O recado “de” Francis Fukuyama para Lula da Silva e Bolsonaro: é preciso investir no social
02 outubro 2022 às 00h00
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Há algum tempo, um editor da “Veja” baixou uma norma na redação: “Estado” deveria ser escrito com “e” minúsculo. O jornalista perdeu o comando, mas a palavra não voltou a ser grafada com “E” maiúsculo. Eram tempos de liberalismo ortodoxo na revista da Editora Abril. É provável que, se pudesse visitar a publicação criada pela família Civita, o economista liberal Milton Friedman recomendaria: “Menos, meninos, menos”.
A contrário do que imagina(va) o ex-diretor de redação da “Veja”, Estado merece ser grafado com “E” maiúsculo. Porque nem mesmo nações ditas liberais prescindem dele. Porque é o Estado, com seus recursos e iniciativas, que, nas crises da sociedade capitalista — portanto, liberal (ao menos no geral) —, formula estratégias de recuperação da economia. Por vezes, é tão-somente o Estado que “salva” os capitalistas deles próprios, de seus equívocos.
Ademais, os interesses dos capitalistas não são necessariamente os da sociedade. Portanto, o Estado é necessário para fazer a ponte entre os interesses da sociedade — coletivos — e os interesses dos capitalistas, individuais.
Com a debacle do socialismo, no fim da década de 1980 — a queda do Muro de Berlim, em 1989, e a extinção da União Soviética, em 1991 —, o filósofo americano Francis Fukuyama, hoje com 69 anos, publicou um livro-celebração: “O Fim da História e o Último Homem” (Rocco, 488 páginas, tradução de Aulyde S.Rodrigues). A sociedade liberal-capitalista havia derrotado, em caráter “definitivo”, o socialismo.
A história ensina — se ensina alguma coisa — que vitórias e derrotas políticas podem ser provisórias. Nada é definitivo. Neste momento, assiste-se a uma nova vaga de esquerda na América do Sul. Leia-se Brasil, Argentina, Colômbia, Chile e Venezuela — os países mais ricos da região. Na Europa prevalecem, em algumas nações, como Itália e Hungria, correntes da extrema-direita. A Hungria é, por certo capitalista, mas não é uma sociedade liberal-democrata. O Brasil é governado por um político da direita, Jair Bolsonaro (PL), mas Lula da Silva (PT), da esquerda, pode derrotá-lo este ano.
Então, a história é mais complexa dos que os julgamentos peremptórios — decorrentes da circunstância — fazem crer. A história corre por linhas tortas, diria o filósofo alemão Kant.
Doutor por Harvard e pesquisador de Stanford, duas das mais prestigiosas universidades globais, Francis Fukuyama é um filósofo sério. O scholar estadunidense concedeu entrevista ao jornal espanhol “El País”, que saiu no Brasil em “O Globo” (na edição de 7 de setembro). A tradução deixa a desejar, com trechos confusos, mas, ainda assim, é perfeitamente legível.
Fukuyama lançou, este ano, o livro “Liberalismo e Seus Descontentes”. Permanece inédito no Brasil, mas há uma edição da Editora Dom Quixote, de Portugal. O livro contém 200 páginas.
O filósofo define assim o liberalismo: “É uma doutrina que protege os direitos individuais e limita o poder do Estado. Pode ser da direita ou da esquerda — o que importa é o Estado de direito como fundamento” da “sociedade”.
Como na década de 1970, de acordo com Fukuyama, “havia excesso de regulação estatal”, alguns políticos, como Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e Margaret Thatcher, no Reino Unido, trabalharam para limitá-la. Economistas, como Milton Friedman, da Escola de Chicago (a do ministro da Economia, Paulo Guedes), decidiram apoiá-los e a formular novos rumos para a economia (o Chile, uma ditadura cruenta, se tornou liberal, em termos de economia). “O problema é que foram longe demais, tentaram minar todo tipo de regulação estatal, incluindo o sistema financeiro. O resultado foi uma globalização que aumentou a desigualdade e a instabilidade do sistema financeiro global. E provocou uma resposta populista tanto de direita quando de esquerda”.
No Brasil, depois da socialdemocracia do governo de Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, a esquerda chegou ao poder, com Lula da Silva e Dilma Rousseff, do PT. Não se trata, porém, de comunismo, e sim de uma socialdemocracia mais arrojada do que a tucana, próxima, ma non troppo, do socialismo.
A crise da esquerda “gestou”, por assim dizer, o populismo de direita do presidente Jair Bolsonaro — uma vez que o centro, o PSDB, deixara de ser uma alternativa eleitoral viável. E, agora, a crise da direta bolsonarista — e, mais uma vez, sem um centro forte e representativo — pode devolver o poder à esquerda petista.
O ministro Paulo Guedes é pouco afeito ao investimento em programas sociais — chegou a ser pressionado pelo presidente Bolsonaro e pelo Centrão de Ciro Nogueira e Arthur Lira para aceitá-lo. Porque, como liberal ortodoxo, acredita que é preciso dar a vara para a pessoa pescar. Não se deve dar o peixe. Ocorre que a desigualdade é alta no Brasil e não há empregos para todos e, mesmo, falta qualificação a grande parte dos pobres do país. O resultado é que o Estado até pode ensiná-los a pescar, a médio ou longo prazo, mas, no curto prazo, os pobres, na linha da miserabilidade, precisam de programas assistenciais como o Bolsa Família e o Auxílio-Brasil. As pessoas precisam comer. Isto: comer. Viver. Aos homens de Estado não cabem ser omissos nem fazer discurso ideológico e moralista.
Fukuyama sublinha que “deve haver sempre um equilíbrio entre crescimento econômico estável e proteção social para os cidadãos. Se você tem um Estado que busca redistribuir renda de forma geral, inevitavelmente reduzirá o incentivo das empresas que assumem mais risco. É por isso que algumas economias ficam presas ao não permitir esse tipo de economia livre”. O Jornal Opção não teve acesso ao texto original da entrevista, em espanhol, e é possível que a tradução de “O Globo” não seja precisa. Mesmo assim, é possível fazer uma ressalva mínima. Não se está a dizer que o Estado, em busca de uma igualdade social imediata, deixe de incentivar a economia — que gera empregos. Mas o Estado deve mesmo assistir aos pobres e, ao mesmo tempo, deve criar fórmulas de ascensão social — como as cotas raciais e outras etc. O BNDES investiu bilhões de reais em empresas — e não apenas nos governos Lula da Silva-Dilma Rousseff, com seus “campeões nacionais” (ideia que, a rigor, não é do PT — países capitalistas, como os Estados Unidos, já fizeram isto, em tempos idos) — e os resultados nem sempre foram positivos para o governo, para a iniciativa privada e para a sociedade. Às vezes se tornou um ônus, como o caso do empresário-ilusionista Eike Batista.
O custo do social parece investimento a fundo perdido. Mas não é. A busca de uma sociedade mais igualitária — como nos países da Escandinávia, como Suécia, Dinamarca e Noruega — é importante para a harmonia de todo o corpo social. Toda a sociedade ganha com mais justiça social.
“El País” diz para Fukuyama: “Agora a desigualdade está começando a ser problemática” (como se fosse apenas agora). O filósofo explica, de maneira meio enviesada: “Não pode ser generalizado. A América Latina experimentou o mais alto grau de desigualdade no mundo. Muitas das políticas que vemos na Argentina ou na Venezuela são o resultado dessa desigualdade, que leva a resultados econômicos desastrosos e políticas muito ruins, uma grande polarização entre a esquerda populista e a direita ultraconservadora [Fukuyama não diz, mas poderia ter acrescentado: e populista]. Em outras partes do mundo outras coisas acontecem. Na Europa, na Escandinávia, existe há muito tempo a social-democracia, que se encarregou de redistribuir a riqueza, o que impediu a polarização”. Mais uma vez, é preciso registrar: na Escandinávia, o papel do Estado foi decisivo para o convencimento da sociedade a se tornar mais “igual”.
Um liberal-conservador, como Fukuyama, pode ser socialdemocrata? “Nunca me opus à social-democracia. Depende muito do momento histórico. Na década de 1960, as sociedades socialdemocratas sofriam com inflação alta e crescimento muito lento, e naquele momento acho que era importante conter um pouco disso. No período em que vivemos agora, precisamos de mais democracia social. Principalmente nos Estados Unidos, onde nem temos saúde universal, sendo um país democrático e rico”. Ao contrário do país do presidente Joe Biden, o Brasil tem o Sistema Único de Saúde (SUS), que, apesar de defeitos pontuais, é de imenso valor para os pobres e para parte das classes médias que não tem planos de saúde. As políticas compensatórias do país de Ciro Gomes, Jair Bolsonaro, Lula da Silva e Simone Tebet são cruciais para reduzir a pobreza. Mesmo assim, há milhares de pessoas passando fome tanto nas ruas quanto em seus casebres. O Estado, num país de desigualdades sociais seculares — e com preconceitos sistêmicos contra negros —, precisa mesmo pensar não apenas em crescimento econômico, mas também em desenvolvimento. Crescimento do PIB nem sempre é acompanhado de distribuição globalizante dos benefícios do avanço econômico. O recado de Fukuyama para os políticos, como Lula da Silva e Bolsonaro, é: o social precisa de cuidados especiais.
Ao final da entrevista, que o Jornal Opção intercalou com discussões sobre o Brasil — que não é mencionado pelo filósofo —, Fukuyama se defende: “Eu nunca disse que a democracia liberal triunfaria em todos os lugares, nem que era o sistema que acabaria com todos os nossos problemas”. Por sinal, outros filósofos, como Isaiah Berlin e Roger Scruton, de linhagens diferentes, duvidavam da ideia de que é possível construir uma sociedade perfeita, sem problemas. Frise-se que o entusiasmo de Fukuyama com a queda do comunismo, que derivara da vitalidade do capitalismo-liberal, talvez tenha contaminado a acurácia de sua análise. Há países capitalistas, como a Hungria e a Rússia, que não são liberais nem são democráticos. O mundo e a vida, portanto, são mais complexos e dinâmicos do que a análise de Fukuyama em 1989 — há 33 anos. Aquilo que parece fixo, a vitória de um sistema sobre o outro — o capitalismo sobre o socialismo —, pode ser provisório. O que ruiu de fato foi um sistema de comunismo ao estilo do soviético. Mas o socialismo segue. A China, por exemplo, permanece comunista, com sucesso econômico, e sem democracia.