O principal “antídoto” contra o golpismo é Lula da Silva estender as mãos aos militares
27 novembro 2022 às 01h47
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Lula da Silva ganhou as eleições e deve assumir a Presidência da República em 1º de janeiro de 2023, daqui a um mês e três dias. A questão, por ser tão óbvia, nem deveria ser discutida. O mais importante a debater, neste momento, são, para além da escolha de ministros, os projetos do governo para os próximos quatro anos, ou pelo menos para o próximo ano. Uma crise econômica global avizinha-se e, portanto, é vital saber como a gestão do petista-chefe a enfrentará com o objetivo de reduzir danos para o mercado economia e para todos os brasileiros.
Discute-se, com frequência, a queda da bolsa e a elevação do valor do dólar. Claro, as quedas no mercado financeiro, do tipo “cai e sobe” por causa de declarações do presidente recém-eleito a respeito do teto de gastos, são termômetros da economia. Porém, por serem sazonais e não fixas, não devem ser tratadas com extrema seriedade. Mas a crise internacional, que deve provocar a queda dos preços das commodities por longo tempo, poderá abalar os alicerces da economia, dificultando a execução dos planos governamentais.
Portanto, além de se discutir a posse de Lula da Silva, todo o país deveria se preocupar com problemas reais, e não com, aparentemente, “fantasias” golpistas de alguns militares. Por que as aspas cercando a palavra fantasias? Porque os projetos golpistas estão na ordem do dia, o que não significa, necessariamente, que se terá um golpe de Estado com o objetivo de evitar a posse de Lula da Silva para manter o presidente Jair Bolsonaro no poder ou convocar novas eleições.
Mais do que “fatos”, há “palavras” que geram preocupação (elas geram fatos). Rubens Câmara Senna, general da ativa e uma das figuras sérias do Exército, disse que há uma “ditadura do Judiciário” no Brasil, numa referência às decisões do ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).
Há mesmo uma “ditadura do Judiciário” no Brasil? Na verdade, não. O que o Supremo (e o TSE) está fazendo, ou tentando fazer, é evitar a instalação de uma ditadura no país. Por causa da “fraquejada” do Legislativo, fica-se com a impressão de que o Supremo é ativista político. A internet criou a sensação de ser um terreno sem lei, um espaço para James Bonds globais, então, quando seu liberticídio é confrontado com as leis de cada país, os protestos são quase gerais. Ante a omissão do Executivo e do Legislativo, o STF aparece para pôr ao menos um pouco de ordem na casa, o que chama a atenção de todos. Então, o que parece censura à liberdade de expressão é, a rigor, uma maneira de criar espaço para uma liberdade (mais) responsável.
Porém, corre-se o risco de, em nome da lei, se censurar quase tudo, reduzindo o campo para o debate sensato e firme. Porque não há debate verdadeiro sem conflito. Mas não se trata de “aceitar” o conflito cujo objetivo é puramente, por intermédio do ataque à honra, destruir pessoas e instituições. Mas não se deve tratar qualquer crítica, como a do economista Marcos Cintra, como um ataque à democracia. Determinados questionamentos podem até parecer duros, mas, como não abalam realmente a democracia, não devem ser censurados, proibidos. Os ministros do Supremo devem ficar atentos a isto, senão ficarão conhecidos, desculpe-nos o palavrão, como “empata-fodas” da democracia.
Voltando aos militares. O vice-presidente Hamilton Mourão deu declarações preocupantes, sobretudo para quem foi eleito recentemente senador pelo Rio Grande do Sul: “Hoje, rumamos para um precipício. Assim, é chegada a hora da direita conservadora se organizar para combater a esquerda revolucionária”. Acrescenta que é preciso “restabelecer” o Estado Democrático de Direito no Brasil.
Entretanto, não procede que o Estado democrático de Direito precisa ser “restabelecido” no Brasil, porque não está realmente sob ameaça. Aliás, se há, a ameaça não é feita pelo Supremo Tribunal Federal, que, dada sua estrutura, não tem as mínimas condições de proceder a um golpe de Estado.
Hamilton Mourão é um general de valor, um dos mais preparados do Exército e não coonestou atos ditos bárbaros de Bolsonaro — ele se vacinou e não debochou dos doentes e dos mortos —, mas suas palavras não parecem advogar a defesa do Estado Democrático de Direito, e sim sua ruptura.
Se há uma mentalidade golpista nas Forças Armadas, há também generais que preferem propugnar pela democracia. É o caso do chefe do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas, general Laerte de Souza.
Na quinta-feira, 24, numa fala sobre a Intentona Comunista (integrantes do Partido Comunista, infiltrados no Exército, tentaram dar um golpe de Estado, em 1935, e foram derrotados e presos), o general Laerte de Souza exibiu a fala democrática das Forças Armadas. Talvez, ao contrário do que se costuma pensar, suas palavras sejam compartilhadas pela maioria dos militares do alto comando.
Vale transcrever as palavras do general Laerte de Souza: “Os heróis de 1935 não morreram em vão. E as lições do passado e o sangue derramado pelos que tombaram na defesa da pátria contra um movimento — que foi inclusive articulado do exterior pela Internacional Comunista — sirvam de referência para que jamais brasileiros peguem novamente em armas contra seus compatriotas”.
Ao defender a coesão e a hierarquia dos militares, o general Laerte de Souza enfatizou: “Forças Armadas disciplinadas, seguindo estritamente a cadeia de comando e sob a liderança de seus comandantes, aptas e desejosas de cumprirem suas missões constitucionais e, acima de tudo, coesas são a melhor defesa contra aquele estado de coisas”. Ele acrescentou, na página oficial do Comando Militar do Leste, que as Forças Armadas têm compromisso “com a defesa da pátria e dos ideais democráticos”.
Portanto, se há generais golpistas, e certamente há, há também generais que estão preocupados em manter acesa a democracia. O mais provável é que Bolsonaro tenha “desaparecio”, durante um bom tempo, porque estava “auscultando” os quartéis. Porque, como se sabe, um golpe hoje não seria para manter a democracia, e sim, unicamente, para tentar “salvar” Bolsonaro e sua família. As Forças Armadas correriam o risco de manchar sua história, mais uma vez, só para “salvar” Bolsonaro dos tentáculos do Judiciário? O mais provável é que não.
Há um certo paradoxo: há golpistas, que estão tentando criar “espaço” para um golpe de Estado — daí as pessoas “organizadas” nas ruas —, mas, rigorosamente, não há ambiente para um putsch. Afinal, Lula da Silva não planeja implantar o comunismo no Brasil.
Postas as questões, o momento é de realismo. Lula da Silva precisa estender as mãos, de maneira crível, tanto aos militares quanto aos evangélicos e produtores rurais (o agronegócio, que está preocupado com o câmbio, e, quiçá, menos com golpe).
A indicação do ministro da Defesa, um ato de “boa vontade” com os militares, já deveria ter sido feita por Lula da Silva. Deve ser um civil? Claro que sim. Mas, dado o risco da transição, também poderia ser um militar da reserva respeitado pelas Forças Armadas. Hábil politicamente, o presidente eleito deveria tratar a questão mais rapidamente. Há, em setores da esquerda, certa animosidade com militares, porque estariam dando “proteção” a Bolsonaro, mas a hora é de redução de danos, portanto de congraçamento. O realismo, e Lula da Silva é um realista incontornável, sugere que é preciso conversar, de maneira franca e aberta, com militares.
Há outra questão. Não há dúvida de que há preconceito contra evangélicos, sobretudo quanto à vinculação de seus líderes com o bolsonarismo — o que teria criado um fundamentalismo religioso que impregnou a política. Há uma maneira de “desmobilizar” isto, uma bomba-relógio que pode durar quatro anos. Lula deveria estender, de imediato, as mãos aos líderes das várias igrejas evangélicas, como Assembleia de Deus, Igreja Universal e, entre outras, Videira. Há religiosos sérios e responsáveis, cujo trabalho social é importante para o país, e o “encanto” por Bolsonaro pode ser “quebrado” por gestos de boa vontade, que começam com palavras de paz e congraçamento. Não se dará a “desmontagem” do bolsonarismo se o governo Lula da Silva não conseguir melhorar suas relações com evangélicos, produtores rurais e, sim, militares.
Lula da Silva tem 77 anos é um dos políticos brasileiros mais experimentados — talvez o mais experiente do momento. Então, é o político necessário para “recriar” o ambiente democrático na sociedade brasileira. Conflitos sempre existirão, pois são próprios da democracia, mas uma sociedade mais pacífica, se comportando de maneira democrática e civilizada, é vital.
Por fim, o Supremo deverá se inspirar no realismo de Lula da Silva. Alexandre de Moraes vem acertando mais do que errando, mas há acertos que, dependendo do ambiente político, tendem a ser vistos como “excessos” e podem ampliar a crise, gerando vagas para o golpismo. Se está dizendo que o ministro precisa ser “contido” por seus pares? O que está se propondo é que cumpra a lei, como está fazendo, mas sem perder a dimensão de que se trata de um magistrado de um momento da história que está se tornando perigoso para a democracia.