“Buliram muito com o planeta / O planeta como um cachorro eu vejo / Se ele já não aguenta mais as pulgas / Se livra delas num sacolejo”. Havia apenas dois anos desde que a Organização das Nações Unidas (ONU) realizara a Conferência de Estocolmo, a primeira grande reunião de chefes de Estado para tratar da degradação do meio ambiente, quando Raul Seixas lançou esses versos. O ano era 1974 e a música chamava-se As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor, de Gîtâ, seu segundo álbum na carreira, talvez o de maior sucesso.

Já se passavam mais de dois séculos após o início da Revolução Industrial, que trouxe o avanço exponencial da devastação do planeta, e a preocupação com a questão ambiental apenas começava a surgir. A contracultura, puxada pelo movimento hippie, criticava o modo de vida consumista e a supremacia do poder econômico sobre todos os demais valores. Uma novidade daquela primeira metade da década de 70 era a primeira crise energética de alcance global, quando os países produtores de petróleo impuseram um embargo que escancararia a dependência que o mundo já vivia daquele recurso mineral.

Ao mesmo tempo que ali a humanidade se admitia completamente refém dos combustíveis fósseis para seu desenvolvimento, estudos começavam a demonstrar que seu uso em escala consistia caminho iminente para a degradação do planeta. O termo da moda então era “efeito estufa”, pelo qual se entendia, bem “grosso modo”, que os gases emitidos transformariam a atmosfera em algo cada vez mais quente e inabitável ao longo dos anos.

Mas o aquecimento global advindo daí seria apenas o elemento que daria ignição em um processo muito maior de deterioração da qualidade de vida. Em suma, seria apenas a primeira faceta do que se chamaria depois de “mudanças climáticas”.

Do hippie ao dono de petrolífera, o ser humano precisava desde então reduzir sua pegada ambiental, como se convencionou chamar a produção individual de poluição. É claro que a mudança de perfil fóssil para fotovoltaico como matriz energética de uma megaindústria teria, por si, um impacto muito grande. Mas imaginemos se, indivíduo por indivíduo, todos ao mesmo tempo, no mundo inteiro, passassem a recusar sacolinhas de plástico ao fazer compras.

O fato é que, diante dos alertas, quem fez ou faz sua parte ainda é exceção. Decorre que cada qual – ou a grandíssima parte dos “cada quais” – sabe que a situação é grave, que é preciso cuidar de uma questão que afeta o futuro coletivo. Mas, por algo que remete talvez a questões biológico-evolutivas, o indivíduo diz não à capacidade de usar o que é um dos principais diferenciais do Homo sapiens: sua capacidade de determinar suas ações de acordo com as consequências. Como espécie, entendemos a urgência de mudar os rumos; como espécime, queremos o maior conforto e todas as regalias que demandam muita poluição para nos serem entregues.

E do global para o local, as últimas semanas foram de notícias e acontecimentos que dão ideia das consequências produzidas: pelos Estados Unidos e pela Europa, incêndios florestais nunca antes vistos, bem como temperaturas recordes; no Sul do Brasil, os gaúchos contam os estragos causados pelas águas e choram dezenas de mortos por conta de uma tragédia ambiental única; no Centro-Oeste, choveu de fazer enxurrada em agosto, tempo de estiagem e secura extremas na região.

Em meio às enchentes, criança é salva das águas por soldado no Rio Grande do Sul | Foto: Exército Brasileiro

Dando uma repassada nas notícias recentes, uma causa espanto justamente por mostrar o reflexo da ação continuada sobre o meio ambiente: um levantamento do MapBiomas – produção de uma rede colaborativa que envolve organizações não governamentais (ONGs), universidades e empresas de tecnologia – apontou que, em 37 anos, o País perdeu em vegetação nativa o equivalente à área de toda a Região Sudeste. É como se um imenso trator varresse o verde de Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, este o 4º maior Estado brasileiro em quilômetros quadrados.

Ainda que grande parte da perda pareça – e só pareça – se diluir na imensidão da Amazônia, outros biomas também foram extremamente afetados nas últimas décadas pela ação humana de forma direta ou indireta. Não escapou nenhum, mas o Cerrado, a Caatinga e o Pantanal sofreram acima da média.

Parece óbvio que dessa carnificina ambiental decorram anomalias diversas, porque as mudanças não ficam restritas à flora, afetando a homeostase hidrobiológica: além de animais de todos os portes, de mamíferos a insetos, as bacias hidrográficas também são afetadas fortemente. Talvez, por aí, se entenda por que o clima (e não o tempo) tem mudado tanto e tão rapidamente.

Se o ser humano, per se, não consegue parar sua própria sanha, é necessário que os Poderes constituídos, impessoais ainda que dependentes de pessoas, tomem as rédeas. Dessa forma, há um resquício de esperança em medidas que aos poucos, ainda que tarde, vão sendo tomadas para, senão resolver o que já parece inviável, pelo menos remediar o caos.

Nesse sentido, é bem-vinda a medida do governo de Goiás, por meio do governador Ronaldo Caiado (UB), que decretou, na quinta-feira, 7, situação de emergência ambiental para o Estado, com o objetivo de tomar providências necessárias a prevenção e combate de incêndios durante o período de estiagem.  Pelo documento, suspende-se o uso de fogo em vegetação para limpeza de terreno até o final do período de estiagem, exceto para casos que tenham autorização oficial dos órgãos devidos. O mesmo decreto torna mais célere a contratação de mão de obra ou equipamentos para ajudar no combate a incêndios.

Câmara de Goiânia entrou na contramão da proteção ambiental, ao permitir o vale-tudo de construções e maquinários pesados na região da Perimetral Norte

Meses atrás, o Jornal Opção publicou, na coluna Faltou Dizer, um artigo intitulado “Força-tarefa contra as queimadas em Goiás: precisamos do poder público”, que sugeria para a questão ambiental a mesma atitude assertiva que o próprio governador Caiado teve em relação à pandemia de Covid-19. Nesse sentido, é bom entender que algo diferente do convencional para este período difícil do ano está agora de fato sendo executado. Ainda é algo em seu começo, para que talvez ações mais profundas sejam tomadas, até porque o desequilíbrio ambiental é o maior perigo para a “galinha dos ovos de ouro” da economia goiana: o agronegócio.

Já a Câmara de Goiânia, ao contrário, entrou na contramão da proteção ambiental, ao permitir o vale-tudo de construções e maquinários pesados na região da Perimetral Norte, uma área especialmente sensível do ponto de vista da preservação dos recursos naturais e que já vem sendo duramente atingida há tempos por megaempreendimentos que vão de um imenso shopping center a grandes indústrias, transportadoras e centros de logísticas. Tudo isso às margens do Rio Meia Ponte e seus afluentes, os mananciais da cidade.

Nada há que se faça que não traga consequências. Como o cachorro atormentado pelas pulgas que o perturbam, a Terra reage às ações humanas. Da mesma forma ocorre em partes dela. E, bingo, Goiânia, até agora, não está fora da Terra.

A arrogância natural da espécie hegemônica faz com que, diante dos acontecimentos ambientais sombrios, cada vez mais se grite “salvem o planeta, salvem o planeta!”. Ainda não aprendemos que a sobrevida da Terra, como uma minúscula integrante do universo, está garantida por pelo menos alguns bilhões de anos. O que está evidentemente ameaçada é continuidade da espécie humana e daquelas que dela têm sido vítimas.