“O Lula não conversa com o Centrão. O Lula conversa individualmente. Eu posso conversar com PP, União Brasil, com partidos que são da base. Eu não me reúno com o Centrão. O Centrão não existe. O Centrão é um ajuntamento de uns partidos em determinadas situações.” — Lula da Silva, presidente da República

O que se contará a seguir é uma fábula — escrita pelo sociólogo e filósofo franco-brasileiro Pangloss Arouet von Faoro, primo de Voltaire, o indefectível, autor de “Cândido, ou o Otimismo” (Companhia das Letras, 184 páginas, tradução de Mário Laranjeira) —, seguida de um cenário realista, no limite, do Brasil de lulas, jaires, ciros, simones, raduans, gracilianos, clarices, adélias, cecílias, lygias, yêdas, sônias-elizabeths, gabriéisnascentes, bernardos, carmos, edivaislourenços, carloswilliams e ademirluizes etc.

O relato de Pangloss Arouet von Faoro é ficcional, alerta-se. Porém, como sabia São Jerônimo, realidade e ficção são irmãs gêmeas, às vezes abéis e abéis, outras caims e abéis ou caims e caims. Em dia de joyce, o james, não tem problema escrever as iniciais de nomes próprios com minúsculas.

Pangloss Arouet von Faoro: a realidade afasta os nefelibatas | Foto: Reprodução

Pois bem: vamos ao relato da fábula, escrita em primeira pessoa, numa prosa que se aproxima — oh! pretensão! — de Gibbon. Que falta nos faz um Edward, historiador dos tempos de antanho, nos tempos hodiernos. Levantem as cortinas e abram aspas. Comecemos o espetáculo.

“Depois de consultar Ievgueni Zamiatin [nota da redação: autor do notável romance distópico “Nós”, publicado no Brasil com ótimas traduções diretas do russo por Irineu Franco Perpétuo e Francisco de Araújo] e George Orwell, que são conselheiros de São Pedro e São Paulo, estes, por sinal, conselheiros-mor de Deus, decidimos fazer uma visitinha ao Céu.

“O Céu, em comparação com o Purgatório e o Inferno, como sabia Dante Alighieri (não confundir, please, com aligátor), é uma maravilha. Tudo funciona por música, como se Beethoven andasse por lá como regente e João Gilberto como pós-regente. Na porta, pisando no tapete azul-celeste, encontro-me com Luiz Gonzaga, o Beethoven do Sertão, e pergunto sobre Januário, o sanfoneiro cabra da peste. Menino, ele está bem, participando da orquestra Tabajara, de Severino Araújo. Tem notícias de Alceu Valença? Digo que o cantor e compositor pernambucano, viciado em caminhadas (10 mil passos todos os dias, até dentro de casa), continua encantando o mundo. É quase rei de Portugal. Vixe Maria!, responde Lula, o de Exu, não o de Caetés-Garanhuns.

Ievguêni Zamiátin e George Orwell: guias seguros? Talvez | Fotos: Reproduções

“Retomando o fio da meada, já que não há Ariadne para nos guiar. Peço a Zamiatin e Orwell, que pedem autorização a São Pedro e São Paulo, para frequentar o amplo salão dos políticos. Entro e sou cumprimentado por todos. De um lado, Juscelino Kubitschek, José Maria Alkmim, Milton Campos, João Goulart, Leonel Brizola, Golbery do Cousto e Silva, Castello Branco, Bilac Pinto e Carlos Lacerda conversam alegremente — formando uma frente amplíssima. Todos têm cara de anjos.

Zamiatin e Orwell me observam, percebendo que não estou bem ambientado com aquela discussão passadista sobre PSD versus UDN e ditadura civil-militar. Perguntem se quero frequentar um salão de anjos mais recentes. Quero, quase grito, mas, lembrando que tenho von no nome, enobreço-me e digo, baixinho — até para não acordar Jânio da Silva Quadros, que segura uma garrafa de Johnnie Walker na mão esquerda, e Ulysses Guimarães, que dormem o sonho dos justos —, mas é claro que quero. Sim, sim, sim — diria James, o Joyce, o de Anna Lívia Plurabelle.

“Mudamos de salão, guiados por Zamiatin e Orwell, e sob a tutela de São Paulo (São Pedro estava se preparando para fazer chover em Goiânia, em Brasília e Rio Verde. Neste município, atende um pedido do Agro, que é devoto das cristandades e do reacionarismo político à direita). Passamos pela sala dos engenheiros, arquitetos e agrônomos. As cadeiras são brancas, as paredes são verdes, o teto é preto e o piso de jacarandá — uma combinação harmoniosa, me disse Oscar Niemeyer, que, cercado por Corbesier, Joaquim Cardozo, Frank Lloyd Wright, Lucio Costa, Bernardo Sayão e Attilio Corrêa Lima, não deixa ninguém falar. Corro da sala do palavrório.

São Paulo: um dos cérebros formatadores da Igreja Católica | Imagem: Reprodução

“São Paulo me pega pelo braço e me empurra, delicadamente, para um salão agitado. Entro e fico impressionado. De cara, sou cumprimentado por José Sarney — o Sir Ney, que estava se despedindo de Millôr Fernandes (no Céu, avisam Juca Ludovico e Galeno Paranhos, todo mundo é amigo) — e Fernando Henrique Cardoso.

Aturdido, pergunto a Zamiatin e Orwell: o que Sarney e FHC estão fazendo aqui se ainda estão vivos? São Paulo fala, segurando Zamiatin pelo braço: eles estão conhecendo o lugar e visitando os amigos, porque, na Terra, não têm mais a ver com a turma que discute política nas redes sociais. Ah, bom — digo. O míope Guimarães Rosa, que tinha um recado de Graciliano Ramos para Sarney — os dois são do Nordeste —, diz, rindo, com os olhinhos apertados: que cousa, seu Arouet. Mas qual era o recado mesmo? Sem bem-vindo, pois o bom filho, nos disse Mario Quintana, sem acento no “a” de Mario, entorna.

“Entro de vez no salão dos vivos que visitam o Céu, como se estivessem em quarentena, e dialogam entre si, mas também com os mortos, que, na zona celestial, são vivos. Estão lá, e sem cara fechada, Lula da Silva, Jair Bolsonaro, Ciro Nogueira, Arthur Lira, André Fufuca, Celso Sabino, Luciano Bivar, Alexandre Padilha, Rui Costa, Camilo Santana, Fernando Haddad, Carlos Siqueira, Ciro Gomes. Estão conversando, às vezes se abraçam e riem muito. De que, francamente, não sei — talvez deles mesmos (rir do outro é rir de si próprio). Mas Bolsonaro com Lula da Silva, Ciro Nogueira e Ciro Gomes?! São Paulo diz: no Céu é assim mesmo, o clima é de congraçamento. Não há brigas. Quando no visitam, Lulinha e Bolsonarinho paz e amor pegam a mesma aeronave da Nasa. Comem churrasco e bebem da pinga Velho Bugre, feita e comercializada pelo jornalista Hugo Studart, em Pirenópolis, a capital de Brasília.

Congresso Nacional: lugar de homens pragmáticos | Foto: reprodução

“Não acredito quando vejo Lula da Silva e Bolsonaro abraçados. De repente, Arthur Lira interrompe o convescote entre o presidente e o ex-presidente e diz: Prez, a Reforma Tributária, o Arcabouço Fiscal e a Bolsa Família de 2 mil reais para cada brasileiro pobre estão aprovados. Lula da Silva agradece, abre um sorrisão, pega na mão fina do político de Alagoas e tasca um beijo na face esquerda, bem escanhoada, do novo amigo. Quer uma dose da Velho Bugre? O rei Arthur desconversa: é melhor um Royal Salute. O Prez concorda.

Ao longe, vejo Julius Robert Oppenheimer, que chora e lamenta, sussurrando: “É a bomba, é a bomba, é a bomba”. Joseph Conrad o observa e complementa: “É o horror, é o horror, é o horror”. Gertrude Stein, que conversa com Carlos Lacerda, acrescenta: “Uma rosa é uma rosa é uma rosa”.

“O detalhe é que, talvez pela mediação do Céu, Arthur Lira, ao aprovar os projetos caros a Lula da Silva, não pediu nada em troca — nem dinheiro, nem cargos, nem mais poder, nem para manter a Polícia Federal afastada de seus amigos pouco católicos e de seus negócios privados.”

Dica para entender o Brasil do passado e do presente | Foto: Jornal Opção

“Quando eu estava saindo do salão, São Thomas Morus me abordou e disse: meu filho, a realidade que tu viu aqui é imaginada. Entendeu? Eu disse que sim. Lá fora, no mundo real, o negócio é bem hard. Realpolitik. Entendeu? Digo que sim.

O santo padroeiro dos políticos ainda inquiriu: falou com seu tataravô Voltaire e com seu tio Raymundo Faoro? Digo que não, porque os dois, concentrados num debate sobre a guerra da Rússia contra a Ucrânia, não quiseram falar dos tristes trópicos. Faoro mandou um abraço e um recado para Mino Carta: “O amigo podia me citar menos. Porque não sei mais onde eu começo e onde tu começa e termina. Na sua mão, eu viro um vasto Carta, mas deixo de ser Raimundo”. Acrescento que falei com Claude Lévi-Strauss, do qual recebi um conselho: seja mais tolerante com os políticos, porque são gente como a gente. Seus defeitos aparecem de maneira acentuada porque são mais expostos.

Felizmente, para os brasileiros, Lula da Silva não é o Rei Lear da história de Shakespeare | Foto: Reprodução

“Pego a nave da Nasa, que teria sido construída pela Embraer, e chego à Terra. Na porta do aeroporto Santa Genoveva, pego o celular e tento ligar para um motorista da Uber. Um trombadão passa e toma meu smartphone. Ponho a mão na carteira, e nada encontro. Um trombadinha mão-leve a levou e ainda pude vê-lo correndo. Ah, que saudade de voltar para o Céu, e sentar-me ao lado de Lula da Silva e Bolsonaro e prosear com eles.

“Chego ao escritório, e peço o notebook de minha secretária, Vilma Catarina da Rússia Barbosa (amiga de Voltaire), emprestado. Abro na Folha de S. Paulo e leio uma reportagem — razoavelmente objetiva — condenando Lula da Silva por se encontrar com Arthur Lira, o novo rei do Centrão. Ciro Nogueira, o senador bolsonarista, foi rebaixado a príncipe sem-sorte.

“Estaria a Folha de S. Paulo, sem Otavinho Frias — parceiro celestial de Claudio Abramo e Clóvis Rossi em discussões intermináveis sobre Trótski e Stálin —, se tornando mais irrealista do que o rei, quiçá o Lear? É possível.

Sísifo, de Tiziano: a sina de todos | Foto: Reprodução

“Numa democracia, sabe-se tanto no Céu quanto na Terra, governa-se com o que se tem. Lula da Silva não é um ditador, portanto precisa articular com os membros reais do Congresso, ou seja, da Câmara dos Deputados e do Senado. Não há como trocar os atuais representantes legislativos e parte significativa deles não morre de amores pelo governo do petista-chefe. Então, seguindo a lógica dos inocentes úteis — muitos deles encastelados em posição de mando nos jornais —, o presidente da República tem de bater na mesa e romper com o liristas do Centrão?

“A resposta é não, não, não. Lula da Silva, negociando problemas reais — insista-se: problemas reais —, tem de negociar com deputados e senadores reais. Criar uma forte zona de conflito na Câmara, sobretudo com Arthur Lira, terminaria com o governo aprovando pouco projetos. Seria engessado. Então, pela lógica da vida — que fica acima de purismos e ideologias —, o petista-chefe está certo, certíssimo, quando negocia com o Centrão. E ele está sendo hábil, pois, mesmo sabendo que terá de ceder cargos importantes — núcleos de poder e finanças —, está cedendo a conta-gotas. O negócio, daqui pra frente, é vigiar a turma do Centrão com o Ministério Público Federal, com a Polícia Federal, com a Advocacia Geral da União e o Tribunal de Contas da União. Proibir o tráfico de influência é praticamente impossível, mas, com algum esforço, é possível conter o furto — o grande furto — ao Erário.

“Realista ao extremo, Lula da Silva vai abrir mais espaço no governo, e por dois motivos. Primeiro, e principal, o presidente sabe que precisa viabilizar seu governo — portanto, o país — e só o conseguirá se firmar uma aliança firme e confiável com o Centrão, no Congresso. Segundo, nas próximas eleições presidenciais, o centro político, do qual o Centrão faz parte, poderá ser o elemento que esvaziará o bolsonarismo. Por isso, por entender a mecânica dos fatos, por viver intensamente na Terra, Lula da Silva, para além dos pruridos morais da esquerda e da imprensa quase-udenista, precisa negociar com os homens do Centrão, que, a rigor, não são tão diferentes de grande parte dos brasileiros e dos homens universais. São menos monstruosos do que parecem. São realistas. Como Lula da Silva.

“Afinal, há mais coisas entre o Céu e a Terra do que creem a nossa vã filosofia, Natalia Pasternak e Carlos Orsi, disse o bardo, devidamente tropicalizado. A realidade é mais onírica do que se imagina.”