Na política, como na vida, o medo é ruim, porque é paralisante e, por isso, não permite que o indivíduo — ou o homem de Estado — aja e reaja antes circunstâncias adversas e, às vezes, perigosas. O presidente João Goulart poderia ter reagido ao golpe em 1964? No início, é provável que sim. Porém, seu receio — quiçá medo — de “derramamento de sangue” de brasileiros impediu que enfrentasse o golpismo na sua fase incipiente e pouco organizada.

Entretanto, se se deve contornar o medo, para se reagir à adversidade, a cautela é bem-vinda. O presidente Lula da Silva é um político moderado e está cercado por aliados, como os ministros Flávio Dino, José Múcio Monteiro e Rui Costa, que não são radicais. Isto é positivo.

Porém, como tem de ouvir os aliados, e alguns são radicais — e não raro inexperientes —, Lula da Silva às vezes joga para a plateia. O presidente está “errado” ao “pressionar” as Forças Armadas? A rigor, não. Porque é, mais do que o ministro da Defesa, o seu chefe supremo.

Flávio Dino e José Múcio Monteiro sabem lidar com as Forças Armadas | Foto: Reprodução

Se Lula da Silva está falando duro, duvidando de parte das Forças Armadas, o que realmente se tem a dizer da Aeronáutica, do Exército e da Marinha?

Por mais que militares, notadamente da reserva, tenham participado do ataque à democracia — ao apoiarem a invasão do Palácio da Justiça (Supremo Tribunal Federal), Palácio do Planalto (Presidência da República) e Congresso (Senado e Câmara dos deputados), símbolos dos três poderes da República —, as Forças Armadas se mostraram golpistas ou omissas?

Na verdade, não. Primeiro, não há evidência de que os comandos da Aeronáutica, do Exército e da Marinha — as Forças Armadas —, como instituições, tenham participado da aventura golpista e terrorista do dia 8 de janeiro. Não participaram. Não endossaram. Não autorizaram.

No dia 8 de janeiro, o alto oficialato das Forças Armadas não estava envolvido e, por isso, não houve um verdadeiro putsch. Se estivesse, o golpe teria sido mamão com açúcar, tão fácil quanto o de 1964, sem a ocorrência de nenhum tiro

Então, definamos o fato: as Forças Armadas se mantiveram legalistas, afastadas do golpismo articulado por bolsonaristas, alguns deles militares da reserva das Forças Armadas e, outros, membros da Polícia Militar. A existência de militares golpistas nada tem a ver com a posição constitucional das Forças Armadas, que, insistamos, têm dado o exemplo de que primam pela defesa da democracia.

Segundo, cadê a ordem do presidente da República e do ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, para os membros das Forças Armadas saírem às ruas, no dia 8 de janeiro, um domingo, e combaterem os golpistas? Por que Lula da Silva e José Múcio não acionaram os militares, que, por serem disciplinados, decerto cumpririam as ordens?

General Sergio Etchegoyen: militar sério mas comete erro sobre Lula | Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Nem Lula da Silva nem José Múcio apresentaram explicações, e tampouco foram cobrados pela Imprensa.

Há a possibilidade de que Lula Silva, mais do que José Múcio, tenha ficado com receio de convocar as Forças Armadas e elas ficarem ao lado dos golpistas? Na entrevista à repórter Natuza Nery, da GloboNews, o presidente chegou a sugerir que pensou que estava ocorrendo um golpe de Estado articulado por militares e, de longe, por Bolsonaro. De fato, estava, mas de outro matiz. Os militares das Forças Armadas não estavam envolvidos e, por isso, não houve um verdadeiro putsch. Se estivessem, o golpe teria sido mamão com açúcar, tão fácil quanto o de 1964, sem a ocorrência de nenhum tiro.

“Elas [as Forças Armadas] não são Poder Moderador como pensam que são. As Forças Armadas têm um papel na Constituição, que é a defesa do povo brasileiro e da nossa soberania contra possíveis inimigos externos. É isso que é o papel das Forças Armadas e está definido na nossa Constituição. E é isso que eu quero que elas façam, e bem-feito”, disse, com razão, Lula da Silva.

Jair e Eduardo Bolsonaro flertaram com o golpismo | Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

O general Sérgio Etchegoyen, da reserva do Exército, é uma referência positiva, por ser democrata. Lula da Silva disse que, depois do golpismo de 8 de janeiro, perdeu a confiança em parte dos integrantes das Forças Armadas. Se o oficial fosse presidente da República — e não tivesse sido informado do que iria acontecer e do que estava acontecendo pelos serviços de Inteligência, inclusive os das Forças Armadas —, é muito provável que diria o mesmo que enfatizou o petista-chefe.

Etchegoyen afirma que a crítica de Lula da Silva deve ser vista como “covardia”, porque os generais da ativa não podem responder ao chefe do Executivo. O general está equivocado: o presidente tem o direito de se manifestar, sobretudo porque tem razão. No caso, é a voz do Brasil democrático.

Lula da Silva poderia ter acrescentado que, apesar de desconfiar de alguns militares — os golpistas entraram sem dificuldade no Palácio do Planalto, o que sugere mesmo alguma facilitação —, as Forças Armadas, como instituição, merecem seu apreço, porque não são golpistas. Há indícios de que, durante o governo de Bolsonaro, grupos de bolsonaristas sondaram militares a respeito de um putsch para manter o presidente no poder. Sempre que supostamente consultados, os generais teriam dito “não”.

Frise-se que o deputado federal Eduardo Bolsonaro declarou que, para fechar o Supremo Tribunal Federal, bastavam um cabo e um soldado. A frase sugere que, para liquidar a democracia, não era preciso de muita força. Mas, nas entrelinhas, há uma, digamos, ausência. O bolsonarismo nunca contou com o oficialato para um golpe de Estado. É possível que alguns generais — talvez uns cinco, sobretudo aqueles que estavam mais próximos — tenham flertado com o golpismo. Mas a maioria, sobretudo como Forças Armadas, resistiu (e resiste) ao canto das sereias golpistas. A cultura democrática está, aparentemente, enraizada no alto comando.

Moderação de Lula é saudável para a democracia

Voltando à questão do medo. Não convém Lula da Silva acuar as Forças Armadas, porém não por receio de “golpe”, e sim por que não se deve pressionar quem está quieto e não é, em definitivo, golpista. A pressão, se excessiva, pode dar razão aos prováveis golpistas que rondam os quarteis, como vivandeiras civis e militares (da reserva). A moderação do presidente tem de ser vista e assimilada como verdadeira pelos militares que tem voz ativa.

Nas conversas na redação, repórteres dizem que a Argentina julgou e colocou na cadeia militares golpistas que, ao assumirem o poder, torturaram e mataram adversários e inimigos políticos. A ditadura do país das excelentes escritoras Alejandra Pizarnik, Silvina Ocampo e Samanta Schweblin foi a mais cruenta da América do Sul, ao lado da chilena de Augusto Pinochet.

Na Argentina, houve uma grande mobilização, em decorrência da comoção nacional, pela punição de membros da cúpula das Forças Armadas que se tornaram criminosos. No Brasil, como houve uma conciliação política, com a vitória de Tancredo Neves, do MDB, no Colégio Eleitoral, derrotando um candidato, Paulo Maluf, que tinha simpatia pela ditadura, não houve um ajuste de contas com o passado recente. Os principais torturadores da ditadura não foram incomodados por nenhum dos governos democráticos pós-1985 nem pela Justiça. O pacto gestado no governo de José Sarney (e antes do presidente), um político que vicejou na ditadura, impediu investigações rigorosas. Todos foram anistiados, inclusive aqueles que, alegando cumprir ordens, seviciaram e mataram pessoas indefesas, e não, na maioria das vezes, em combate.

Orlando Geisel e Emílio Médici: os chefões

Porém, a história, contada nos livros, tem sido rigorosa com os homens da ditadura. Pesquisadores, como Hugo Studart e Leonencio Nossa, mostraram que, na Guerrilha do Araguaia, as ordens para os massacres, inclusive de prisioneiros que não ofereciam qualquer risco para seus captores e para o governo, eram emitidas por militares que circulavam ou despachavam no Palácio do Planalto. Lá estavam, decidindo sobre vidas, o presidente Emilio Garrastazu Médici, o ministro do Exército, Orlando Geisel, e o general Milton Tavares, o Miltinho. A ordem deles era clara: não mandem “terroristas” para Brasília. Era para serem “deixados” no cenário da guerrilha. Devidamente mortos.

Jornalistas apreciam falar em “porões” da ditadura. A rigor, eram lugares públicos, com funcionários públicos — militares e policiais civis, irmanados na barbárie —, e não porões. A famosa Casa de Petrópolis, onde se torturavam e se matavam pessoas (guerrilheiros) — que deveriam ser julgadas e condenadas (ou absolvidas) pela Justiça —, não era um porão. O que define o lugar é a presença dos torturadores e assassinos — todos homens públicos, bancados pelo Estado.

A ditadura acabou no Brasil, há 38 anos. Ou seja, há pouco tempo. Por isso o fantasma assusta os brasileiros, sobretudo os democratas. Mas nenhum país pode viver com receio — um trauma histórico — da volta de uma ditadura. É preciso superar isto. A sociedade precisa se mostrar corajosa, até para que os golpistas tenham receio de enfrentá-la. A atitude rápida da Justiça e da polícia — sim, da polícia, às vezes tão criticada —, prendendo golpistas e seus financiadores, foi e é uma reação adequada. É a democracia mostrando que tem instrumentos para penalizar aqueles que operam pela instalação de uma ditadura.

Se os democratas precisam ter coragem, reagindo com vigor ante o golpismo, isto não significa que o presidente Lula da Silva deva permanecer no “ataque”, sobretudo contra militares. Na verdade, é uma sorte o país ter um político moderado como o petista-chefe no poder. Ele não quer confronto. Quer, isto sim, que prevaleça a democracia. Por isso vai articular, por si e via José Múcio, uma aliança democrática com as Forças Armadas, que, sublinhando, não têm apetite golpista.

Os homens-chaves da ditadura morreram e não foram punidos. Mas a História — o registro dos fatos — os condenou. A imagem da ditadura é ruim. Não há ditadura — de esquerda ou de direita — positiva. Só a democracia vale a pena e hoje quem defende a democracia é Lula da Silva e, entre outros, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal. Neste momento apoiar as ações do presidente e do membro do STF é um ato civilizatório.