Marcelo Queiroga merece defesa ampla da sociedade e dos políticos
20 junho 2021 às 00h00
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O ministro da Saúde, que mostra resiliência, tem como objetivo não tornar Bolsonaro um iluminista, e sim vacinar os brasileiros e salvar vidas
A Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19 é presidida por Omar Aziz (PSD). O senador do Amazonas é uma grata surpresa, porque une firmeza, objetividade e respeito aos depoentes. Aqui e ali, excede, porém mais para conter o “excesso” de outros colegas, como Eduardo Girão, do Podemos. Chamou o senador do Ceará de “oportunista”. Na realidade, é mais sofista.
Girão é um bolsonarista, por assim dizer, “enrustido”. Nas suas falas, como se fosse um contorcionista da palavra, tenta se apresentar como “independente” e “justo” — o que não é verdadeiro. Trata-se de um hábil defensor do presidente Jair Bolsonaro — o que é um direito do político cearense. Marcos Rogério, que às vezes ganha puxões de orelhas do “paizão” Aziz, faz uma defesa proativa da gestão bolsonarista. O senador de Rondônia fala bem, é articulado e apresenta questionamentos mais, digamos, palpitantes do que os do monotemático senador Luiz Carlos Heinze, do Rio Grande Sul. É provável que, ao final da CPI-500 mil, Heinze se torne conhecido como Senador Cloroquina. Fernando Bezerra (MDB-PE) irrita-se com facilidade — quer ganhar pelo grito —, o que, em regra, prejudica a exposição de suas ideias.
A tropa de choque do bolsonarismo inclui os senadores Ciro Nogueira (presidente nacional do Progressistas e agente estelar do Centrão), que é mais cuidadoso do que seus pares e nem sempre frequente nas sessões, e Jorginho Mello (PL).
Há quem não aprecie a ação bolsonarista de Eduardo Girão, Marcos Rogério (a linguagem afiada sugere que tem futuro na política de seu Estado), Luiz Carlos Heinze, Ciro Nogueira, Fernando Bezerra e Jorginho Mello. Como “advogados do diabo”, podem não agradar parte dos brasileiros, notadamente os contrários às ações do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Mas o direito ao contraditório, à exposição das próprias opiniões, é basilar numa sociedade democrática.
Do batalhão bolsonarista, Heinze é o único que parece não ouvir o que seus pares dizem, nem mesmo a fala de seus aliados. Parece, como Simão Bacamarte, o personagem de “O Alienista”, história de Machado de Assis, dono de uma ideia fixa — de que a cloroquina (a rigor, o “tratamento precoce”) é o elixir salvador da humanidade, não apenas dos brasileiros. Sua defesa mais desmoraliza, pelo ridículo, do que eleva o moral do governo federal. Fica-se com a impressão de que foi plantado, na CPI, para conturbar e ser um clone de Bolsonaro, o presidente “cloroníquico”.
Entre os senadores críticos de Bolsonaro estão Aziz — cuja paixão maior é o Amazonas, e não prioritariamente o Brasil —, Renan Calheiros (MDB), o relator (tido, pelo bolsonarismo, como um “agente de Lula da Silva”), Randolfe Rodrigues (Rede), o vice-presidente da CPI, e Humberto Costa (PT-PE). O senador de Alagoas excede, por vezes, mas, no geral, é um “entrevistador” equilibrado, ainda que duro. O senador do Amapá é organizado e, quase sempre, preciso e, quando quer, ferino. O senador de Pernambuco, até por ser médico, é quase sempre consistente.
O senador Otto Alencar, do PSD da Bahia, se tornou uma estrela, não apenas por ser médico, mas também por ser bem-informado sobre o coronavírus, procedimentos médicos e medicamentos. A oncologista Nise Yamaguchi compareceu à CPI mais para defender Bolsonaro, com sua cloroquina, do que para se postar como uma agente da ciência. Pode-se sugerir que tentou usar a ciência para ser anti-científica. Não há a menor dúvida de que Otto Alencar excedeu nas perguntas — a agressividade era desnecessária —, mas, ao não ter suas perguntas respondidas a contento, reagiu e deixou o bolsonarismo-cloroquínico da médica em maus-lençóis. A “sumidade”, uma dos ases do suposto Ministério da Saúde “paralelo”, desapareceu ante a argumentação do político-baiano — que parece um personagem de Jorge Amado modernizado.
As senadoras Leila Barros (PSB-DF), Simone Tebet (MDB-MS), Kátia Abreu (Progressistas-TO) e Eliziane Gama (Cidadania-MA) brilham pelo equilíbrio, pelo raciocínio lógico e pela firmeza. São corajosas e preparadas. Não recuam ante a pressão dos colegas que se postam como adversários de seus argumentos. Ciro Nogueira tentou “enquadrar” e foi rapidamente “enquadrado” por Eliziane Gama e Simone Tebet.
Na média, a CPI está indo bem. O caráter circense, apontado por alguns, é natural e tem a ver com tempo midiático em que se vive. Com a transmissão ao vivo, por canais por assinatura e pela TV Senado, com a possibilidade de se assistir nos celulares, a CPI se tornou um espetáculo. Os telespectadores, que também são eleitores, estão de olho no que está acontecendo no Senado, e as pesquisas garantem que a maioria aprova a investigação. Lá, gostando-se ou não, está em discussão o país e, sobretudo, a vida dos brasileiros. Como se sabe, já morreram 500 mil pessoas — meio milhão — e, infelizmente, vão morrer muito mais. Exceto se a vacinação for acelerada, passando de 70% da população.
Marcelo Queiroga, o resiliente
Entretanto, o caráter político (e não há como não ser político), de matiz eleitoral (o que é mais problemático), tira um pouco o brilho da CPI. Veja-se o caso do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. No seu primeiro depoimento, o cardiologista estava no governo havia apenas um mês e só lhe faltaram perguntar se foi Nero ou Calígula quem incendiou Roma. No segundo depoimento, tratado com extrema agressividade — não por todos os senadores —, mal conseguia responder ao interrogatório.
Queiroga não é santo, ninguém é — nem os santos eram. Quer pureza? Por favor, não vá ao convento. Mas, quando um grupo de senadores sugere que Queiroga deve deixar a condição de “testemunha” para se tornar “investigado” pela CPI da Covid-500 mil, parece que há uma falta de percepção do que é o Brasil real.
Os senadores parecem acreditar, ou fingem acreditar, que Queiroga é um defensor da cloroquina, do tratamento precoce. Na prática, não é. Pelo contrário, tem dado mostras de que é contra. Porém, se confrontar o presidente Bolsonaro, terá de deixar o governo.
Por ser um médico categorizado, acostumado com debates médicos, como representante dos cardiologistas, Queiroga decerto sabe que é preciso ter paciência com os adversários e, sobretudo, com os aliados. Bolsonaro é, em parte, avesso ao que Queiroga está fazendo (mas, se o ministro for bem-sucedido, pode capitalizar eleitoralmente). Sem tirar nem pôr, o ministro está acelerando a vacinação dos brasileiros — quase 30% já receberam a primeira dose — e, aos poucos e com cuidado, desmontando o ministério “paralelo” que, de alguma maneira, secundava o pensamento anti-vacina, anti-máscara e anti-ciência de Bolsonaro.
Na semana passada, Queiroga disse, na cidade goiana de Cristalina, que o governo federal pretende vacinar todos os maiores de 18 anos, com pelo menos a primeira dose, até setembro deste ano. Ante um governo que se comporta como anti-vacina, a fala do ministro é oposta à de Bolsonaro.
Noutras palavras, no governo Bolsonaro há um ministro que, contrariando determinados setores, não fala em cloroquina — exceto, quiçá, para agradar o dono da caneta, a que nomeia e exonera — e aposta na imunização das pessoas.
Médicos, governadores e secretários da Saúde dos Estados parecem perceber em Queiroga o que alguns dos membros da CPÌ não percebem: um médico de fato empenhado — fora do gabinete; portanto, em ação — em vacinar os brasileiros.
Se aceitar a pressão de setores das oposições, alguns deles incrustados na CPI da Covid-500, e começar a criticar o caráter anti-científico de Bolsonaro, cuja formação escolar é deficiente (o que parece ideologia, é mais ignorância), o que ocorrerá? Queiroga será demitido.
Ao se manter no governo, optando por não criticar Bolsonaro — tem razão quando afirma que sua função não é ser “censor” do presidente (nem os militares, que são sensatos, conseguem controlá-lo) —, Queiroga não mostra necessariamente apego ao poder e ao cargo. Mostra, sobretudo, que é realista.
Se quer salvar vidas, se quer acelerar a vacinação, Queiroga deve concentrar-se na sua atividade-fim, e não perder tempo discutindo se Bolsonaro é a favor ou contra a vacina, se o presidente está correto ou não quando não usa máscara e participa de motossiatas pelo país. A atividade-fim, neste momento, é cuidar da vacinação, para reduzir o número de mortes, e, ao mesmo tempo, cuidar daqueles que estão internados e dos que receberam alta mas ficaram com sequelas (sobre as quais não se sabe muito, exceto o trivial, como a possibilidade de trombose).
A imprensa, como alguns comentaristas da GloboNews, bate sem dó em Queiroga, como se o ministro fosse um agente das trevas por servir a um governo que é tratado como “trevoso”, ou seja, da direita fundamentalista. Ocorre que, ao contrário do que afirmam alguns analistas, o médico é um agente da luz e está agindo para salvar vidas.
Pode-se sugerir, sem medo de errar, que a ação de Queiroga é anti-bolsonarista. Mas, se admitir que é anti-bolsonarista, embora o seja na prática, será exonerado ou terá de se demitir.
Distanciados do país real, talvez porque alguns estejam de olho nas eleições de 2022 — as presidenciais —, determinados senadores parecem ter o objetivo de “destruir” Queiroga. Se for isto mesmo, podem estar cometendo um erro clamoroso.
A “desconstrução” de Queiroga, como um ataque a Bolsonaro, não é útil ao país. Pode ser útil para desgastar o candidato Bolsonaro, o presidente que está nas ruas em comícios abertos, acreditando que, agindo assim, manterá conectado seu eleitorado fiel e poderá amealhar eleitores dispersos, sobretudo entre os pobres e parte das classes médias.
Porque, se Queiroga cair, o governo de Bolsonaro, na área de saúde, poderá piorar, no lugar de melhorar. Imagine um médico e político como Osmar Terra como ministro da Saúde? Seria um retrocesso. Há quem postule que o verdadeiro ministro da saúde não é Queiroga, e sim Bolsonaro. Mas tal ideia não procede. O ministro, mesmo lidando com a imensa má vontade do bolsonarismo, é um homem da ciência na questão da vacinação e do tratamento adequado aos pacientes. Agora, se o ministro for Osmar Terra, aí, sim, o ministro será Bolsonaro. Porque os dois têm identidade. Pode-se dizer que há pessoas que são médicas, mas não são, a rigor, agentes da ciência. O oncologista Drauzio Varella, exímio vulgarizador da ciência, diz que há médicos que, em termos científicos, são profusa e profundamente ignorantes.
O paradoxo do momento é: os que atacam Queiroga, por falta de bom senso ou uso instrumental da política — as eleições estão chegando —, longe de contrariar Bolsonaro, podem estar jogando no seu time.
Recentemente, contrariado com a posição pró-ciência de Queiroga — disse, na CPI, que baixou uma portaria para todos que trabalham no Ministério da Saúde usarem máscara e que a cloroquina não funciona para tratamento da Covid-19 —, Bolsonaro tentou humilhar seu ministro (como, às vezes, faz com Paulo Guedes — só faltando chamá-lo de Posto Tabajara). Chegou a falar num “tal de Queiroga” e perguntou se o pessoal que o ouvia conhecia o ministro.
O que quer Bolsonaro? Enquadrar Queiroga, assim como fez com o Exército, recentemente, ao obrigá-lo a não punir o “motossiático” general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde.
Não se trata de postular que Queiroga não deve ser criticado. Deve, sempre que for oportuno, que falhar como ministro. O que se está sugerindo é que alguns políticos e jornalistas talvez estejam caindo, indiretamente, na “armadilha” de Bolsonaro — contribuindo para uma possível “fritura” do ministro.
Cabe, portanto, insistir num ponto: a missão de Queiroga é vacinar todos os brasileiros e ele está lutando, bravamente, para conseguir seu intento. Seu objetivo não é tornar Bolsonaro um político iluminista, um apóstolo da civilização contra a barbárie e não-negacionista. É mais “fácil” vacinar as pessoas e cuidar das já doentes — fala-se em milhões de recuperados, o que é um fato, mas sem a menção de que vários terão sequelas por algum ou por muito tempo — do que tornar Bolsonaro um homem do século 21. O presidente é um populista de cariz autoritário, um estatista que convive com um ministro privatista, Paulo Guedes, um corporativista vigoroso e ninguém vai mudá-lo. Só os eleitores, com o uso de uma arma poderosa, o voto, poderão retirá-lo do poder, em outubro de 2022. Mas, transformá-lo, ninguém há de.
Queiroga está se revelando, como ministro, um realista absoluto, de uma resiliência que impressiona. Sua paciência é a mesma de Jó. Porque precisa ter paciência com Bolsonaro e o bolsonarismo — que o querem crítico das oposições e a anti-ciência — e com os senadores da CPI, que não percebem ou, mais certo, não querem perceber a singularidade do ministro, que está em campo, contrariando os mensageiros da morte, para salvar vidas, mesmo acoplado a um projeto tido como apocalíptico e autoritário.
Então, senadores, talvez seja a hora de frieza, a dos que leram Thomas Hobbes e Nicolau Maquiavel e de fato entenderam suas ideias. Ser realista e pensar no Brasil é preservar Queiroga e entender que o ministro é uma “peça” eficiente e favorável à vacinação dos brasileiros.
Transformar Queiroga de testemunha em investigado pode até gerar manchetes, render audiência, mas quem defende isto não está a serviço dos brasileiros. É, paradoxalmente, um agente, ainda que indireto, do bolsonarismo — que, a rigor, talvez queira ver o circo pegar fogo, assim como determinados oposicionistas, para os quais 2021 já acabou e 2022, com as eleições presidenciais, já chegou.
Os que acossam Queiroga acabam por dar razão a Bolsonaro. O presidente, por certo, estará dizendo ao ministro: “Você está fazendo o jogo dos ‘inimigos’ — aqueles que estão lhe atacando no Senado e na imprensa”. Os senadores vão cair no que se chamou acima de “armadilha” do presidente? Deve-se trocar um ministro racional por um bolsonarista raiz?