Petista Lula da Silva não tem como ignorar e contornar o Centrão, que foi eleito pelo povão

18 dezembro 2022 às 00h00

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Pode-se dizer que o presidente Jair Bolsonaro tentou um golpe de Estado? A rigor, não. Porém, é possível sugerir que, de alguma forma, tem vocação para ditador. Tanto que buscou controlar, e por certo controlou, órgãos de Estado, não como presidente, e sim como pessoa física. Não há a menor dúvida de que a Polícia Federal e a Procuradoria-Geral da República se tornaram apêndices, não do governo federal em si, e sim do indivíduo Bolsonaro. Se no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso havia um “engavetador-geral” na Procuradoria-Geral da República, Geraldo Brindeiro, na gestão atual, a do “capitão”, há um “protetor-geral”, Augusto Aras, no mesmo cargo. Por isso há quem diga que Aras é o melhor ministro da “Defesa”, não do governo, e sim de Bolsonaro. Claro que há um certo exagero, porque, em determinados aspectos — como a gestação de um Ministério Público Federal menos afeito às luzes da mídia —, Aras agiu corretamente. E o direito à ampla defesa, sem condenações rápidas, que podem cair amanhã, é próprio das leis da democracia.
Há outra questão a respeito de Bolsonaro, que é grave: no seu afã de “submeter” órgãos e poderes, o presidente parece ter acreditado, não se sabe se orientado por um grupo de militares e de advogados, que poderia manietar o Supremo Tribunal Federal. Tanto o presidente quanto um de seus filhos, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, tentaram acuar o STF de várias maneiras, inclusive usando, de modo abusivo, as redes sociais.

Felizmente, sob a batuta de ministros competentes e corajosos — como Alexandre de Moraes (que, a partir de agora, precisa se conter um pouco mais, porque senão, na defesa do justo, a proteção da liberdade de expressão, pode acabar sufocando-a), Luís Roberto Barroso, Cármen Lúcia (uma magistrada doce e forte, atacada de modo vil por adversários da democracia), Gilmar Mendes (que tem uma visão ampla tanto da Justiça quanto do Direito) e Edson Fachin —, o Supremo reagiu, com mestria, aos ataques dos golpistas e soube apresentar respostas adequadas àqueles que tentaram solapar a democracia. Porque é provável que, sem a atuação decidida e decisiva do Supremo e o viés crítico permanente da Imprensa, Bolsonaro, açulado pela filharada e por militares retardatários, teria tentado um golpe. Felizmente, contido, nada tentou… para além das palavras.
O Centrão de Ciro Nogueira e Arthur Lira e os militares
Entretanto, há dois “atores” quase sempre negligenciados nas análises: os militares e o Centrão do ministro Ciro Nogueira e do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, ambos do partido Progressistas.
Antes das eleições, as Forças Armadas, notadamente o Exército — não há golpe de Estado sem o envolvimento de generais e coronéis —, tramou algum golpe de Estado? Nenhuma vez. Aqui e ali, por certo, militares golpistas — e são minoritários — discutiram com Bolsonaro e sua família (Eduardo Bolsonaro disse que, para fechar o STF, basta um soldado e um cabo) a possibilidade e a viabilidade de um golpe de Estado. Mas o pensamento golpista não obteve eco nas forças dominantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. A vocação democrática dos oficiais é mais forte do que a golpista.
Pós-eleições, ocorreu um fenômeno a ser estudado pelos cientistas políticos e, quem sabe, por sociólogos e antropólogos. Milhares saíram às ruas para protestar contra a vitória de Lula da Silva (PT) para presidente da República. São malucos e/ou imbecis? Há malucos e imbecis na direita, na esquerda e no centro. Mas é óbvio que a maioria dos que estão nas ruas — ainda que alguns sejam “financiados” por empresários que, espertos, se escondem atrás de desempregados, subempregados e funcionários — é gente “normal”. Numa passagem pela porta do quartel do Exército, no Jardim Guanabara, um repórter do Jornal Opção pôde verificar que há dezenas de pessoas com mais de 40 anos — algumas com mais de 60 anos.

Caminhoneiros, empresários urbanos e do agronegócio e eleitores de direita “desgarrados”, pode-se dizer, se amotinaram. O objetivo era e é criar ambiente para um golpe de Estado. Mas o que ocorreu? Nada. E por quê? Porque as Forças Armadas optaram pela legalidade democrática. Na terça-feira, 13, na Banca Três Irmãos, na Avenida Goiás, no Centro de Goiânia, um repórter do Jornal Opção perguntou a um soldado: “Qual a orientação que os oficiais dão para vocês a respeito das pessoas que estão na porta do quartel?” O jovem militar respondeu: “A orientação é para a gente não chegar perto nem conversar com as pessoas”. É isto: as Forças Armadas não querem saber de golpe. Bolsonaro, a partir do dia 1º de janeiro, não será um problema delas, e sim, possivelmente, da Justiça.
Por que as Forças Armadas não querem saber de golpe de Estado? Primeiro, porque a vocação democrática instalou-se no Exército, na Aeronáutica e na Marinha. Segundo, porque, quando a ditadura acaba, deixa de ser “civil-militar” e passa a ser só militar. Os civis tiram o corpo fora e o desgaste, o histórico e social, fica tão-somente para os militares. Terceiro, o presidente Ernesto Geisel, um homem decente, disse que decidiu acabar com a ditadura porque havia se tornado uma “bagunça”. Quer dizer, o Brasil perfeito, sem corrupção e com políticos “enquadrados”, não foi construído em 21 anos de ditadura — de 1964 a 1985 — pelos generais, coronéis, brigadeiros e almirantes. Então, era melhor tirar o time de campo, e Geisel, com apoio de Golbery do Couto e Silva e, depois, do presidente João Figueiredo, soube promover a distensão a Abertura com rara habilidade.

O segundo “ator” é o Centrão, uma espécie de federação partidária da qual fazem parte o pP e o PL, entre outros. Seus principais nomes são Ciro Nogueira, Arthur Lira, Ricardo Barros e Valdemar Costa Neto (PL). São operadores da política, do toma-lá-dá-cá, e não políticos da estirpe de Petrônio Portela, Ulysses Guimarães e Tancredo Neves. São realistas totais, que vivem intensamente no presente, no aqui e agora, e não querem saber de debates sobre um futuro radioso. São altamente pragmáticos.
Diz-se que o Centrão é sobretudo fisiológico. De fato, é. Mas não é apenas isto. Dado seu caráter pragmático, por viver no presente e não entre nefelibatas, os líderes do Centrão são também democratas. Não querem golpe nem ditadura. Porque sabem que, numa ditadura, seu “titular” os enquadrará, às vezes de maneira exemplar. Pode cassar seus mandados.
Por ser avesso à ditadura, o Centrão de Ciro Nogueira e Arthur Lira conseguiu, ao agir com equilíbrio e realismo, manter Bolsonaro no campo democrático. De algum modo, e possivelmente sugerindo que poderia ser reeleito, os políticos do Centrão foram decisivos para o presidente não tentar uma aventura golpista.

O Centrão é mesmo o que há de pior na política patropi? E se o Centrão for o retrato do Brasil atual e, ao mesmo tempo, o bode expiatório dos que se julgam puros, mas, no fundo, nem são tão puros como pensam? Observe-se um fato: Arthur Lira foi o deputado federal mais votado em Alagoas, no pleito deste ano. Ele conseguiu 219.452 votos (13,26%). O segundo colocado, Alfredo Gaspar (União Brasil), obteve 102.039 votos — menos da metade. Arthur Lira gastou muito, tem currais eleitorais? É possível. Mas não se deve subestimar os eleitores. O político alagoano se consagrou nacionalmente e tem prestígio local.
O fato é que não se pode governar o país sem os políticos do Centrão. Não foram eles que aprovaram a reeleição para Fernando Henrique Cardoso em 1998? Seus membros participaram dos governos de FHC, Lula da Silva, Dilma Rousseff, Michel Temer e Bolsonaro. Porque, insistindo, o Centrão é incontornável. Os eleitores brasileiros mandaram seus membros para a Câmara dos Deputados e o Senado. Ou seja, a democracia “deu” o Legislativo ao Centrão. Por quê? Talvez porque os eleitores, consciente ou inconscientemente, consideram que seus membros, realistas e moderados, são incapazes de maluquices políticas, como golpe de Estado e ditadura.
Há quem critique Lula da Silva porque abriu diálogo com o Centrão, por intermédio de Arthur Lira. Poderia ser diferente? Só para quem não tem responsabilidade com o país, ou seja, não tem de governá-lo por quatro anos.

Lula da Silva sabe que, para governar o país — para retirar seus projetos do papel e colocá-los em prática, para beneficiar a sociedade —, precisa do Centrão. Por isso o procurou, dando prova de que é realista, e não moralista de botequim.
Político maduro, com 77 anos, Lula da Silva sabe que é preciso governar com homens e mulheres reais — os que estão na ordem do dia — e não com homens e mulheres ideais, que não existem, ou existem em escassa quantidade. Talvez seja o político adequado, não para eliminar os conflitos — que nunca acabam numa sociedade democrática —, e sim para recolocá-los num ambiente de pacificação dos ânimos. Direita e esquerda terão de aprender a conviver como adversárias, e não como inimigas. A democracia é mais viva quando se tem adversários, e não inimigos. Derrotar, por meio das urnas, é a saída democrática. “Destruir” aquele que pensa diferente é o retorno à barbárie.
Finalmente, a transição que Lula da Silva terá de fazer, para fortalecer a democracia e impedir que o país volte a pôr na pauta do dia a dia a ideia de golpe de Estado, é semelhante à de 1985, quando Tancredo Neves, para ser eleito presidente da República no Colégio Eleitoral, teve de compor com políticos que apoiaram a ditadura civil-militar, como José Sarney, Marco Maciel e Antônio Carlos Magalhães, e articulou com o general Leônidas Pires Gonçalves.