A pandemia trouxe grandes desafios aos líderes da política e da economia; alguns deles se afundaram no abismo em busca de faturar mais

Sandro Mabel, José Alves Filho e a ivermectina: curandeiros da pandemia | Fotomontagem

Neste mês se completam dois anos desde o alerta do oftalmologista chinês Li Wenliang sobre o risco de um novo vírus ser responsável por uma série de casos de internações por problemas respiratórios graves em Wuhan, na China. O médico foi duramente reprendido e silenciado pelo regime político autoritário de seu país e morreria em 7 de fevereiro, justamente em decorrência da exposição ao coronavírus. O governo se penitenciou depois e considerou Li um herói.

Em todas as nações houve personagens que, mais do que vítimas, foram mártires da Covid-19. Gente que buscava de alguma forma ajudar outras pessoas afetadas direta ou indiretamente pela doença. Eles se expuseram além da conta, fosse por dever de ofício, como várias categorias de profissionais da saúde, fosse por empatia e espírito coletivo, para arrecadar e entregar alimentos e outros donativos a quem havia perdido a fonte de renda, por causa do fechamento da economia, ou simplesmente levar consolo espiritual às famílias enlutadas e aos doentes.

Por outro lado, no Brasil e no mundo, houve homens públicos que minimizaram os riscos trazidos pelo coronavírus. Eles serão lembrados nas futuras eleições e seus nomes serão eternizados pela história por seu papel sórdido. Da mesma forma, desde o início, autoridades dignas dos cargos que obtiveram com o voto da população, buscaram, em meio às grandes incertezas que ainda pairavam em relação ao novo vírus e à nova doença, se preparar para o cenário de uma pandemia como o mundo não sofria havia um século.

Esses são os que arriscaram sua popularidade seus votos nas urnas em prol de preservar o máximo de vidas dos cidadãos que estavam sob sua guarda. Medidas amargas, como o isolamento social e o fechamento de comércios, tiveram de ser tomadas a contragosto por chefes de governo de todas as esferas.

Em Goiás, especialmente, é preciso ressaltar o papel central que teve o governador Ronaldo Caiado (DEM) na liderança desse processo. Quando o pânico com o vírus ameaçou se instalar, em meio a todas as dúvidas e todos os medos decorrentes das cenas sombrias de caminhões militares carregados de caixões deixando os hospitais na Itália e centros de convenções transformados em hospitais e necrotérios na Espanha, seu instinto de preservação de vidas forjado nos bancos da Faculdade de Medicina se sobressaiu à tentação política de jogar a situação para debaixo do tapete: foi à frente das câmeras e, de forma clara e transparente, disse aos goianos que era hora de obedecer às necessárias regras sanitárias.

E foi assim, caminhando sempre de acordo com o que prezava a ciência, com o apoio de uma equipe técnica competente e de instituições de pesquisa, como a valorosa e prestativa Universidade Federal de Goiás (UFG), que Caiado pautou e tem pautado seu corolário de resoluções nada fáceis, às vezes tendo de desagradar a categorias que foram fundamentais para sua eleição. Seu posicionamento pró-ciência também o afastou do presidente Jair Bolsonaro (PL), sempre refratário ao combate da pandemia por meio das medidas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Foi o confronto entre dois políticos em atitudes opostas: um que arriscou abrir mão do próprio eleitorado – que basicamente era convergente ao de Bolsonaro, apoiador que foi de primeira hora de sua campanha à Presidência – e outro que arriscou a vida de seus apoiadores com aglomerações, recomendação de medicamentos ineficazes e extrema má vontade em relação às vacinas.

Bolsonaro não teria ido tão longe na pregação anticiência se não tivesse uma base sólida de apoiadores influentes em áreas estratégicas, esses também com seus próprios interesses. O exemplo mais conhecido é o da operadora de planos de saúde Prevent Senior, responsável em grande parte por dar a casca de falsa legitimidade aos argumentos sem comprovação científica liderados pelo Palácio do Planalto. Foi baseado em uma “pesquisa” da empresa que o presidente disse, por exemplo, que a cloroquina funcionava contra a Covid-19.

A Prevent Senior, de origem paulista e que tem como proprietários os irmãos Eduardo e Fernando Parrillo, atrai pessoas idosas como massa de clientes, oferecendo mensalidades mais em conta no mercado de seguros de saúde. Havia, desde a chegada da pandemia ao Brasil, a suspeita de que cometia irregularidades, até que uma denúncia de médicos prestadores de serviços foi parar na CPI do Senado.

No depoimento aos parlamentares concedido por Bruna Morato, advogada dos profissionais denunciantes, a empresa foi acusada pelos ex-colaboradores de práticas dignas de uma Comenda Joseph Mengele, o médico “anjo da morte” dos nazistas: usar como cobaias de seus experimentos com hidroxicloroquina e outros placebos os próprios pacientes; reduzir nível de oxigenação de pessoas internadas há 14 dias ou mais em determinadas UTIs para economizar gastos; e deixar seus profissionais da saúde e administrativos sem equipamentos de proteção individual (EPIs) adequados e trabalhando mesmo contaminados pelo vírus.

A Prevent rechaçou as acusações, o que também já havia feito quando do depoimento de seu diretor-executivo, Pedro Benedito Batista Júnior, que entrou como testemunha na sala da comissão e saiu como investigado.

Na segunda-feira, 29, a operadora divulgou um comunicado em grandes veículos da mídia, dirigindo-se aos associados e à comunidade, afirmando que não existe qualquer pesquisa científica que comprove a eficácia dos medicamentos do chamado “kit Covid”. Da mesma forma, alegou ter suspendido sua distribuição. A divulgação estava prevista no termo de ajustamento de conduta (TAC) feito com a Promotoria de Saúde do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) e homologado pelo Conselho Superior do MP.

Doutrina curandeira em Goiás
Providências estão sendo tomadas contra a empresa, mas obviamente não só ela se esbaldou no discurso negacionista ou no simplismo de que bastaria tomar um medicamento – ou um kit com eles – para seguir a vida normalmente em meio à pandemia. Em Goiás há pelo menos dois casos que mereceriam uma apuração rigorosa das autoridades, justamente por destacarem fatos e pessoas com poder e prestígio e que foram fundo na mesma doutrina curandeira.

Um desses personagens é o ex-deputado e empresário Sandro Mabel, atual presidente da Federação das Indústrias do Estado de Goiás (Fieg). Ele foi um dos maiores críticos das medidas de contenção da pandemia, sempre muito preocupado com os prejuízos para o setor industrial e de serviços. Para Mabel, era preciso que a vida seguisse normalmente e não poucas vezes se mostrou alinhado às atitudes intempestivas do presidente Jair Bolsonaro, notadamente em defesa dos remédios de ineficácia comprovada para o tratamento da Covid-19.

Mais do que isso, em março deste ano, com todos os estudos já ressaltando a inutilidade e até os danos que tais medicamentos poderiam provocar, Sandro Mabel solicitou à Procuradoria Geral da República (PGR) que responsabilizasse prefeitos goianos que não cumprissem uma recomendação do Ministério Público Federal no Estado para uso do tratamento precoce no combate à Covid-19.

Mas Mabel já tinha feito coisa pior: ele promovera, por meio de sua autoridade sindical, lives para disseminar o uso de kits nas empresas. Foi assim no dia 17 de setembro de 2020, quando ao lado das médicas Pollyana Pimenta, Lucy Kerr (esta organizadora de estudo sobre o uso da ivermectina no combate à Covid-19), Helen Brandão e do gerente de Saúde e Segurança do Sesi, Bruno Godinho, liderou a live intitulada “Tratamento Precoce à Covid-19”. Em nota sobre o evento, que ainda hoje consta no site do Sesi Goiás, o presidente da Fieg afirma que “se o Brasil tivesse adotado esse protocolo [de tratamento precoce], teríamos menos de um terço das mortes que tivemos”. Baseado em quê? No puro achismo, na frieza calculista de quem quer ver trabalhadores se expondo para não perder lucros ou, na melhor das hipóteses, no chamado “wishful thinking”, expressão idiomática inglesa para o ato de tomar os próprios desejos por realidade ou seguir raciocínios baseados nesses desejos.

No mesmo texto do site do Sesi Goiás, com o título “Sandro Mabel anuncia ampliação do tratamento precoce contra a Covid-19”, está escrito que “a estratégia do Sesi com o atendimento é oferecer ao público-alvo (empresas e trabalhadores da indústria) o tratamento precoce logo no início da infecção e dos primeiros sintomas, proporcionando assim, ao paciente, ser diagnosticado, orientado e monitorado por equipe médica, a fim de evitar o agravamento da doença e reduzir as chances de internação hospitalar. O atendimento, aberto também à comunidade, está disponível por teleconsulta para todo o Estado.”

Outro caso emblemático – e este um escândalo divulgado nacionalmente – envolvendo goianos foi o da farmacêutica Vitamedic, com sede em Anápolis e de propriedade do empresário José Alves Filho, principal nome do Grupo José Alves (GJA), com grandes empreendimentos em vários ramos. Na mesma CPI do Senado que levou a Prevent Senior aos holofotes de forma negativa, mais discretamente passou o diretor-executivo da empresa goiana, Jailton Batista, para tentar explicar como a Vitamedic lucrou milhões de reais com a venda de ivermectina.

A suspeita dos senadores, colocada em relatório, é de que a bonança da empresa de José Alves Filho tenha sido à custa de milhares de vidas perdidas para a Covid-19. Por essa razão, a CPI colocou o empresário como um de seus 80 indiciados, com o crime “epidemia com resultado morte”.

Para entender melhor o caso, em julho passado surgiu a informação de que a Vitamedic estaria por trás de anúncios assinados pela Associação Médicos pelo Brasil, em defesa do tratamento precoce contra o coronavírus. Publicações nos grandes jornais de cada Estado, bem como outdoors espalhados por todo o País, compuseram a estratégia de marketing para propagar o tratamento precoce. Um dos itens do “kit Covid” é a ivermectina, da qual a empresa é uma das maiores fabricantes no Brasil. Dados que chegaram à CPI revelaram aumento de vendas do medicamento pela Vitamedic em mais de 1.000%.

Diante de indícios tão claros e documentados de pouco caso com a vida e tanto compromisso com o lucro, o mínimo que se espera é que o Ministério Público de Goiás e demais autoridades policiais e sanitárias levem a cabo uma investigação sobre esses casos notórios e partindo de pessoas e firmas conhecidas e reconhecidas.

Talvez esses empresários goianos tenham levado a fundo demais a premissa de que “enquanto uns choram, outros vendem lenços”. Em meio a uma pandemia de tantas dores, é sinistro imaginar que tenha gente sorrindo com cifrões e metas de produção, ainda que para isso haja a morte de tantos. No julgamento do tempo, que atravessa décadas e séculos, esse capitalismo de resultados, lá na frente, vai se encontrar com os piores parâmetros de civilidade da história.