O presidente João Goulart queria ser candidato à reeleição em 1965? É provável. Bastava mudar a lei. Seria um golpe? Há quem postule que sim, mas, se o Congresso aprovasse uma lei, não seria uma tentativa de putsch.

Se o país era democrático, com Jango Goulart no poder, aqueles que o derrubaram não eram democráticos. Tanto não o eram que, no lugar de restabelecer a democracia, produziram uma ditadura que durou 21 anos — de 1964 a 1985.

Civis como Carlos Lacerda e Magalhães Pinto acreditaram, ao menos no início, que o golpe civil-militar visava apenas retirar Jango do poder e que as eleições diretas seriam restabelecidas, talvez já em 1965. Porém, deu tudo errado. Os militares decidiram continuar no poder — com Castello Branco, Costa e Silva, Emilio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo. Civis puderam pleitear apenas a vice-Presidência, que, na ditadura, era um cargo meramente decorativo.

Militares e civis que apoiaram a ditadura tratam o “movimento” de 1964 como “revolução” — o que, de fato, não foi. A rigor, foi um golpe militar coonestado por civis, como Carlos Lacerda, Magalhães Pinto e vários outros. (Vale lembrar: Mauro Borges, então governador de Goiás, apoiou o golpe de Estado — tanto que só foi cassado em novembro de 1964.)

Vários jornais, como “O Globo”, o “Jornal do Brasil”, a “Folha de S. Paulo” e “O Estado de S. Paulo”, apoiaram abertamente o golpe e a ditadura (o “Estadão” apoiou a ditadura de maneira reticente, com conflitos aqui e ali).

Em 2 de abril de 1964, um dia depois do golpe, “O Globo” publicou um editorial defendendo-o. Seu título é: “Ressurge a democracia!” Sim, com exclamação.

O golpe, na opinião do jornal de Roberto Marinho, levou ao renascimento da democracia — quando, como se sabe, significou a morte da democracia e o nascimento de uma ditadura, que chegou a ser cruenta, sobretudo entre 1968 e 1974 (os chamados anos de chumbo).

Noutra chamada, publicada também na primeira página, “O Globo” disse: “Fugiu Goulart e a democracia está sendo restabelecida”. Era um jornal entusiasmado, na linha de frente, com regime discricionário que nascia.

Em 2013, com Roberto Marinho (1904-2003) já morto, “O Globo” publicou um editorial no qual pediu desculpas aos leitores por ter apoiado o golpe de 1964 e a longeva ditadura. Não se fala mais em “revolução”, e sim em “golpe”.

Na edição de 2 de abril de 1964, o “Estadão” publicou na primeira página: “Vitorioso o movimento democrático”. Ressalve-se que, aos poucos, o jornal, que era comandado pela família Mesquita, foi se afastando da ditadura.

A “Folha de S. Paulo” e o “Jornal do Brasil” também apoiaram o golpe e a ditadura. Em 1993, quando o golpe havia completado 30 anos e os militares não estavam no poder, a “Folha” publicou um editorial no qual diz que, “aos olhos de hoje, apoiar a ditadura militar foi um erro”.

Passado tanto tempo, a ditadura acabou há 37 anos, em 1985, os jornais, quando não esquecem, reescrevem sua história, com pedidos de desculpa, como o caso de “O Globo”. Vale sublinhar: nenhum jornal se disse equivocado durante os 21 anos da ditadura. O mea culpa só se deu depois de seu fim.

Nenhum jornal foi investigado ou respondeu a “processo” por ter apoiado o golpe de Estado e a ditadura.

Luta de Alexandre de Moraes contra o golpismo

Alexandre de Moraes: acerto ao defender a democracia | Foto: Nelson Jr./SCO/STF

Mudemos o foco para o ano de 2022.

Há pouco tempo, um dos filhos do presidente Jair Bolsonaro (PL), o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL), disse que, para fechar o Supremo Tribunal Federal, basta um cabo e um soldado.

Trata-se de mera retórica? Pode até ser. Mas revela uma mente não-democrática. Para piorar, o presidente Bolsonaro não desautorizou o filho. Calou-se.

Mesmo assim, é preciso ressalvar que, apesar dos arroubos autoritários, lembrando não vagamente o presidente João Figueiredo, Bolsonaro ainda não atentou contra a democracia e as instituições permanecem incólumes.

Mas não há dúvida de que o discurso de Bolsonaro é autoritário — o que sugere que, se perder a eleição, sobretudo no segundo turno, com uma derrota apertada, pode ensaiar um golpe.

Bolsonaro tem dito que, se perder, “em eleições limpas”, sairá do poder tranquilamente. Talvez seja a primeira vez, na história do país, em que um político, estando no poder, receie que as eleições possam não ser limpas.

O mais provável é que Bolsonaro saiba que as eleições serão limpas, mas, ao acossar o STF, com o discurso de que as urnas eletrônicas podem ser fraudadas (por quem? Pela oposição, que não está no poder?), talvez esteja tencionando para conquistar eleitores indecisos e que, possivelmente, não têm entusiasmo pelo candidato do PT a presidente, Lula da Silva.

O jornalista William Waack publicou um artigo, “O racha provocado pelo STF” (na quinta-feira, 25), no qual assinala: “Recente mapeamento confidencia sobre as tendências políticas” dos militares — “e que circula em consultorias políticas — divide os generais por cores que vão do ‘risco muito baixo’ de apoio à ruptura institucional ao ‘risco muito alto’. Os generais mapeados estão todos nas categorias ‘risco muito baixo’ ou ‘baixo’. Entre os comandantes de polícias militares, apenas os de Rondônia e Minas foram identificados nesse mapeamento como ‘apoiadores do bolsonarismo”.

Militares de alta patente repetem o discurso de Bolsonaro contra o ativismo dito político do Supremo, mas, no geral, não endossam nenhuma perspectiva golpista.

O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o ministro Alexandre de Moraes, é um defensor da democracia, da aplicação rigorosa das leis. De alguma maneira, assim como o ministro Luís Roberto Barroso, Moraes promove um enfrentamento contra aqueles que, de alguma maneira, “ameaçam” e “conspiram” contra a democracia.

Então, na defesa da democracia, vale tudo? É difícil formular uma resposta negativa. Mas vale verificar a interpretação do ex-ministro do Supremo Marco Aurélio Mello, um legalista. Costuma-se sugerir que é bolsonarista. O mais provável é que tende a votar em Bolsonaro como uma reação a Lula da Silva — o que não significa que seja bolsonarista. Aliás, a maioria dos eleitores de Bolsonaro não é bolsonarista. Talvez seja mais anti-PT, portanto usa o presidente para tentar derrotar o postulante red.

Há vários empresários que não querem a volta de Lula da Silva ao poder — por causa da corrupção e dos erros na condução da política econômica (falhas que, a rigor, atribuem mais à ex-presidente Dilma Rousseff, admitindo-se que, para os empresários, as gestões do ex-presidente foram de relativa bonança) — e, por isso, chegam a falar em golpe de Estado.

Porém, a rigor, falar em golpe de Estado equivale a articular um golpe de Estado? A retórica (e bravatas) leva, necessariamente, à ação? Há um histórico no Brasil de que vivandeiras — civis que “frequentam” quartéis — trabalham para obter o apoio de militares para golpes de Estado. Neste momento, embora Bolsonaro seja o darling dos militares, empresários estão nos quarteis “convencendo” generais e coronéis a participarem de um movimento golpista? Parece improvável.

Marco Aurélio Mello, ex-ministro do STF: bom senso e realismo | Foto: Carlos Humberto/SCO/STF

Retomando o STF. O ministro Moraes tem razão ao jogar duro para proteger a democracia dos que não a querem. Mas, como se disse acima, vale divulgar o pensamento do ex-ministro Marco Aurélio Mello.

A Polícia Federal, com autorização do ministro Moraes, está investigando o que, de fato, estão fazendo os empresários ditos golpistas. Veja como Marco Aurélio Mello (“Estadão”, quinta-feira, 25) analisa a operação da PF: “Tempos estranhos. Precisamos de temperança, compreensão. Precisamos pisar no freio, porque isso não interessa, principalmente aos menos afortunados. Em termos de governança, de preservação de certos valores, o que interessa é a estabilidade. A paixão, em casos de Estado, merece a excomunhão maior. Estão todos apaixonados”.

Marco Aurélio Mello questiona a base jurídica da operação PF-Moraes: “Não compreendi os atos de contrição. Vinga ainda no país, ainda bem, a liberdade de expressão, liberdade de manifestação. Brigar na veiculação de ideias é muito ruim”.

O ex-ministro diz que os empresários deram uma opinião: “Olha, ao invés do ex-presidente, é preferível o golpe”. Porém, enfatiza Marco Aurélio Mello, “em Direito Penal não se pune a cogitação. Não há crime de veicular uma ideia” — ainda que não seja a favor da democracia.

Os empresários discutiram a questão da possibilidade de um golpe no WhatsApp. Confira o que diz Marco Aurélio Mello: “Eu tinha o WhatsApp como algo inalcançável. A insegurança passa a imperar. E outra coisa: nós ainda não temos, não com essa nomenclatura, partido comunista. Partido comunista é contra a democracia. É a favor de um regime quase ditatorial de esquerda. E aí? Vamos mandar prender? Uma inverdade que se veicule você combate com a verdade”. O que está acontecendo, frisa, é “muito perigoso e não atende aos interesses nacionais”. (Uma correção: o mais provável é que o ex-ministro quis dizer que partidos comunistas não têm chances reais, neste momento, de chegar à Presidência da República. Mas há partidos comunistas no país, como o PC do B e o PCB.)

O filósofo italiano Norberto Bobbio diz que, ao contrário da lenda, os fins não justificam os meios, porque os meios podem corromper os fins. O ministro Moraes, defensor intransigente da democracia e um magistrado de coragem, como deve ser, precisa trabalhar, a partir de agora, no campo da pacificação. É hora de fumar o cachimbo da paz, como sugere Marco Aurélio Mello. Que defenda a democracia, como tem feito muito bem, mas é preciso ter cuidado para não transformar empresários que contribuem para o desenvolvimento do país em meros golpistas. Vale reler o que se disse acima sobre os jornais que apoiaram o golpe de 64 e defenderam a ditadura durante 21 anos. O “crime” deles, se crime é, está prescrito pela lei? E pela história?