seu bem-estar, sensação entendida com boa saúde mental e física, sentimento de comunidade e igualdade nas relações e na qualidade do trabalho. Se um político quiser ser reeleito, que invista no bem-estar das pessoas”, sugere Minouche Shafik.
Um novo pacto social inclui “prover proteção para as crianças, acesso gratuito às faculdades comunitárias, treinamento para pessoas desempregadas, valor mínimo garantido para todos cuidarem da saúde”. Minouche Shafik está falando, no caso, dos Estados Unidos do presidente Joe Biden — que está procurando combinar o investimento em infraestrutura e no social —, mas o que assinala é adequado para outros países, como o Brasil.
Para a economista, com a pandemia da Covid-19, “a paisagem política vai mudar, as pessoas terão outras expectativas, vão querer mais segurança, mais cuidados de saúde, mais sentido de comunidade. Essa é minha esperança”.
Jair Bolsonaro e Ronaldo Caiado

Recentemente, o Brasil pôde assistir duas cenas emblemáticas do que se pode entender como estadismo e não-estadismo. O país vem sofrendo enchentes e pessoas ficaram desabrigadas. Na Bahia, centenas de pessoas perderam tudo — inclusive seus registros pessoais (documentos, fotos). Algumas morreram, muitas ficaram doentes, várias se desestabilizaram emocionalmente com tantas perdas. O governador Rui Costa, numa avaliação preliminar, calcula que a recuperação da infraestrutura e a reordenação da vida social dos indivíduos devem custar cerca de 2 bilhões de reais. O presidente Jair Bolsonaro liberou 200 milhões para os Estados atingidos pelas enchentes — 80 milhões deles para a terra de Jorge Amado e Gal Costa. É pouco, mas não desprezível.

Porém, enquanto os baianos lutavam (e ainda lutam) para sobreviver — o presidente da Argentina, Alberto Fernández, chegou a oferecer ajuda (rejeitada pelo presidente patropi) —, Bolsonaro divertia-se andando de jet ski. Nada contra seu lazer, mas o gestor federal mostrou insensibilidade. Em Goiás, pelo contrário, o governador Ronaldo Caiado, sensibilizado com a dor do próximo, ficou um longo tempo nas regiões Nordeste e Norte de Goiás, também atingidas por chuvas fortes. O carro em que estava chegou a atolar. Ele mostrou sensibilidade humana. O investimento de seu governo no social é uma questão que precisa ser esmiuçada pela imprensa — não para fazer publicidade, e sim para reconhecer que, em Goiás, a crise social é menor porque o Estado, e com um liberal no poder, criou uma ampla rede de proteção social (mães recebem auxílio, o governo paga aluguel para os pobres, há um programa de reforma das casas). A existência de um Estado do bem-estar social, com as pessoas se sentindo mais amparadas, gestou, claro, uma outra situação — pessoas de outros Estados, não incluídas lá, buscam inclusão em Goiás.
Na semana passada, um jornalista, especialista em marketing político, disse, na redação do Jornal Opção: “A eleição de outubro deste ano será a da barriga cheia. Aqueles governantes que se preocuparem efetivamente com a sociedade em geral, notadamente com os pobres, certamente serão reeleitos”.