Nada é mais vulnerável e, ao mesmo tempo, resistente do que a democracia. Por ser aberta, permitindo o jogo e o choque dos contrários, às vezes é atacada até por aqueles que só ganham com as oportunidades que oferece. Na Itália fascista, o presidente Jair Bolsonaro, do PL, teria alguma chance de sobrevivência se se comportasse como outsider, ou seja, político não integrado ao fascio? Claro que não. Seria preso. Em Cuba, Lula da Silva poderia disputar eleição contra um membro do entourage da dinastia Castro? Não, evidentemente.

A democracia é tão “poderosa” que permite que aqueles que lhe são avessos sobrevivam sob sua “proteção”. E é resistente. Derrubam-na, como em 1937 e 1964, mas ela ressurge, e cada vez mais forte. Sua vulnerabilidade reside em si mesma, porque, de algum modo, sua força (abre espaço para todos, inclusive anti-democratas) é também sua fraqueza. Mas uma coisa é certa: enquanto as ditaduras morrem e nem sempre renascem, a democracia é como aquele bulbo que fica escondido debaixo da terra e, em seguida, reaparece, com folhas verdes e flores.

O Brasil vive sob democracia há 37 anos. Parece muito quando se trata da história patropi, e de fato é. A República começou, em 1889, com um golpe de Estado — e militar. Mas logo a democracia vicejou, com civis assumindo o comando da Presidência da República. Em 1930, por intermédio de um golpe conhecido como revolução, o grupo de Getúlio Vargas, do Rio Grande do Sul, e Antônio Carlos de Andrada, de Minas Gerais — com o apoio de militares (o tenentismo) —, assumiu o poder, derrubando o presidente constitucionalmente eleito, Washington Luiz. Em 1937, Vargas produziu um golpe virulento e o regime, que durou até 1945, ficou conhecido como Estado Novo. A democracia ressurgiu em 1945, com a queda de Vargas, por meio de um golpe de Estado — civis e militares irmanados. Aos trancos e barrancos, a democracia dominou o cenário político de 1946 até 1964, quando novo golpe, com militares associados a civis, arrancou do poder o presidente João Goulart.

Jair Bolsonaro e Lula da Silva: confronto entre esquerda e direita | Foto: Reprodução

A ditadura dos militares, bancados por condestáveis civis — como José Sarney, Petrônio Portella, Magalhães Pinto, Marco Maciel, Antônio Carlos Magalhães, Milton Campos, Bilac Pinto, Carlos Lacerda (rompeu e foi cassado) —, durou 21 longos anos. Caiu porque amadureceu tanto que apodreceu, o que levou o presidente Ernesto Geisel, um general, a dizer que decidira extingui-la porque havia se tornado uma bagunça.

E é isto: nada é perfeito, nem governos militares, que não conseguem controlar tudo e criar um paraíso na Terra. A democracia, a de 1964, era uma “bagunça”, então o regime militar criaria uma sociedade ordenada, o que não ocorreu. Em 1985, o país retomou o amor pela democracia, com a vitória de Tancredo Neves, o presidente, e José Sarney no Colégio Eleitoral. Por que o político maranhense, que havia servido à ditadura, na vice de Tancredo? Porque o “novo”, para se sustentar, às vezes precisa do “velho”. Sozinho, sem o amparo de personagens do regime anterior, Tancredo Neves poderia ter se tornado presa fácil de militares da linha dura, como o general Octavio Medeiros, que apostavam na continuidade da ditadura.

De 1985 pra cá, a democracia vem resistindo bem. É uma balzaquiana com carinha tenra de menina de 20 anos e a força de uma super praticante de crossfit. Frise-se que, há algum tempo, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, do PL, disse que, para fechar o Supremo Tribunal Federal, “basta um soldado e um cabo”.

Noutras palavras, para Eduardo Bolsonaro, e certamente para seu pai, Jair Bolsonaro, a democracia pode ser “extinta” com facilidade (e se ela vigora é por “concessão” do bolsonarismo). Só um néscio, ou um mal-intencionado, não percebe a gravidade do que disse o parlamentar. Porque o STF é um dos pilares da democracia. De alguma forma, é o Supremo — via ministros como Alexandre Moraes, Edson Facchin e Luís Roberto Barroso — que tem contido os arroubos autoritários de Bolsonaro.

Não é Bolsonaro que se mantém nas linhas da lei. É o Supremo que o força a caminhar dentro dos parâmetros da lei. Trata-se de um político autoritário que se mantém “democrata” sob pressão do Judiciário. Um presidente que precisa ser pressionado — por magistrados, pela imprensa e pela sociedade — para se comportar de maneira democrática não tem, evidentemente, apreço pela democracia.

O comportamento do Judiciário, como garantidor da democracia, é um caso a se estudar e certamente vai merecer, adiante, dissertações de mestrado e teses de doutorado.

Porém, se o Supremo age firme pela legalidade, o mesmo não ocorre com o Poder Legislativo, notadamente a Câmara dos Deputados (o Senado é um pouco melhor). Nem se pode sugerir que a “gestão” do presidente Arthur Lira é “omissa”. Porque, na prática, o Legislativo é que tem dado amparo ao governo de Bolsonaro. Portanto, é conivente.

Mas o Jornal Opção tem uma opinião heterodoxa sobre o Centrão do ministro Ciro Nogueira e do deputado Arthur Lira. De fato, Bolsonaro é autoritário e não tem apreço pela democracia — repetindo: se tivesse não atacaria o Judiciário, um poder de sustentação da sociedade democrática. Mas, de alguma maneira, o Centrão — pode até ser fisiológico, mas é democrático — contribuiu para manter o presidente nos trilhos da democracia. Deu-lhe governabilidade em troca da democracia. Parece absurdo. Mas vale insistir: o Centrão não tem nenhum apreço pela ditadura. Até porque, na hipótese de uma ditadura, se tornaria descartável. Em vez de pressionar, teria se submeter. Na ditadura, entre 1964 e 1985, políticos corruptos foram cassados ou tiveram de se enquadrar.

Sob pressão de Bolsonaro, a democracia patropi está às portas da morte? De maneira alguma. A sociedade brasileira é democrática e só uma minoria de extrema direita — parece maioria por ser barulhenta (como a esquerda em tempos idos) — prega o retorno de uma ditadura, com Bolsonaro como uma espécie de general que, na prática, só chegou a capitão. As lideranças das Forças Armadas são democráticas e não acompanhariam o presidente numa aventura golpista. Porque sabem que a ditadura, quando chega ao fim, passa a ser um fardo unicamente para os militares. Civis que a apoiaram mudam de lado, com desfaçatez, e passam a posar de democratas eternos, como fizeram José Sarney e Antônio Carlos Magalhães, o ACM (avô de ACM Neto). O Judiciário está firme, contendo as forças autoritárias. Como está agindo sem o apoio do Legislativo, fica-se com a impressão de que pratica ativismo político, o que não é fato. Na verdade, o que há é outra coisa: ativismo legalista. O que se está impondo é o império da lei e, portanto, se fazendo a defesa da democracia.

Em suma, a democracia brasileira é sólida, e talvez seja isto que incomoda o bolsonarismo. Os professores de Harvard Daniel Ziblat e Steven Levitsky escreveram um livro, “Como as Democracias Morrem” (Zahar, 272 páginas, tradução de Renato Aguiar), que se tornou best-seller. Os mestres têm razão: a democracia, sem uma proteção frequente, sem o apoio de políticos que a defendam como valor universal, pode soçobrar. Por isso é que se pode dizer que o pleito deste ano será entre civilização e barbárie. Aquele que quiser ver o país se tornar, cada vez mais, pária no contexto internacional, certamente irá com Bolsonaro. Aquele que quiser que o país permaneça democrático e conectado ao mundo tem outras escolhas.

Steven Levitsky, que tem examinado o fenômeno bolsonarista com atenção — o presidente soube agregar o apoio de uma direita que aos poucos foi se tornando extrema direita —, afirma que há um fato “novo” em jogo: políticos autoritários estão chegando ao poder, via eleições e não golpe, com o objetivo de corroer a democracia por dentro. Quer dizer, o país permanece com a aparência de democrático, mas aos poucos o governo vai adotando medidas autoritárias. Observando de certa perspectiva, fica-se com a impressão de que a democracia está mantida. Um olhar mais arguto dirá que, na verdade, está sob cerco. O objetivo de Bolsonaro — orientado por gente da estirpe do americano Steve Bannon — é instalar um regime autoritário aos poucos, portanto usando a própria democracia para miná-la.

O que se está dizendo, em todo este Editorial, é que a democracia está resistindo e, certamente, vai continuar a resistir. A eleição será realizada daqui a sete dias. Quem vencerá: Lula da Silva ou Jair Bolsonaro? O petista é o favorito, mas há sempre o imponderável. O que se pode dizer é que há uma grande e bela vitoriosa: a democracia. Ninguém, nem o bolsonarismo, conseguiu, até agora, derrotá-la. Permanece incólume. É uma rocha inquebrantável. Ao menos é o que os eleitores — pobres, classe média e ricos — estão dizendo.