Lula, Bolsonaro, a corrupção, a impunidade e o mito da sociedade perfeita
03 julho 2022 às 00h00
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Não há a mínima possibilidade de se construir uma sociedade perfeita, exceto, quem sabe, na literatura. Mas é possível reduzir a impunidade
As sociedades e os indivíduos são e sempre serão imperfeitos. Mesmo assim, os seres humanos continuarão falando num “mundo de iguais”. As utopias, tais como as fantasias, são combustíveis que fazem mulheres e homens continuarem vivos, ativos, tocando suas vidas. Um dia, afinal, o paraíso pode chegar — quem sabe nas “asas” da Mega-Sena, um dos jogos do maior “cassino” do país, a Caixa Econômica Federal (a de Pedro Guimarães, o suposto assediador de mulheres).
As tragédias das utopias soviética e chinesa
A grande utopia do século 20, o comunismo, também se tornou sua maior tragédia — ao lado do nazismo da Alemanha de Adolf Hitler.
Os comunistas chegaram ao poder na Rússia em 1917 — com Lênin, Trótski e Stálin. Há um aspecto às vezes negligenciado: a rigor, ao contrário do que comumente se diz, não derrubaram o czarismo. Ao se tornar a força hegemônica, a esquerda arrancou do governo grupos que tentavam instalar, a duras penas, um modelo democrático no país.
Mas os comunistas prometiam muito aos russos. Primeiro, retirar o país da Grande Guerra (ainda não era chamada de Primeira Guerra Mundial, porque a Segunda Guerra Mundial começou em 1939). Segundo, construir uma sociedade justa. Parecia um excelente negócio: o paraíso na Terra, e não mais no Céu.
Os seres humanos, na prática, não querem ser iguais, mas, se não forem liberais, apreciam o discurso de que é possível constituir uma “sociedade de iguais. É a grande utopia da humanidade: o impossível.
O comunismo na União Soviética não edificou uma “sociedade de iguais”. Na “luta” para conquistá-la — o “sonho” de muitos era verdadeiro, quer dizer, acreditava-se na pregação —, os comunistas mataram entre 25 milhões e 30 milhões de pessoas. Muitas morreram no Gulag — que era um sistema similar aos campos de concentração dos nazistas, mas muito menos estudado e criticado — e outras foram fuziladas. Fazendo coro ao que escreveu o dramaturgo alemão Georg Büchner, as revoluções são como Saturno — devoram seus próprios filhos.
Pois na União Soviética, em nome de um “futuro radioso”, os comunistas começaram matando adversários políticos — que eram tratados como “inimigos”. Depois, num amplo processo de autofagia (que repetiu a Revolução Francesa de Danton e Robespierre), iniciaram a matança de “aliados”, como Zinoviev, Kamenev, Bukhárin, Trótski, entre outros. Diz-se que os fins justificam os meios. Mas quem está mesmo certo é o filósofo italiano Norberto Bobbio: os meios podem corromper os fins.
O comunismo durou 74 anos na União Soviética, com custo altíssimo, sobretudo em termos de vidas. Não se alcançou o paraíso na Terra, ou seja, a “sociedade de iguais”. A utopia naufragou. O filósofo anglo-letão Isaiah Berlin escreveu que sacrificar o presente em nome de uma grande ideia — isto é, do futuro — é sempre um perigo. A tendência é que, ao piorar o presente, não se conquiste um futuro brilhante.
Na China de Mao Tsé-tung não foi muito diferente. O comunismo chinês matou cerca de 70 milhões de pessoas.
Porém, com a típica habilidade dos chineses, o comunismo se mantém vivo, com 73 anos. A sobrevivência da esquerda na China tem a ver com a mudança de percurso mais no campo econômico do que político.
Ao perceber que o país estava naufragando, seguindo os passos da União Soviética e dos países do Leste Europeu, Deng Xiaoping deu uma guinada, digamos, para a direita. Decidiu olhar para o exemplo de Singapura, liderada por Lee Kuan Yew, o extraordinário primeiro-ministro do país.
Homem de rara inteligência e pragmatismo, Deng Xiaoping concluiu que o comunismo não continuaria no poder se fosse mantida a planificação exacerbada e com empresas estatais ineficientes. Então, para manter o comunismo vivo em terras chinesas, criou-se um sistema híbrido: comunista na política, no controle da sociedade e do mercado, e capitalista na economia. Fala-se, grosso modo, em “socialismo de mercado” e em “capitalismo de Estado”.
O fato é que, sob o comunismo, a China se tornou a segunda maior potência global, atrás apenas dos Estados Unidos, e acima do Japão e da Alemanha. Não se pode ignorar, porém, que os chineses vivem sob uma ditadura que prende e condena aqueles que fazem críticas públicas mais duras e articuladas ao sistema político.
Entretanto, a tendência é que o sucesso econômico — que não existia na União Soviética (que sobreviveu, nos estertores, às custas da exploração predatória de petróleo e gás) — mantenha o comunismo no poder por vários anos. Não deixa de ser curioso que o forte sistema estatal põe em marcha uma operação que seria mais complicada noutras economias capitalistas — “corrige” as distorções típicas do capitalismo, o que impede, por vezes, a quebradeira das cadeias produtivas. A crise numa determinada área é extirpada, como se fosse um tumor localizado, o que impede a contaminação generalizada da economia. Mas uma coisa o comunismo não conseguiu: acabar com a corrupção, que grassa em todo o país e em todas as instâncias.
Há uma pergunta pertinente, mas que quase nunca se faz: por que, se foi responsável por assassinatos em larga escala — pode se falar em genocídio —, o comunismo é tratado de maneira mais branda do que o nazismo? Uma resposta talvez plausível: o comunismo, ao falar em “sociedade de iguais”, cristalizou a ideia de que seria o sistema que, digamos assim, iria redimir os homens. Ao falar em nome do “bem da humanidade”, na “salvação” dos homens — e, conforme o filósofo John Gray, o marxismo é uma espécie de religião laica (que mistura Cristianismo, a ideia de paraíso e salvação; Iluminismo, uma crítica racionalizadora e uma espécie de guia para a mudança; e Positivismo, a ideia de progresso contínuo-linear) —, os comunistas “ganharam” salvo-conduto para cometer as piores atrocidades da história. Se o futuro será “bom” para todos — os “iguais” — não importa se o presente for uma desgraça para muitos.
O que se quis dizer acima, com a citação da União Soviética e da China — e, frise-se, os comunistas primevos realmente acreditavam que era possível construir uma sociedade justa —, é que a sociedade perfeita não pode ser construída e que, na luta para edificá-la, corre-se o risco de se constituir ditaduras que sacrificam o presente de milhões de pessoas. Mas o futuro radioso, a utopia, nunca chega.
A invencível corrupção, a impunidade e o social
Saltemos para o Brasil, que vive sob democracia há apenas 37 anos. Mesmo com o palavrório ameaçador do presidente Jair Bolsonaro, que pressiona os demais poderes, sobretudo o Judiciário, para parecer mais forte do que é — e, afinal, a tinta de sua caneta está acabando —, a democracia patropi permanece sólida. As instituições funcionam e, apesar das ameaças (lobo! Lobo! Lobo! — vive dizendo o “menino-crescido” que é Messias), o líder do PL não é responsável por nenhuma ação que, em termos práticos, tenha contribuído para colocá-las no chão. O Supremo Tribunal Federal tem lado uma lição frequente ao Legislativo, algo acomodado, sob a necessidade de se defender a democracia, as instituições.
Fala-se que Bolsonaro adoçou a boca dos militares, com milhares de cargos e salários que o mercado privado não paga, porque planeja um golpe de Estado. Pode até ser que esteja mesmo planejando um putsch, se perder a eleição para Lula da Silva, do PT, em 2 de outubro ou 30 de outubro deste ano. Mas os militares certamente não vão sacrificar a história das Forças Armadas para “salvar” Bolsonaro. Porque sabem que, como os passarinhos, o presidente passará — e as Forças Armadas ficarão. O chefe do Executivo se tornará, com o tempo, uma espécie de rodapé da história do país. Um rodapé que incluirá a informação de que, no seu governo, morreram quase (ou mais de) 700 mil pessoas em decorrência da Covid-19. Será ressaltado também pelo fato de ameaçar a democracia. Seu filho Eduardo Bolsonaro, um deputado federal, disse que, para fechar o Supremo Tribunal Federal, basta um soldado e um cabo. Como sabe, nenhum democrata diria isto.
O que se vai discutir a seguir é outra questão, correlata, quiçá: a corrupção.
Em 2018, há quase quatro anos, Bolsonaro derrotou Fernando Haddad, do PT, e se tornou presidente do Brasil — a 10ª maior economia do mundo (o país recuperou posições recentemente). Hoje, percebe-se, com nitidez, que o político da direita não tem estofo administrativo e cognitivo para liderar um país com tal relevância global. Nem mesmo parte dos capitalistas mais poderosos — industriais e banqueiros — pretende apoiar sua reeleição. O presidente, se tinha, perdeu conexão com a nação que dirige.
Bolsonaro foi eleito com o discurso de que era preciso “limpar” o país, ou seja, a sociedade comprou sua fala de que o PT, tendo corrompido o governo federal, não merecia vencer pela quinta vez seguida. Noutras palavras, a crítica dura (e pertinente) à corrupção, portanto, ao petismo de Fernando Haddad, Lula da Silva e Dilma Rousseff, foi a principal eleitora do integrante da direita que se descobriu, aos poucos, orgânica. A direita ganhou militância organizada (e não apenas digital), pela primeira vez (nem a UDN tinha grupos tão aguerridos), e conseguiu enfrentar a militância petista (o que o tucanato não conseguia). Nas redes sociais, se tornou, por momentos, dominante — convencendo milhares (milhões, talvez) de pessoas, muitas das quais jamais havia se preocupado com ideologias, a aderirem à causa da direita contra a esquerda.
A corrupção era e é o principal problema do Brasil? É possível acabar, de vez, com a corrupção? A resposta para as duas questões é “não”.
O Brasil teve escravidão e, 134 anos depois da abolição da escravatura, os negros não foram incorporados à sociedade. Permanecem excluídos. Certo, há brancos pobres, que também não são inseridos. Mas os negros, além da exclusão, são vítimas de racismo (uma outra maneira, brutal, de exclui-los). Então, a chaga da desigualdade social — abissal — é um problema que poucos governos levaram a sério. Programas assistenciais são necessários, porque visam a questões emergenciais — dizem respeito à sobrevivência imediata —, mas não são amplamente inclusivos. Para incluir de fato os pobres é preciso forjar um sistema educacional público de alta qualidade (e, sim, as cotas nas universidades são necessárias; a história do mérito é fachada para exclusão), além de ampliar a qualidade do SUS, que já é bom, mas precisa ser mais ágil em alguns atendimentos e procedimentos. Às vezes a demora é tanta que o paciente morre.
Acabar a corrupção, aquilo que todos querem, levará ao fim das desigualdades sociais, ou à sua redução (como nos país nórdicos, por exemplo)? Não. A corrução é um problema, mas seu fim, ou sua diminuição, não é um grande degrau para resolver inteira ou parcialmente os problemas sociais do país. O Brasil, assim como qualquer outro país, não vai construir uma “sociedade de iguais”, mas precisa trabalhar para criar uma sociedade menos injusta, portanto mais inclusiva, indo muito além da adoção de programas de assistência social.
Outra questão é a violência da sociedade brasileira. O número de assassinatos é assustador. O que fazer? Uma polícia eficiente — o que quer dizer que deve usar mais a Inteligência do que a força bruta — pode contribuir para melhorar a segurança pública. O crime organizado funciona às vezes como um Estado paralelo.
Pois, se foi eleito para combater a corrupção — problema que irrita todos os brasileiros, notadamente as classes médias —, Bolsonaro não conseguiu contê-la em seu governo. Aliás, por vezes, fica-se com a impressão de que faz oposição ao governo, eximindo-se de toda e qualquer responsabilidade pelos problemas decorrentes de suas ações.
Não há provas de que Bolsonaro seja corrupto, ainda que a riqueza aparente de pelo menos um de seus filhos chame a atenção. Mas há, ou houve, corrupção em seu governo. Milton Ribeiro caiu do Ministério da Educação — setor vital para a redução da pobreza (que aumentou no governo de Bolsonaro) — sob suspeita de corrupção. Agora, com sua prisão (já foi liberado pela Justiça) e novas revelações, parece evidente que, sim, há corrupção no governo federal. Como se sabe, não basta não roubar — um presidente não pode permitir que roubem em seu governo.
Em nenhum momento, Bolsonaro pôs para fora de seu governo um auxiliar, como Milton Ribeiro, acusado de corrupção, seguindo investigação de órgãos vinculados à Presidência da República. Pelo contrário, só demitiu depois da publicação pela imprensa e sob pressão de aliados políticos (sobretudo, pasme, do Centrão) e militares.
A respeito de Milton Ribeiro, o amigo de dois pastores supostamente venais, Bolsonaro chegou a dizer que colocaria, não a mão, e sim a cara no fogo. O presidente teria tentado protegê-lo e, até, o avisado da iminente da operação da Polícia Federal que levou à prisão do ex-ministro.
Em seguida, o repórter Rodrigo Rangel, do portal Metrópoles, publicou que Pedro Guimarães, como presidente da Caixa Econômica Federal, assediava mulheres. Os indícios são muito fortes — tanto que Bolsonaro exigiu que o “amigo do peito” pedisse demissão (frise-se: não o demitiu).
A ação de Pedro Guimarães, como assediador de mulheres, é, a rigor, uma faceta da corrupção — a moral. O executivo assediava mulheres, num local público, porque se sentia protegido pelo amigão Bolsonaro. O presidente teve a chance de demiti-lo, mas, por algum motivo — quiçá solidariedade —, preferiu passar a imagem de que o gestor da Caixa pediu exoneração.
De acordo com as pesquisas de intenção de voto, as mulheres são, eleitoralmente, as maiores adversárias da reeleição de Bolsonaro. Pois, quando o presidente teve a chance de defendê-las, indo à televisão e condenando de maneira veemente o comportamento de Pedro Guimarães, fez exatamente o contrário: praticamente calou-se. Nomeou uma mulher, Daniella Marques, para substitui-lo — o que, se é um bom sinal, não é suficiente. De certa maneira, ao não promover uma exoneração exemplar, o presidente demonstrou alguma solidariedade com o assediador de mulheres.
Portanto, fica evidente que a corrupção não era um problema “do” PT. É um problema entranhado na sociedade brasileira, notadamente na política.
A corrupção é eterna e segue firmes em todos os países — em alguns mais e, noutros, menos. Pode-se sugerir, e não em tom de blague, que é uma das “instituições” globais mais eficientes e resistentes.
Se está provado que havia corrupção no governo do PT e que há corrupção no governo de Bolsonaro — novas bombas tendem a explodir —, como o tema será exposto na campanha deste ano? Bolsonaro dirá: “Lula, você é corrupto”. Lula da Silva dirá: “Bolsonaro, tu é corrupto”. E, como irmãos siameses, certamente irão para o segundo turno, numa guerra sem fim… perdendo tempo com agressões inúteis e sem apresentar um projeto para o Brasil e um projeto para reduzir a pobreza.
Uma “sociedade inteiramente igualitária” parece ser impossível e o combate à corrupção é possível, mas não para acabá-la, e sim para reduzi-la. E fica a pergunta: se o combate à corrupção é tão importante, por que petismo e bolsonarismo se “uniram”, direta ou indiretamente, para acabar com a Operação Lava Jato? Por que se “uniram” para reforçar a impunidade das elites? Este é o Brasil real — acima do “mel” dos discursos da esquerda e da direita, que são, às vezes, muito parecidas. As críticas ao Judiciário e à Imprensa feitas por Lula da Silva e Bolsonaro diferem apenas no tom…