No Brasil só ocorre golpe militar quando há alguma participação de civis, vivandeiras ou não. É crível que, quando presidente da República, Jair Bolsonaro conseguiu o apoio de vários militares para um golpe de Estado, porém não de todos os comandantes das Forças Armadas. Esbarrou em generais do Exército (não se tem golpe sem o Exército) democratas. Porém, há outro aspecto pouco enfocado, porque a amoralidade do Centrão é, por vezes, chocante.

Pode-se sugerir que um dos diques contra o golpismo de Bolsonaro foi o Centrão do senador Ciro Nogueira e do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, ambos do pP. É possível criticar a dupla por vários motivos, porém nenhum deles se entusiasmou com o golpismo postulado pelo bolsonarismo.

É provável que, mesmo com relativo apoio de militares, o que faltou a Bolsonaro, para colocar a ideia do golpe em ação — até minuta havia —, foi a falta de apoio de civis, como a turma do Centrão.

Rui Costa: o presidente não decide e queima o ministro | Foto: Reprodução

Alguns integrantes do Centrão podem ser “acusados” de várias cousas, como apetite por poder e dinheiro público. Entretanto, para o bem da democracia, não são, ao menos no geral, golpistas.

Aliança política e cargos

Mas o Centrão é incontornável? Tudo indica que sim. Como o país é democrático, Arthur Lira vai permanecer no comando da Câmara ao menos até o final de 2024. Assim como não é possível trocar o povo, aquele que o elegeu, assim como elegeu o presidente Lula da Silva, do PT.

Assim como Lula da Silva tem de tolerar Arthur Lira, este tem de tolerar aquele — com suas diferenças.

Seguindo o norte petista, a imprensa tende a considerar Arthur Lira como um “extorsionário” político. Mas há aspectos a considerar. Primeiro, Lula da Silva pode ceder até onde quiser, por exemplo na questão dos cargos, como o Ministério da Saúde. Porém, uma vez concedidos os cargos, tem como fiscalizar a ação dos indicados do presidente da Câmara e do pP. Se não forem republicanos, pode exonerá-los.

Segundo, não há aliança política que não passe pela negociação de cargos. Tanto que alguns partidos aliados de Lula da Silva já fizeram suas indicações. O “problema”, portanto, não é apenas a volúpia por cargos do Centrão.

Então, se quiser governar, Lula da Silva tem de descer do pedestal e articular com os líderes do Centrão, notadamente o empoderado Arthur Lira.

É necessário o apoio de 257 deputados para aprovar um projeto de lei complementar. A esquerda aglutina 140 deputados na defesa do governo de Lula da Silva. O blocão liderado por Arthur Lira pode barrar, se quiser, os projetos da gestão petista.

Arthur Lira costuma dizer: “Sou um facilitador, mas a obrigação de colocar a base no plenário para votar é tarefa do governo, não minha”. O deputado tem razão em parte. Desde sempre, quem opera, às claras ou nos bastidores, é o governo. Mas também não diz a verdade “completa”. De nada adianta Lula da Silva operar uma base relutante e, do outro lado da corda, o presidente da Câmara trabalhar contra.

Sentindo-se empoderados, ante a relativa fragilidade do governo Lula da Silva, os liristas-centrãozistas planejam encaixar, na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), um dispositivo que obriga o governo federal a fazer o pagamento das emendas parlamentares seguindo a ordem cronológica.

Alexandre Padilha: bem-visto pelos políticos, mas não atende seus pleitos | Foto: Euza Fiúza/ABr

O argumento do Centrão, de acordo com reportagem do “Estadão”, é plausível. Seus integrantes postulam que os ministros do governo priorizam, na liberação dos recursos das emendas, seus redutos eleitorais.

Publicamente, Arthur Lira diz que “não”, mas, nos bastidores, estaria exigindo o Ministério da Saúde para seu grupo político. O motivo é o orçamento da pasta: 188,3 bilhões de reais. O pP está de olho grande tanto nos recursos — e não se está sugerindo que pretende assaltá-los — e no próprio poder do ministério. A principal barreira é o “nomão” da ministra Nísia Trindade, do Instituto Oswaldo Cruz. Retirá-la, sobretudo para negociar com o Centrão, prejudicará a imagem do governo Lula da Silva.

Ministério de intocáveis, como Nísia Trindade e Marina Silva, é sempre um problema para gestões que, em nome de governabilidade — que é real —, precisam fazer negociações políticas. Se o Centrão continuar travando o governo, prejudicando-o como um todo, Lula da Silva terá como manter a ministra da Saúde até o fim de 2026? Muito difícil. Pode optar entre “queimar” sua imagem ou, então, “queimar” o governo.

Lula da Silva e a ministra da Saúde, Nísia Trindade: cai ou não? | Foto: reprodução

Nísia Trindade está indo bem no ministério. Porque, além de competente, é decente. É uma ministra que engrandece o governo de Lula da Silva. Entretanto, se o Centrão está mesmo disposto a derrubá-la, e se garantir governabilidade para o petista-chefe, dificilmente será mantida no cargo. Se cair, será uma pena, claro.

O líder do União Brasil na Câmara dos Deputados, Elmar Nascimento, que toca na “banda” de Arthur Lira, disse algo que impressiona pelo realismo: “Nós sabemos que não vai ser como era na gestão Bolsonaro, mas o governo tem de fazer alguns gestos para ampliar a base porque, se não for assim, a temperatura vai aumentar”.

Elmar Nascimento não deu detalhes de como era no governo de Bolsonaro. Dada a tibieza deste, o Centrão possivelmente mandava e desmandava — de “porteira fechada” — nos ministérios que chefiava. O deputado da Bahia faz uma ressalva — “sabemos que não vai ser como era na gestão de Bolsonaro” — que pode ser positiva para o governo Lula. É provável que esteja sugerindo que, como o PT está escaldado pelo mensalão e pelo petrolão, os centrãozistas terão de ir com menos sede ao pote. Há, portanto, uma ideia de contenção.

Nem tudo é fisiologismo nos reclames dos deputados, e não se está falando apenas daqueles que jogam no time do Centrão. Governos, e não apenas o de Lula da Silva, são mesmo lentos na liberação das “demandas reprimidas” dos parlamentares. Tanto que, de acordo com o “Estadão”, o ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, um realista moderado, conversou com vários ministros e pediu pressa no atendimento aos pleitos dos parlamentares. A pressão tem a ver, inclusive, com cargos. O deputado indica, o nome é aprovado, mas não sai a nomeação. Até membros do PT reclamam disso.

A prova de que Arthur Lira não é contornável — e não adianta colocar a Polícia Federal na porta de assessor — é uma fala do senador Jaques Wagner, do PT da Bahia: “Lira tem influência porque construiu uma liderança. Ele foi reeleito com 464 votos de deputados, inclusive do PT”. Frise-se que a Câmara tem 513 parlamentares.

“O presidente da Câmara está disputando o espaço dele de poder, que Lula considera natural. É óbvio que a gente preferiria que as coisas fossem mais fáceis, mas, na democracia, nunca são”, afirma, realista, Jaques Wagner. O que ele está sugerindo é que Lula da Silva e Arthur Lira precisam encontrar um denominador comum — jogando pelas regras de ambos, não apenas de um deles, como cada um quer, em tese.

Petismo articula mal e Lira deita e rola

O consultor político João Henrique Hummel sugeriu ao “Estadão” que Lula da Silva e seu entourage subestimaram a expertise política de Arthur Lira. “Em momento algum o governo prestou atenção no fato de que não estava conseguindo construir a maioria. Caiu no jogo do Lira que, cada vez mais, deu corda para o PT se enforcar”, afirma. A força do Executivo às vezes leva a isto: a subestimar o poder do Legislativo.

João Henrique Hummel frisa que Lula da Silva corre risco de sofrer impeachment. Para evitar isto, precisa aproximar-se da centro-direita. “Ele vai ter de sentar e achar uma pauta com o centro, com o agronegócio, porque, a cada dia que passa, fica mais na mão do Lira”, assinala o consultor. Registre-se que “há sete pedidos” de impeachment de Lula da Silva protocolados na Câmara.

O deputado Lindbergh Farias, do PT, anota: “Logo no início do ano, o governo poderia ter montado um bloco com o MDB e o PSB, mas decidiu não fazer isto. Foi um grande erro. Com essa opção, o Executivo deixou de ser um polo organizador de sua base e terceirizou tudo para o Lira. Agora, tem de recuperar o protagonismo”. O comentário do parlamentar tem lógica, mas é incompleto. Na verdade, para recuperar o protagonismo, se isto é mesmo possível, o PT tem de compor com a centro-direita, e não apenas com o Centrão. Se não o fizer, terá de cair (ou permanecer) no colo de Arthur Lira.

O cientista político Carlos Melo, do Insper, assinala que “o problema é que Lula achou que as regras do jogo eram as mesmas de quando ele dirigiu o país, de 2003 a 2010, e compôs a base com a distribuição de ministérios. Mas tudo mudou”.

A rigor, Lula da Silva, o de hoje, está mais parecido com Dilma Rousseff, quando esta era presidente, do que com o próprio Lula da Silva de 2003 a 2010. Hoje, fala muito, tenciona no discurso público e parece articular mal nos bastidores. Fica-se com a impressão de que falta ao presidente sintonia com o presente e, por causa disso, ministros como Rui Costa — o “Ruim Problema”, criticam até aliados — e Alexandre Padilha, que é eficiente e diplomático, ficam inteiramente perdidos. Falta norte ao governo, sobretudo na articulação política, e por isso profissionais, como Arthur Lira, deitam e rolam.

Então, repetindo: só será possível contornar Arthur Lira se for possível trocar o povo — os eleitores —, importando o da Suécia, da Noruega ou da Dinamarca. Ou Lula da Silva dialoga com os homens reais, do Brasil real, ou terá de continuar “tocando” a Lira do Arthur.