Lula e o Brasil ganham se o presidente não for pautado por Bolsonaro
30 julho 2023 às 00h00
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Contemos um micro fábula: um homem entrou num chiqueiro e começou a brigar com três porcos. Dali a uma hora estava tão sujo quanto os porcos. Um vizinho passou, olhou a pantomima e disse: “Por que será que os quatro porcos estão brigando?”
Pois é mesmo assim: se você entra no chiqueiro, chafurdando na lama, os porcos não vão parecer humanos, mas a tendência é que o humano seja visto como um porco.
De cara, avisa-se: não se está chamando o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro de porco (e, frise-se, os porcos merecem o respeito dos humanos, sobretudo porque estes, em larga escala, não respeitam os outros animais). Trata-se de navegar — é preciso — pelo terreno da linguagem, de seus usos (e preconceitos).
Recentemente, Bolsonaro disse: “A quem interessa, levem-se em conta alguns países europeus, países mais ao Norte, interessa eu ou um entreguista na presidência da República? Um analfabeto? Um jumento, por que não dizer assim?”
O presidente Lula da Silva redarguiu: “O que seria ofensivo seria comparar um jumento a ele [Bolsonaro], isso sim. Ofensivo aos jumentinhos que não fazem mal a ninguém”.
A resposta de Lula da Silva é inteligente e contém, por trás da ira, algum humor. E, claro, faz a defesa dos animais; no caso, o jumento.
É óbvio que nem Lula da Silva nem Bolsonaro são “jumentos”, ou seja, não têm nada de néscios. São inteligentes e astutos.
No Brasil há uma costumeira confusão: acredita-se, por vezes, que uma pessoa altamente letrada, digamos assim, é mais inteligente do que aquela que não é inteiramente letrada. Lula da Silva não tem curso superior, mas é dotado de uma inteligência ímpar. Como político, é de uma sagacidade rara. A conhecimento dele é de outra esfera: é extraído da vida. Vale uma ressalva: o presidente está sempre lendo bons livros, como a excelente biografia de Getúlio Vargas, em três volumes, escrita pelo jornalista e pesquisador Lira Neto.
Portanto, Lula da Silva não é “jumento” nem “analfabeto”. Pode-se não apreciá-lo, por razões ideológicas. Mas é um estadista, e, sublinhe-se, superior a Bolsonaro. O que não quer dizer que o ex-presidente não seja ardiloso. Pacóvios mesmo são aqueles que pensam que ambos são pascácios. Os dois têm aquela inteligência à flor da pele, refinada e temperada pela experiência e pela intuição.
Porém, mesmo sendo de uma sagacidade que surpreende, Lula da Silva está sendo enredado pela linguagem vulpina de Bolsonaro. Noutras palavras, o ex-presidente está pautando, aqui e ali, o discurso do presidente. A imprensa, como é natural, esbalda-se com a linguagem, útil para títulos e reportagens caça-cliques, de ambos. Num tempo em que impera o excesso quanto mais “braba” a linguagem, espécie de faca só lâmina, mais “sucesso” obtém — não importando a falta de substância e polidez.
Então, no lugar de “debater” (a rigor, debate não há) com quem está inelegível e faz o impossível para se manter na ordem do dia, na capa dos jornais e sites — inclusive na sua peregrinação pelo país (como se estivesse copiando o petista-chefe) —, Lula da Silva deveria se concentrar em falar de seu governo, do que já fez em sete meses e do que pretende fazer no curto (e médio) prazo.
Para além de “jumentismos” e de “jumentologias”, de enfrentamentos com Bolsonaro, o que Lula da Silva e o sistema de comunicação do governo federal deveriam fazer? Primeiro, esquecer Bolsonaro, na medida do possível. Segundo, arranjar um oponente, como os deputados André Janones ou Guilherme Boulos (polemistas ferozes e inteligentes), para trocar “jumentalidades” com o ex-presidente. Terceiro, focar naquilo que o governo já fez e está fazendo (finalizando obras importantes e dando início a outras, por exemplo)
Em vez de perder tempo com um debate fictício, gestado só para desgastar a imagem do governo e do presidente e criar coesão na direita, Lula da Silva tem de se concentrar naquilo que é de interesse da sociedade, quer dizer, de todos os brasileiros.
Lula da Silva faz um governo ruim? Pelo contrário, o governo é eficiente. O que não funciona muito bem é sua comunicação. Por isso a equipe precisa usar com mais perícia seu melhor comunicador — o próprio presidente. Dizem que fala alguns “bestidades” ou “bertoldices”. De fato, fala. Mas é preciso tomar cuidado para não transformá-lo num robô falante, pois isto reduziria o impacto de sua mensagem. O petista-chefe é um comunicador nato — o que se precisa é temperar aquilo que diz — e usa a linguagem básica dos brasileiros.
Na questão do crescimento econômico, o índice pode até não ser o esperado. Mas o país está crescendo e, sobretudo, a economia está estabilizada.
Quando se diz “estabilizada” se quer dizer que há um equilíbrio entre crescimento e desenvolvimento. O desemprego decorre, em certa medida, dos desacertos do governo anterior, e não do atual — que só tem sete meses. Mas, com a economia se fortalecendo — com novos investimentos internos e externos —, a tendência é pela queda do desemprego.
Na questão social — o desenvolvimento —, a gestão de Lula da Silva tem preocupações efetivas com os pobres. A assistência é uma questão de honra para o presidente — não tem a ver com politiquice. O que é preciso trabalhar, de maneira combinada com o assistencialismo, é a questão da inclusão social. As políticas, no âmbito da educação, já existem, mas precisam ser reforçadas.
A volta ao incentivo à universidade pública, assim como à pesquisa científica, é um dos acertos do governo Lula da Silva. No tempo de Bolsonaro, numa posição equivocada, derivada da ideologia da extrema direita, houve um esvaziamento das universidades federais e uma redução do investimento em pesquisa científica.
Na questão dos juros altos, Lula da Silva às vezes excede na crítica às decisões do Banco Central, mas é preciso mesmo abaixá-los. No momento, há deflação, quiçá em consequência dos juros altos. Mas a retomada do crescimento, a consequente geração de mais empregos e redução da miséria, exige mesmo juros menores. O presidente do Banco Central, o competente Roberto Campos Neto, certamente vai se tornar mais flexível. Não é apenas o presidente, o ministro Fernando Haddad e André Lara Resende que clamam por juros menos asfixiantes — é todo o país.
Há um aspecto capital, porém pouco lembrado. Diz-se que Lula da Silva defende o governo do ditador da Nicarágua, Daniel Ortega (que não respeita nem mesmo o papa Francisco, da Igreja Católica). O presidente equivoca-se, é certo. Mas, diferentemente do nicaraguense, é democrata.
Lula da Silva é de esquerda, a de matiz socialdemocrata, e nada tem de comunista. Sua linguagem enfática “esconde”, por assim dizer, um político moderado e sensato. Com o petista-chefe no comando, a democracia não corre nenhum risco. Tanto que não se fala mais em golpismo — palavra que não saía da pauta do governo anterior.
O fato de fortalecer a democracia, de acabar com a ideia de que um putsch era e é possível, já é um divisor de águas. A defesa da democracia, portanto o respeito ao equilíbrio entre os poderes Legislativo, Judiciário e Executivo, vale muito e justifica o governo como “positivo”.
O combate sistemático à invasão das terras dos povos originários, como os yanomamis, prova que a política de direitos humanos é eficiente. Os garimpos ilegais, que geram criminalidade, têm sido enfrentados com severidade pela gestão de Lula da Silva.
Política exterior do governo federal
Há quem postule que a política externa de Lula da Silva é equivocada. De fato, há equívocos no apoio à Venezuela, a Cuba, à Nicarágua e é condenável a posição ambígua em relação à guerra da Rússia contra a Ucrânia.
No caso da Ucrânia, é óbvio que é a potência invasora, a Rússia, quem deveria ser condenada pelo governo brasileiro. Porque a Ucrânia (terra de Gógol) não invadiu nenhum pedacinho da terra de Púchkin.
Entretanto, Lula da Silva não erra quando sugere que é preciso encontrar uma solução negociada. A Rússia só sairá da Ucrânia se houver um envolvimento concreto e direto da China — seu principal aliado estratégico. Mas a posição de Lula da Silva, ainda que ambígua — e no caso a ambiguidade “ajuda” Vladimir Putin —, pode colaborar para uma saída menos traumática. Putin sabe que terá de sair da Ucrânia, mas, desmoralizado, não sairá (e tem bombas atômicas, porque, se não tivesse, já teria sido atacado pelo Ocidente).
Quanto à Venezuela, Cuba e Nicarágua, Lula da Silva está equivocado. São ditaduras. No caso de Venezuela, há a motivação do petróleo e da possibilidade de reaver dinheiro brasileiro emprestado e de ampliar as relações comerciais? É possível. Lula da Silva, como dissemos, é de esquerda, mas, acima de tudo, é realista. E, frise-se, é nacionalista. Está pensando mais no Brasil do que nos aliados ideológicos.
No confronto com a União Europeia — talvez mais a França, um dos países mais protecionistas do mundo —, e em defesa do Mercosul, Lula da Silva está certo. A Europa não pode e não deve tratar as nações da América do Sul como neocolônias. Como maior e mais rico país da região, o Brasil tem de assumir a liderança nas negociações com as velhas e novas metrópoles.
Centrão e realismo político
Sobre a aliança de Lula da Silva com o Centrão, uma palavrinha rápida.
Diz-se, na imprensa e nas hostes nefelibatas, que Lula da Silva rendeu-se ao Centrão, como Bolsonaro. O fato é que o Centrão rende-se a todos os governos, com seus integrantes acomodando-se com habilidade e perspicácia.
A aliança entre o governo Lula da Silva — e qualquer outro — e o Centrão é incontornável. Não há escapatória. É a vida real cobrando seu preço, digamos. Os moralistas do irrealismo, que vivem no mundo da fantasia, querem que seja diferente, mas não é possível.
Não dá para trocar o Centrão (leia-se a turma do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, do pP) por um grupo de coroinhas bonzinhos, sérios e decentes 100%. Sabe por quê? Porque tais coroinhas, cheios de preconceitos com a vida real — aquela que se vive, e não se imagina —, não ganham eleições.
Então, aqueles que querem Lula da Silva articulando com um grupo “puro” deveriam se empenhar, em 2026, para eleger um Congresso composto de anjos. A democracia enfatiza: os políticos devem ser trocados — ou mantidos —, de quatro em quatro anos, pelos eleitores. Não é a opinião dos articulistas de jornais e sites que muda a realidade parlamentar. São os indivíduos com seus títulos de eleitor.