Roosevelt e Churchill podem ensinar Ronaldo Caiado a ser mais otimista
03 março 2019 às 00h00
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A história do americano e do britânico pode ser instrutiva no sentido de que a recuperação de um país cobra que o governante seja um vendedor de esperança, não de pessimismo
Franklin Delano Roosevelt foi eleito presidente dos Estados Unidos quatro vezes consecutivas. Ao assumir o governo pela primeira vez, em 1933, Roosevelt recebeu uma nação arrasada pela depressão econômica. Ao perceber que não iria melhorar o país se ficasse falando mal do antecessor, até porque a crise era sistêmica — e não produto de meros erros do governo —, nomeou uma equipe eficiente para gerir a economia e o social. Aliás, com o New Deal, imbricou social e economia. Com técnicos qualificados, com visão política e humanitária, montou um amplo programa de investimento público — liberais ortodoxos chegaram a chamá-lo de comunista —, com grandes obras, com o objetivo de movimentar a economia, fortalecendo o mercado, e, paralelamente, aplicou recursos do Estado em programas sociais, com o objetivo de recuperar milhões de indivíduos, pois muitos passavam fome, e, por intermédio do trabalho, devolver-lhes a autoestima.
Incentivando o mercado, com as obras públicas, e fortalecendo o social, com programas de integração, Roosevelt contribuiu, de maneira decisiva, para a recuperação da economia americana. Pode-se dizer que o Estado arrancou o mercado da pasmaceira. Em crises profundas, a iniciativa privada recolhe-se, para não falir. Mas o Estado, que investe a fundo perdido — porque seu lucro é social e o lucro econômico é mais demorado (o aumento da arrecadação, por exemplo) —, pode ter perdas, que vão sendo ajustadas ao longo do tempo. O presidente entendeu que, com a livre iniciativa em suspenso, sem investir ou investindo menos, cabia ao Estado pôr a mão na massa e, de maneira criativa, retirar a economia da crise.
Os americanos elegeram Roosevelt quatro vezes seguidas, inclusive durante a Segunda Guerra Mundial, porque o presidente contribuiu para recuperar a economia, aumentando a oferta de empregos e melhorando o consumo coletivo, mas também porque ele exalava esperança. Não tinha nenhum apreço pelo discurso do caos.
Churchill ganhou a guerra e perdeu o governo
Mudemos para outro estadista, possivelmente o maior do século 20 e um dos maiores da história. Em 1939, antes do início da guerra, o governo apaziguador do primeiro-ministro Neville Chamberlain colocou a Inglaterra numa situação difícil. Apesar de todos os sinais, como a anexação da Áustria, dos problemas nos Sudetos, o armamentismo e o belicismo de Adolf Hitler, Chamberlain, como os franceses, permanecia inerte, como se esperasse um milagre. Como milagres não existem, exceto como fábulas, no início de setembro de 1939, os nazistas da Alemanha invadiram a Polônia — dando início à Segunda Guerra Mundial.
Com a desmoralização da política de apaziguamento, que havia se revelado uma ilusão, os políticos britânicos convidaram Winston Churchill para o cargo de primeiro-ministro. Churchill havia lido “Minha Luta”, livro de Hitler, e sabia que o ditador alemão, mesmo antes de se tornar o poderoso chefão da Alemanha de Heine e Goethe, almejava a “guerra de conquista”. Seu projeto não era pacifista — tratava-se de um conquistador, um Alexandre ou César da direita. O político e escritor havia alertado seus pares, mas, até 1939, não era ouvido — dados equívocos anteriores.
Churchill “recebeu” uma Inglaterra “deitada”, praticamente disposta a se entregar ao até então indomável Hitler. Com sua energia feroz e sua língua viperina — uma mistura de Shakespeare com Oscar Wilde, ou quem sabe Bernard Shaw —, Churchill percebeu que as palavras, como armas que movimentam consciências, podem muito. As palavras do primeiro-ministro geraram ações e ergueram a Inglaterra. Político hábil, que sabia pôr sua imaginação poderosa a serviço de um realismo absoluto — a retórica às vezes camufla isto —, Churchill trabalhou para atrair os Estados Unidos para a guerra. Roosevelt queria apoiá-lo, mas, nos Estados Unidos, o respeito institucional, a ideia amplamente aceita da força e independência dos poderes, impedia uma ajuda mais efetiva. O Congresso, ecoando a opinião pública, não queria o país na guerra dos “outros”. O ataque japonês a Pearl Harbor, em 1941, atraiu a nação de Hemingway e Faulkner para a batalha. O “erro” do Japão e o “erro” da Alemanha, ao declarar guerra aos ianques, produziram um inimigo poderoso para o nazismo. Entretanto, mesmo antes disso, os Estados Unidos já estavam ajudando as vítimas europeias de Hitler. O brilhante Harry Hopkins, um dos principais auxiliares de Roosevelt, era simpático à causa de Churchill.
Terminada a guerra, com Churchill tendo se tornado um herói internacional, os ingleses só faltavam pedir ao papa para canonizá-lo em vida. Porém, mesmo agradecidos, os britânicos derrotaram o bravo vencedor da batalha pela democracia e bancaram o trabalhista Clement Attlee. Por quê? Há várias explicações. Concentremos numa, quiçá idiossincrática. É provável que os britânicos viram no trabalhista um político da “construção” — uma espécie de Roosevelt —, enquanto Churchill, dado seu belicismo, talvez fosse visto como um político da “destruição”. Os trabalhistas acenavam com o Estado do Bem-Estar — o biógrafo Boris Johnson, por sinal, garante que Churchill é o verdadeiro criador dessa política — e com a melhoria da qualidade de vida de todos. Churchill voltou ao poder depois, mas a derrota o abalou.
Governar não é gerar atritos
Roosevelt, que governou os Estados Unidos sentado numa cadeira de rodas — teve poliomielite aos 39 anos —, e Churchill são lembrados como ilustração ao que está acontecendo em Goiás.
O governador Ronaldo Caiado é um político bem-intencionado e moderno. Em suma, o político do partido Democratas quer moralizar o setor público — inclusive reduzindo o custo das obras e da própria máquina do governo (o que será muito difícil, dado o “poder” dos lobbies corporativos) — e, ao mesmo tempo, viabilizar o crescimento da economia e produzir um desenvolvimento cada vez mais inclusivo.
Ao investigar se houve corrupção nos governos anteriores e ao repassar informações para o Ministério Público formular denúncias, Ronaldo Caiado não está errado. Porque está fazendo aquilo que seus eleitores pediram: a moralização do setor público. Ressalve-se que denúncias excessivas, com o objetivo mais de desgastar determinados políticos, são úteis para as manchetes dos jornais e as chamadas das emissoras de televisão, mas eventualmente podem cair na primeira instância judicial ou na segunda instância. Por isso, denúncias bem formuladas, apresentadas de maneira detalhada e realista, serão mais racionais. Denúncias que causam escândalo, mas não surtem efeito algum, exceto sensacionalismo, acabam, no médio prazo, desmoralizadas. Mas as investigações, com possíveis denúncias, são lícitas. É mesmo preciso apurar o que aconteceu nos governos anteriores, mas sem a preocupação em massacrar adversários políticos, que, a rigor, não deveriam ser tratados como inimigos. Chega-se ao ponto de um promotor de justiça sugerir que determinado jornal está apoiando um denunciado unicamente porque deu-lhe espaço para que apresentasse sua versão. Ora, o Brasil é um país democrático, e não um Estado policial.
Governar é muito mais do que denunciar — o que Roosevelt fez com rara competência. Governar é seguir adiante, é pensar no presente. Não é esquecer o passado, e sim entender que o passado não pode travar o presente. Governar, ao menos governar bem, é olhar para frente. O palanque, pelo menos em tese, foi desmontado no dia 7 de outubro de 2018, quando Ronaldo Caiado foi eleito no primeiro turno, derrubando a estrutura política e governamental de vinte anos gestada pela aliança tucano-pepista. Os eleitores queriam renovar e, de fato, renovaram.
As revoluções que não cessam não são construtivas. Porque a construção exige certa disciplina e rotina. Governar gerando conflitos, produzindo atritos, acaba por retirar o governante do bom caminho — sem contar que há a tendência de os governos, mesmo quando o gestor principal é decente, apresentarem problemas ao longo do tempo.
No momento, Ronaldo Caiado — que, insistamos, é bem-intencionado e quer implantar uma nova configuração de poder público, com a integridade acima das intrigas e das maldades gratuitas — denuncia que há um rombo de bilhões no governo de Goiás. Se o rombo é um fato, como tem insistido a secretária da Economia, Cristiane Schmidt — uma auxiliar séria e competente, apesar da escassa experiência com gestão pública estadual —, é mesmo preciso divulgá-lo e denunciá-lo. Nada se deve esconder.
Mas não se pode acomodar tão-somente com a denúncia do rombo. Mesmo em tempos recentes, governantes mantinham uma certa lua de mel com os indivíduos, independentemente de suas ideologias, por cerca de seis meses. Em seguida, começavam as críticas, ou, se o governo fosse bem, o reforço dos elogios. Hoje, com a emergência das redes sociais — com a desconcentração da informação —, a lua de mel pode acabar em um mês ou dois meses. Recentemente, na Câmara Municipal de Goiânia, a secretária de Comunicação do governo Caiado, Valéria Torres, falou em crise, en passant, e acabou vaiada. A plateia gritou: “Paguem os professores”. O vereador Anselmo Pereira, do PSDB, chegou a pedir tolerância. Nas redes sociais — e é provável que não haja uma conspiração política —, as críticas ao governo de Ronaldo Caiado são “pesadas” e, às vezes, até injustas. Porque o governador ainda não teve tempo para implementar suas políticas de crescimento e desenvolvimento. Apesar da pressa da sociedade, que não é necessariamente influenciada pela oposição, o gestor Ronaldo Caiado precisa de um pouco mais de tempo antes de ser avaliado com excessivo rigor. É notório que está tentando ajustar o governo. Colocar as contas em dia — o que vai além do pagamento do salário de dezembro ao funcionalismo — não será fácil. Mas ninguém pode dizer, em sã consciência, que Ronaldo Caiado não está tentando.
Saída para o governo está mais em Goiás
Há quem aposte que a saída do governo de Goiás está em Brasília, porque o governo federal concentra os principais recursos do país. De fato, o Brasil não é, na prática, uma República federativa, pois a União controla os recursos financeiros e transforma os Estados em pedintes. Porém, em parte devido ao ajuste promovido por Henrique Meirelles, quando era ministro da Fazenda do governo de Michel Temer, o governo federal reduziu seus gastos, o que dificulta o apoio aos Estados. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, pressiona o presidente Jair Bolsonaro para que auxilie os governadores — cujos Estados, independentemente de boas ou más gestões, estão praticamente quebrados. Para aprovar as reformas, como a da Previdência — e, mais tarde, a Tributária —, além do pacote anticrime, Bolsonaro pode ceder aqui e ali. Mas o chicago-boy Paulo Guedes, que planeja enxugar o Estado, não pensa o mesmo. Sua tese é diferente: aposta que o crescimento da economia, a partir de 3% ao ano, aumentará a arrecadação dos Estados, o que reduzirá suas crises. Há a crença de que o mercado por si, e com o enxugamento do custo do Estado, vai retirar o país da crise. Na verdade, apesar da beleza da ideia — a recuperação da economia levando à recuperação dos Estados —, não é exatamente assim que funciona. Os Estados precisam mesmo de ajuda, inclusive porque a crise deles pode contribuir para a redução do crescimento da economia.
Brasília tem de apoiar a recuperação dos Estados. O que não se pode exigir é que a recuperação seja atribuída unicamente a Brasília. Ronaldo Caiado, ao repactuar os incentivos fiscais, percebeu que, no lugar de apenas pressionar na capital federal, é preciso fazer alguma coisa em nível estadual. Cristiane Schmidt possivelmente está percebendo que o Fisco de Goiás é altamente qualificado — e, frise-se, não é marconista (as teorias conspiratórias não ajudam em nada) — e, se conseguir atrair suas melhores cabeças, pode contribuir para aumentar a arrecadação. É possível que a recuperação de Goiás — do governo, sublinhe-se — esteja mesmo em Goiás. Depende essencialmente da capacidade de dialogar do governo com a sociedade, notadamente empresários, políticos e Fisco. Ronaldo Caiado, político de rara decência, tem de ser o elemento a propor um novo pacto estadual. O governador, que pode ser um elemento de conflito, tem de agir como diplomata.
Goiás não é nenhuma Shangri-la. Há problemas, em geral gerados pelos governos anteriores. Mas a situação, mesmo difícil, não é pior do que em Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul — Estados muito mais ricos do que Goiás. Não há problema com 13º de todos os funcionários e apenas a folha de dezembro não foi paga. Tal folha é um problema, é certo. Mas não é incontornável. Quando for paga, a pressão sobre o governo será em parte aliviada. Mas a máquina pública, com seu apetite pantagruélico por mais dinheiro, jamais deixará de pressionar qualquer governo.
Como se disse antes, não se vive sem esperança e, ao mesmo tempo, sem realismo. O governo deve assumir que há uma crise. Mas, como sabem os publicitários, a cristalização da ideia de que Goiás, o setor público, está quebrado pode não ser positiva para o próprio governo. Por que instalar uma empresa num Estado em que só se fala em crise e no qual, “quebrado”, o governo é um problema? Ronaldo Caiado, político com larga experiência, sabe que, como governante, não pode fazer oposição ao seu governo. Por vezes, fica-se com a impressão que ainda é oposicionista, e não o gestor escolhido por milhares de eleitores. Agora, torcer pelo insucesso do governo de Ronaldo Caiado é o mesmo que torcer contra o sucesso de Goiás, dos goianos.
Num ponto não se pode discordar de Ronaldo Caiado: é preciso mesmo denunciar os malfeitos do passado. Mas, até por ser um político experimentado — de uma história amplamente positiva e sem mácula —, o governador sabe que pactos com denunciantes contumazes são “faustianos”. A vítima de hoje pode ser Marconi Perillo — que deve ser tratado como qualquer cidadão, sem proteções —, mas a de amanhã pode ser alguém de seu governo. Finalmente, vale a pena não se inebriar com as loas dos áulicos — que, sim, mudam de lado quando lhes convém.