Longe de mostrar força, Bolsonaro exibe fraqueza ao demitir militares
04 abril 2021 às 00h00
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Hábeis, os políticos do Centrão perceberam que, ao gerar uma crise militar, o presidente Jair Bolsonaro indica não ter apoio sólido e irrestrito nos quartéis
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) informa que o Brasil tem 147,9 milhões de eleitores. As mulheres, 77.649.569, representam 52,49% dos eleitores. Há 70.228.457 eleitores homens. A diferença, pró-mulheres, é de 7.421.112 (superando toda a população de Goiás). Curiosamente, pesquisas atuais apontam que Bolsonaro é mais rejeitado pelas mulheres do que pelos homens.
Na eleição de 2018, há dois anos e três meses, Jair Messias Bolsonaro, então filiado ao PSL, obteve 57.797.847 votos (55,13% dos votos válidos). Curiosamente, pesquisas apontam que Bolsonaro é mais rejeitado pelas mulheres do que pelos homens.
O segundo colocado, Fernando Haddad, conquistou 47.040.906 (44,87% dos votos válidos). A diferença entre o postulante da esquerda e da direita ficou em 10.756.941 votos.
A força política de Bolsonaro deveria advir de sua votação, sobretudo de sua vitória. Pois ele recebeu a maioria dos votos válidos. Ao assenhorar-se do Palácio do Planalto, o presidente deixou de ser representante de 57,7 milhões para ser representante de 147,9 milhões de eleitores. Ou melhor, é o porta-voz de 211.755.692 brasileiros.
Paradoxalmente, sugerindo que não saiu do palanque, Bolsonaro fala para guetos, como se fosse representante deles e não de 211,7 milhões de pessoas.
Ideologia não é moeda na economia real
A política exterior de um país não pode se assentar em ideologias — seja de direita ou de esquerda. A linha dominante deve ser a do pragmatismo, sobretudo na questão de negócios. O maior parceiro comercial do Brasil é a China. Entretanto, a política estabelecida por Ernesto “Limbo” Araújo, ao impor a ideologia como eixo seminal, transformou a China numa adversária, quase uma inimiga. Produtores de commodities (soja, carne, ferro etc.) passaram a criticar o governo, mostrando que o politicídio do chanceler — cuja demissão foi comemorada por 98% do PIB da terra de Celso Furtado — iria contribuir para travar a economia do país, que depende, em larga escala, do comércio com os chineses. A China, cujo presidente é o habilidoso Xi Jinping, negocia com quem lhe interessa comercialmente, não importando se os governos são de esquerda ou de direita (se raciocinasse ideologicamente, estaria negociando basicamente com Cuba e Venezuela; como é racionalista, prefere negociar com Brasil e Estados Unidos, ambos capitalistas). Dinheiro, sabe-se fora do governo Bolsonaro, é não-ideológico. Os Estados Unidos de Joe Biden — o país mais rico do mundo — também não é do agrado de Ernesto Araújo e Bolsonaro, viúvas tropicais do ex-presidente Donald Trump.
Talvez porque tenha passado seu tempo de ministro brincando a respeito de Milton Friedman e Friedrich Hayek serem mais importantes do que Karl Marx e Lênin (os quais são vistos pelos chineses como meros retratos na parede da história), Ernesto Araújo não tenha a mínima noção do quadro real da economia internacional. É provável que o diplomata, com seu latinório bacharelesco (ou latinocídio, dada uma citação apropriada pelos fascistas italianos) — Bolsonaro devia ficar exasperado, pois tem dificuldade com a própria língua —, seja um dos quadros mais fracos intelectualmente da direita patropi. Mas seu problema não é apenas intelectual — e ninguém conhece nenhum texto de sua autoria que seja referencial para alguma coisa. O fato é que não consegue entender como o Brasil está inserido na economia global e o que deve fazer para se fortalecer. Experiência e pragmatismo são cruciais para o país voltar a se colocar entre os 10 países mais ricos do mundo. No mundo da Lua, a turma de Ernesto Araújo, acometida de “ideologitismo”, prefere discutir se o vírus é chinês e não se é preciso comprar vacinas para salvar vidas. O Peter Pan da direita teve de ser deixado para trás pelo aliado Bolsonaro, que está se livrando de parte da turma retrô do guru Olavo de Carvalho. Deveria agradecer à senadora Kátia Abreu. Os soldados invernais da Guerra Fria são prejudiciais ao governo e, por extensão, ao Brasil.
Resta saber até quando resistirá Ricardo Salles, o ministro mais do “Meio” do que do “Ambiente”. Sua imagem no exterior e no Brasil é das piores. Ele, como Ernesto Araújo, só tem estatura para ser ministro num governo de Bolsonaro.
Neste momento, amplos setores das elites admitem que não votarão em Bolsonaro no segundo turno. Não tem a ver com ideologia, e sim com o fato de que, em pouco tempo, o presidente perdeu conexão com o país real (aquele que não perde tempo com palavras de efeito produzidas pelos “mictórios do ódio”). Recentemente, um empresário disse que, no segundo turno, se ficarem Lula da Silva, do PT, e Bolsonaro, sem partido, votará nulo. Em 2018, apoiou o anti-petista. Depois de se tornar “pária” no exterior, o presidente está se tornando pária na terra que o psicanalista italiano Contardo Calligaris escolheu para viver e se tornar, de alguma maneira, brasileiro. Apreciava até a música sertaneja de Zezé Di Camargo e chegou a tentar explicá-la.
Vigência do presidencialismo de coalizão
Retomando o início do Editorial, deve-se admitir que Bolsonaro é representante do povo brasileiro, independentemente de muitos não gostarem dele, de seus ministros e de suas políticas e ideias. Mas é um dos poucos presidentes na história do país — em regimes democráticos — a não se preocupar com o povo, no geral (a sociedade civil), optando por dialogar com guetos e nichos da sociedade que já o apoiam. Tudo indica que, no caso do social, vai se aproximar mais do povão, seguindo o mesmo caminho do PT de Lula, criador do Bolsa Família, que, com outro nome, será revigorado pelo bolsonarismo. É uma tática eleitoral, pois Bolsonaro não é humanista.
Por não se interessar, talvez por falta de formação política e, até, senso de história — parece não cuidar de sua imagem para a história, que, tudo indica, será ruim, até muito ruim (já são quase 330 mil mortos pela pandemia do novo coronavírus) —, em estabelecer, de maneira ampla, uma conexão com a sociedade, para além dos ressentimentos de parte da classe média (que não se sente representada por ninguém, daí o apego ao recém-“salvador da pátria”), Bolsonaro, desde o início do governo, alinhou-se aos militares.
Como não é dado a elaborar um discurso — não há nenhum refinamento no que fala —, Bolsonaro não explicita o motivo da relação estreita com militares, como se o governo fosse militarizado, quase uma “democradura”.
É possível sugerir que Bolsonaro tem vocação para ditador — daí um filho, Eduardo Bolsonaro, ter dito que, para fechar o Supremo Tribunal Federal, um dos pilares da democracia, “basta um soldado e um cabo” —, mas, felizmente, não é ditador.
Ao se cercar de militares, fica-se com a impressão de que estava, e talvez esteja, em busca de paizões, de referências, ao menos em termos técnicos e estratégicos. Não tendo preparo para governar um país complexo como o Brasil — a 12ª economia do mundo e decisivo para as principais potências, como China e Estados Unidos —, Bolsonaro levou Paulo Guedes para a economia (chamava-o de Posto Ipiranga) e, avaliando que não poderia se contaminar com a politiquice do Congresso, cercou-se de generais com o objetivo de criar um dique — um Muro de Berlim — para conter gente da estirpe do senador Ciro Nogueira e do deputado federal Arthur Lira, ambos do Progressistas.
Apesar de ter passado quase a metade de sua vida na Câmara dos Deputados, parece que Bolsonaro não entendeu o que significa presidencialismo de coalizão, ou seja, não compreendeu que não se governa sem o apoio de senadores e deputados federais. O sistema não é parlamentarista, mas é semi-parlamentarista. O governo federal não sai do lugar se não constituir uma relação relativamente estreita com o Congresso.
Colocado na articulação política, o general Luiz Eduardo Ramos — contando com o apoio do general Walter Braga Netto —, percebeu aquilo que os filósofos britânicos Isaiah Berlin e John Gray sempre discutiram: não dá para trocar os homens reais pelos homens ideais, porque, a rigor, estes não existem. Há os homens possíveis, que respondem ao seu tempo, trabalhando para mudá-lo de maneira gradativa ou, pela violência, apressadamente.
Com rosto bonachão, Ramos é um militar experimentado. Aos 64 anos, é um realista. Na articulação com o Congresso, o qual nunca frequentou como político, descobriu logo o que funciona e o que não funciona. O Centrão, para ficar tão-somente no grupo dominante, quer cargos, poder e dinheiro. Desde que obtenha isto, tal grupo político facilita as coisas para o governo federal.
Nas conversas com Bolsonaro, Ramos deve ter deixado claro qual era o jogo do real (não há outro, exceto para os nefelibatas). Mudou-se o jogo, aderindo-se ao realismo. Por isso, ao se aproximar do Centrão, Bolsonaro viabilizou a eleição de Arthur Lira para presidente da Câmara dos Deputados. O objetivo era e é duplo: evitar qualquer tentativa séria de impeachment e ampliar a governabilidade (o dia a dia do governo e a aprovação das reformas).
Bolsonaro e Ramos, que não são neófitos em política, sabem que o pacto com o Centrão é faustiano e nunca há um alto grau de satisfação. A negociação é permanente. Os centrãozistas querem mais espaço no governo e, por isso, chegaram a articular até mesmo contra o general Ramos, que, paradoxalmente, se movimentou para ampliar o espaço das tropas insaciáveis de Ciro Nogueira, Ricardo Barros e Arthur Lira no governo. Os três mosqueteiros são políticos profissionais e, importante, são democráticos. Podem até ser fisiológicos, mas não querem saber de golpe de Estado, de ditadura civil-militar. Não aceitam a ideia de que Bolsonaro pode se tornar um Putin dos trópicos.
O Centrão é aquele leão (na verdade, a leoa é a grande caçadora) que, ao perceber a vulnerabilidade da presa, ataca e arranca nacos cada vez maiores. Seus principais articuladores sabem, porém, que, cercado por militares, Bolsonaro não vai permitir que seus líderes tomem conta por completo do governo. A ida da deputada federal Flávia Arruda (do PL de Valdemar Costa Neto) — aliada de Arthur Lira — para o cargo de ministra-chefe da Secretaria de Governo prova a força do Centrão, que não vai, no entanto, se contentar com tal cargo. Os próceres do núcleo duro do Congresso querem ministérios que liberem dinheiro, que paguem fornecedores e empreiteiras.
Bolsonaro rosna mais e morde menos
Na semana passada, para mostrar força, Bolsonaro demitiu o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva — um general tanto decente quanto democrático (não admite golpe de Estado e as Forças Armadas envolvidas em política) —, e os comandantes do Exército, Edson Pujol (um democrata), da Marinha, Ilques Barbosa, e da Aeronáutica, Antônio Carlos Moretti Bermudez. Os dirigentes das Forças Armadas iriam pedir demissão, em solidariedade a Fernando Azevedo, quando foram notificados pelo novo ministro da Defesas, Braga Netto, que estavam “demitidos”. Trata-se de uma descortesia. Mas a palavra não explica o que está acontecendo.
O que ficou claro é que Bolsonaro não tem o apoio dos militares — os generais, o brigadeiro e o almirante demitidos são altamente representativos das tropas do Exército, da Aeronáutica e da Marinha — para nenhuma aventura golpista. O alto comando deu provas de que é democrático e não apoia qualquer ruptura institucional. Braga Netto, um general correto e democrático, vai chefiar Forças Armadas modernas que preferem ficar nos quartéis e totalmente fora dos palanques. Talvez tenham lido o que disse o presidente Ernesto Geisel. Perguntado por que, como general-presidente, havia decidido “matar” a ditadura, o militar gaúcho disse em alto e bom som: “Porque era uma bagunça”. Sim, a ditadura era o caos… havia se transformado naquilo que coronéis e generais combateram em 1964. Pós-ditadura, quando os civis, como Antônio Carlos Magalhães e José Sarney, livraram suas caras e histórias, posando de novos-democratas, os militares ficaram com a imagem queimada ante a sociedade. Seriam os “únicos” responsáveis pela ditadura. Agora, que a imagem é positiva, porque os militares são democratas e respeitam a Constituição, Bolsonaro vai conseguir levá-los para alguma aventura? Não vai, não. Não há notícia na história do Brasil de algum “capitão” que tenha comandado as Forças Armadas — sobretudo o Exército — para alguma patacoada golpista. Como presidente, Bolsonaro é o “comandante” das Forças Armadas, mas, frise-se, não é general.
O que se sabe, agora, é que Bolsonaro não tem o apoio integral das Forças Armadas, exceto para as lides constitucionais. Ao demitir os quatro militares, longe de mostrar força, revelou fraqueza. Fundamentalmente, os brasileiros ficaram sabendo que, se partir para uma tentativa de golpe, o presidente — estaria querendo se tornar uma espécie de Juan Domingo Perón? — poderá ser “brecado”.
O detalhe é que o Centrão, de Ciro “Oiapoque” Nogueira a Arthur “Chuí” Lira, percebeu que Bolsonaro agora “rosna” mais do que “morde”. A aliança com o Centrão produz um paradoxo: é bom para a democracia — porque sinaliza que Bolsonaro fez, de fato, uma opção pelo legalismo — mas pode ser ruim para os cofres públicos. O governo de Bolsonaro poderá se tornar parecido com os governos dos petistas Lula da Silva e Dilma Rousseff. A “voz” da realidade sugere que a direita está “copiando” a esquerda.
De resto, a crise recente foi altamente positiva e instrutiva para o país: temos Forças Armadas democráticas. É o que importa. O resto passa, às vezes célere. Bolsonaro terá de enfrentar as urnas daqui a um ano e seis meses. Os brasileiros poderão mantê-lo ou trocá-lo. É a democracia funcionando.