O presidente está conseguindo um feito: está acabando com a direita e ressuscitando a esquerda. De alguma maneira, Bolsonaro é o “pãe” de Lula da Silva 

No domingo, 19, na porta da panificadora Della, na Praça da Nova Suíça, em Goiânia, uma mulher negra e sem dentes aborda um repórter do Jornal Opção e sua mulher. Oferece brincos e pulseiras “hippies”. Ante a recusa inicial, pede dinheiro. Conta que não pode comprar botijão de gás e está cozinhando num fogareiro. Ela tem quatro filhos menores. Seu marido desapareceu faz meses. Sequer foi localizado para ser informado sobre a morte do filho mais velho, de 16 anos.

Segunda classe, de Tarsila do Amaral | Foto: Reprodução

A sra., que mora em Aragoiânia, integra o Brasil real. Aquele país, o dos pobres, ao qual o presidente Jair Bolsonaro não fala e não oferece esperança. Certo, o Auxílio Brasil, de 400 reais — a ser elevado para 600 reais —, é um alento. Porém, quando a pessoa vai ao supermercado ou à “venda”, descobre que o dinheiro está cada vez mais curto. Porque o governo perdeu o controle da inflação.

Paulo José é motorista da Uber. É paraense de Castanhal — “um lugar aprazível, com praias lindas e ideal para criar filhos longe da loucura da cidade grande”. Mudou-se para Goiânia há poucos meses. Depois de dar uma aula sobre a alimentação paraense — tacacá, peixe salmourado com açaí (“sem açúcar, é claro”) e maniçoba. Ante o espanto do repórter, esclarece: “Maniçoba é uma feijoada que inclui folhas de mandioca. É uma delícia — só que demora pra fazer”, disse passando a língua pelos lábios. O chofer, evangélico, reclamou do custo de vida, sobretudo do preço da gasolina. “Votei no Bolsonaro (PL) na eleição anterior, mas agora não sei se vou repetir o voto.” Por que a indecisão? “Pensei que minha vida iria melhorar, mas piorou.” O pré-candidato do PT, Lula da Silva, não o entusiasma. Ao término da viagem, passa ao repórter um texto manuscrito com dizeres religiosos. São palavras de conforto, digamos assim.

A mulher do fogareiro, que tem de cuidar de quatro filhos, e o motorista da Uber (que a crise empurrou do Pará para Goiânia, “cidade admirada no Pará”), que cuida da mãe doente, são pessoas do Brasil real, aquele que, nas ruas, está optando, nas pesquisas de intenção de voto, por Lula da Silva, e não por Bolsonaro.

Certos governantes sugerem que estabelecer contato com o povão é criar programas sociais de caráter assistencial. E, de fato, são essenciais. Porque se trata do básico: as pessoas precisam comer, sobreviver. Mas não há um discurso de esperança para os pobres, uma ideia de inclusão social. O liberalismo do ministro Paulo Guedes, que Bolsonaro “compra” pela metade, não se entusiasma em criar expectativas para aqueles que recebem uma “mesada” por mês. É como se o governo já estivesse fazendo o suficiente, ou seja, mantendo a desigualdade abissal da sociedade brasileira.

Jair Bolsonaro prega para os convertidos e não atrai “voto novo” | Foto: Reprodução

Bolsonaro poderia ter ampliado o Fundeb, que, na prática, é um grande programa social. Mas não se preocupou com isto. O PSDB, com o Fundef, e o PT, com o Fundeb, se preocuparam mais com educação do que o governo bolsonarista-guedista (uma mistura confusa de nacionalismo e liberalismo). Porque tucanos e petistas partem do pressuposto — correto — de que a educação é uma porta aberta para a inclusão social.

Centrão e o golpismo dos Bolsonaros

Se tem facilidade para se comunicar com o povão, dada sua linguagem direta e rústica, às vezes tosca e agressiva, por que Bolsonaro está perdendo contato com as pessoas — o que as pesquisas de intenção de voto têm mostrado com fartura de dados? Primeiro, a miséria cresceu. Segundo, a classe média também está empobrecendo. Em 2018, aderindo à onda moralista contra a corrupção, as classes médias compraram o discurso de Bolsonaro de que, no poder, tudo seria diferente. Como leem jornais e veem telejornais, seus integrantes estão, por certo, decepcionados com o governo do presidente cujo estilo é parecido com o do general João Figueiredo, o do “prendo e arrebento”. Na semana passada, o ex-ministro da Educação Milton Ribeiro foi preso pela Polícia Federal, autorizada pela Justiça, sob acusação de corrupção.

A história do orçamento secreto, que irrigou financeiramente o esquema do Tratoraço, é um escândalo que ainda dará o que falar. Porque, tudo indica, é um misto de mensalão/Petrolão do governo Bolsonaro. Políticos receberam “verbas” não-orçamentárias para comprar máquinas para prefeituras e em troca deram “tranquilidade” para o governo na Câmara dos Deputados e no Senado.

O orçamento secreto é resultado de uma operação do Centrão — que, mais hábil do que Milton Ribeiro, está escapando ileso do Ministério Público Federal (do Engavetamento Geral?) e da Justiça — para fortalecer suas bases eleitorais nos Estados. O próximo governo, se quiser, poderá detonar a imagem de Bolsonaro tão-somente contando como foi a montagem do Tratoraço.

Lula da Silva e Geraldo Alckmin: agregando parte do voto conservador | Foto: Reprodução

Porém, apesar do Tratoraço e de outras jogadas, o Centrão é responsável por um feito positivo: reduziu a articulação golpista do bolsonarismo. Seus membros são avessos a golpe de Estado. Tanto que, ao assumir como primeira força do governo, as forças golpistas — capitaneados pelo próprio Bolsonaro e por dois filhos, Carlos Bolsonaro (o Olavo de Carvalho da plebe e das redes sociais) e Eduardo Bolsonaro — perderam a proeminência. Não saíram do palco, é claro, mas ficaram mais “caladas”… no canto direito.

Entretanto, se reduziu o golpismo — a presença massiva de militares no governo resulta de uma mente golpista, a de Bolsonaro — e remodelou o governo, tornando-o mais realista, o Centrão não conseguiu “moldar” o discurso do presidente. O chefe do Executivo continua fazendo pregações insensatas e ameaçando as instituições, como o Poder Judiciário (o Supremo Tribunal Federal). A fala contra as urnas eletrônicas — só os bailundos de sempre acreditam nas suas perorações — revela “birra” de menino mimado. Como sabem crianças de 6 anos, o voto impresso, ao contrário do eletrônico, é muito mais perigoso para a lisura de um pleito.

Realista ao extremo, o Centrão não embarca na canoa furada de que é possível fraudar as urnas eletrônicas. Tal discurso, encampado por Bolsonaro, advém da turma ligada ao “gabinete do ódio” — supostamente gerido pelo ministro informal das Comunicações, Carlos Bolsonaro.

Jair Bolsonaro: o país em crise e o presidente participando de motociata | Foto: Jefferson Nascimento / TV Jornal Interior

Cientistas políticos e economistas postulam, com razão, que a queda da popularidade de Bolsonaro, com a consequente elevação da popularidade de Lula da Silva, tem a ver com a crise econômica. Porque não há motivo para festejar quem está no poder e não está conseguindo resolver os problemas mais ingentes da população — como a questão da inflação (elevar juros não é a solução mágica para resolver o problema) e o preço da gasolina e do gás (enfim, de tudo). Os eleitores estão dando um recado: por que continuar com um governo que não funciona, que funciona mal? Lula da Silva, pelo contrário, está prometendo resolver a crise e se comportar, no poder, de maneira moderada, agregando o país em torno de um projeto de recuperação econômica e de melhoria social para todos.

Mas a rejeição de Bolsonaro não tem a ver apenas com a crise econômica e social. Mesmo aqueles que não são muito afetados pela crise da economia não estão entusiasmados com o presidente.

Bolsonaro está na contramão da história por exemplo na questão ambiental. O que ele diz é contrário àquilo que defende todo o mundo civilizado. Seu discurso e sua ação sobre o tema são mal-informados e revelam uma mentalidade predatória. Ele está a serviço não do moderno capitalismo, que, sincronizado com o que se diz e se pratica no mundo, pensa bem diferente. O presidente opera para beneficiar setores da sociedade que têm comportamentos pré-capitalistas, absolutamente destrutivos. Os garimpeiros predadores e os desmatadores da Amazônia e de outras regiões certamente se sentem representados pela fala do presidente. Noutras palavras, Bolsonaro se tornou representante do que há de mais retardatário da economia patropi. É a autêntica vanguarda do atraso, o primeiro a chegar a atrasado.

Vários ricos — empresários e banqueiros — também estão se afastando de Bolsonaro. Porque perceberam que está levando o país para o naufrágio e não querem afundar juntos. Não se trata de uma questão ideológica, e sim de pragmatismo.

O erro de pregar para convertidos

Ao contrário de Lula da Silva, que está formatando uma ampla aliança política, Bolsonaro persiste pregando para “convertidos” (que pode ser o caminho mais fácil para a derrota eleitoral). Ou seja, não atrai “voto novo”. Porém, na tentativa de manter o “voto velho”, está perdendo até parte deste.

Ao manter o discurso ideologizado, contra a esquerda e adotando uma espécie de fundamentalismo religioso, Bolsonaro não trabalha para conquistar o apoio daqueles que estão preocupados unicamente com suas vidas, com melhorar suas condições de existência. Sua pregação da luta do “bem”, ele, contra o “mal”, Lula da Silva, não tem funcionado. Carlos Bolsonaro está “operando” sua campanha — que não deveria ser chamada de pré-campanha —, contrariando a turma do Centrão, que cobra um marketing político-eleitoral mais profissionalizado e atento ao Brasil real (o descrito no início deste Editorial), como se fosse idêntica ou parecida com a de 2018. Mas o quadro de hoje é inteiramente diferente. Primeiro, Bolsonaro não é mais novidade. Segundo, seu governo é mais do mesmo.

O Centrão está certo: Bolsonaro tem de falar para todos, sobretudo porque é o presidente da República, quer dizer, o representante de todos os brasileiros. Mas seus passeios em motociatas (comiciatas, na prática) e jet skys mostram um presidente que não parece preocupado com a vida difícil da maioria dos brasileiros. Sua alegria de adolescente contrasta, de maneira flagrante, com a tristeza dos casebres dos pobres.

O caubói de Marlboro, o valentão das ruas, sugeria que iria acabar com a esquerda, mas está conseguindo um feito que a esquerda não conseguiu: está acabando com a direita (que vai demorar a voltar ao poder) e ressuscitando a esquerda. De alguma maneira, Bolsonaro é o “pãe” de Lula da Silva.