O deputado federal Ronaldo Caiado, do DEM, “entregou-se” ao candidato do PMDB a governador de Goiás, Iris Rezende. Mas pode perder suas bases eleitorais. Mas o que sai chamuscada de fato é a ideia de que se trata de um político coerente

Iris Rezende e Ronaldo Caiado: o que une os dois políticos? Não se trata de um projeto para modernizar Goiás, e sim de um profundo ressentimento em relação ao governador Marconi Perillo
Iris Rezende e Ronaldo Caiado: o que une os dois políticos? Não se trata de um projeto para modernizar Goiás, e sim de um profundo ressentimento em relação ao governador Marconi Perillo

Nunca houve uma mulher como Gilda, do filme homônimo, e nunca houve um comunista como Luiz Carlos Prestes, ao menos no Brasil. Não à toa o escritor Jorge Amado, ao biografá-lo, o chamou de “Cavaleiro da Esperança”.

Na década de 1930 — que talvez tenha sido mais importante para o mundo do que a década de 1960, com seu 1968 emblemático —, Prestes convenceu o Partido Comunista da União Soviética, leia-se Stálin, que era possível fazer a revolução no Brasil. Assim, o Comintern criou uma estrutura mínima, com alguns agentes internacionais, para bancar a derrubada do presidente Getúlio Vargas e instalar um regime comunista no maior país da América Latina. Prestes, embora pessoalmente íntegro, era de uma miopia política extraordinária. Na verdade, o Partido Comunista local não tinha estrutura alguma e as massas não estavam organizadas (e mesmo interessadas) para uma transformação social semelhante à Revolução Russa de 1917. A visão estratégica limitada de Prestes gerou suas táticas suicidas.

Em 1935, com o fracasso da Intentona Comunista, também conhecida como Rebelião Vermelha, os comunistas brasileiros e internacionais começaram a ser presos, torturados e, até, mortos. Prestes e sua mulher, a alemã Olga Benario — uma agente do Comintern (Internacional Comunista) que havia sido enviada ao Brasil para observar e vigiar o Stálin patropi, mas se apaixonou por ele —, foram presos.

Como havia identidade entre setores importantes do governo de Getúlio e a ditadura de Adolf Hitler, a judia Olga Benario foi entregue aos nazistas, em 1936, e foi executada num campo de concentração, em 1942. Sua filha com Prestes, Anita Leocádia Prestes, sobreviveu e mora no Rio de Janeiro. Tornou-se historiadora e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Fez doutorado e escreveu livros sobre a Coluna Prestes e a atuação política do pai.

Oito anos depois da execução de Olga Benario, Prestes subiu ao palanque de Getúlio, sugerindo que, em 1950, o líder político do Rio Grande do Sul representava o setor moderno da política brasileira. De fato, Getúlio era candidato contra o brigadeiro Eduardo Gomes, filiado ao partido mais golpista da história brasileira, a União Democrática Nacional (UDN). Portanto, a aliança de Prestes e Getúlio era tática, ou seja, visava eleger um presidente mais, digamos, progressista e que tinha menos contencioso com os trabalhadores. Prestes passou uma borracha no passado e esqueceu que Getúlio havia sido o principal responsável por deportar sua mulher para a Alemanha de Hitler. Não se pode culpar apenas Filinto Müller, que não tinha autoridade suficiente para entregá-la aos nazistas. O leitor pode escolher se Prestes — ao “esquecer” Olga e ficar com a “causa”, a circunstância política — deve ser tachado de realista ou de oportunista. Deixemos que cada leitor faça sua escolha.

Frise-se que, na mesma década em que Getúlio enviou Olga Benario para a Alemanha, Prestes autorizou o assassinato da jovem Elza Fernandes, apontada como delatora de comunistas. Elza foi morta, mas era inocente, não havia denunciado ninguém. Ao se contar a história da alemã Olga costuma-se esquecer a da brasileira Elza, cujos prenomes guardam ligeiras semelhanças, com suas duas vogais e duas consoantes, e começando, ambos, com vogal e terminando com vogal e com duas consoantes no meio, uma delas, o ‘ele’, igual. Mas uma das mulheres, cercada pelo glamour comunista, é lembrada, foi objeto de livros (apologéticos) e filme (tão lacrimoso que, ao terminar de assisti-lo, os espectadores ficam com a impressão de que o comunismo é Shangri-lá). A outra, relembrada apenas num livro assombroso e verdadeiro do jornalista Sérgio Rodrigues, praticamente não é mencionada. Sua história é uma ausência. Vale a pena ler “Elza — A Garota”. Saiu pela Editora Nova Fronteira.

Renegando a história

Deixemos Prestes, Olga Benario, Elza Fernandes e Getúlio de lado e migremos para a década de 1960. Há quase 50 anos, a revista “Realidade” enviou uma equipe de reportagem para Goiânia com o objetivo de traçar o perfil de um político jovem, com pouco mais de 30 anos, que encantava o país. Iris Rezende, do MDB, era prefeito de Goiânia. Logo depois, a matéria foi publicada, com o sugestivo título de “Nasce um líder”. Era, de fato, um título apropriado. Iris havia se tornado um político tão consistente, tão vocacionado para o poder público, que possivelmente seria eleito governador de Goiás. Nenhum nome da ditadura o derrotaria. No entanto, as forças situacionistas da política de Goiás, tendo à frente o governador Otávio Lage — que pretendia fazer o sucessor —, mas também integrantes da família Caiado, como Emival e Leonino, não o queriam no páreo. Por isso Iris Rezende foi cassado. Em eleições indiretas, Leonino Caiado se tornou governador, atropelando o governador Otávio Lage, que trabalhou pela indicação de outro nome.

A rivalidade entre as famílias de Jalles Fontoura (PSDB e ex-DEM), prefeito de Goianésia, e de Ronaldo Caiado, deputado federal pelo DEM, derivam, em larga medida, da crise gerada pelo fato de Otávio Lage (pai de Jalles), embora governador, não ter conseguido indicar seu sucessor e do fato de que foi atropelado pelos Caiado (que haviam sido atropelados por Otávio Lage na eleição de 1965), que, com o apoio da linha dura militar, bancaram Leonino Caiado para governador. Otávio Lage deu o troco em 1982. O então governador Ary Valadão sugeriu o nome de Brasílio Caiado como candidato a governador (as eleições já eram diretas), mas Otávio Lage, mais entrosado em Brasília (o protetor de Ary Valadão, o general Golbery do Couto e Silva, havia caído em desgraça e não estava mais no governo do presidente João Figueiredo), conseguiu ser o candidato — perdendo exatamente para Iris Rezende, que foi eleito com uma avalanche de votos.

Agora, 45 anos depois de 1969 e 32 anos após 1982, Goiás assiste, talvez bestificado, uma aliança entre o ex-prefeito de Goiânia Iris Rezende, do PMDB, e Ronaldo Caiado, do DEM. Qual é a ideia básica que os une? Talvez o “rancor” contra o governador Marconi Perillo. Em termos estritamente de realpolitik, querem arrancar o tucano-chefe do poder — o que é inteiramente lícito. Mas a união entre o udeno-caiadismo e o irismo-peemedebismo é mesmo surpreendente. É como se Iris e Caiado estivessem renegando a história — com Iris esquecendo Pedro Ludovico e Mauro Borges e Caiado olvidando Antônio de Ramos Caiado, Emival Caiado, Brazílio Caiado e Leonino Caiado. Todos, diga-se de passagem, de rara integridade pessoal e política.

Pelo menos desde a década de 1990, Ronaldo Caiado assumiu-se como a voz mais agressiva contra o domínio do peemedebismo — que durou de 1983 a 1998 — na política de Goiás. O deputado federal, no início no PFL e depois no DEM, fez, talvez, as críticas mais duras ao peemedebismo, inclusive a Iris Rezende. Em 1994, candidato a governador, Caiado fez uma campanha massacrante contra o candidato de Iris Rezende, Maguito Vilela (PMDB). A linguagem era pesada, visceral, pois o deputado é assim. Em 1998, mais uma vez, Caiado bateu duro no PMDB, agora apoiando Marconi Perillo, do PSDB, que foi eleito. Nas eleições seguintes, Caiado continuou sendo um dos críticos mais contundentes do PMDB.

Iris diz que não mudou, que permanece o mesmo político de sempre, por isso confrontou e atropelou Júnior Friboi, que foi praticamente expurgado do PMDB. Se é assim, mudou Caiado? Como se sabe, o democrata é um político ético, competente. Porém, a se aceitar a tese de Iris, de que não mudou, deve-se admitir que Caiado mudou? Pode-se tachar Caiado de oportunista? Não, porque não é um político de matiz oportunista e não usa a política para fazer negócios. Porém, ao aceitar compor com um adversário histórico, a quem combateu durante toda a sua carreira política, é preciso admitir: por algum motivo, Caiado mudou. O motivo talvez seja, insistamos, o “rancor” contra o governador Marconi Perillo. Ao se tornar um político hegemônico, o tucano contraria adversários e mesmo aliados.

Apresentemos uma questão problemática. Até 15 dias atrás, Caiado enviava emissários para conversar com aliados de Marconi, sugerindo que o democrata-chefe queria ser candidato a senador na chapa comandada pelo tucano-chefe. Um jornalista, um pré-candidato a deputado federal (José Mário Schreiner) e um ex-prefeito de uma cidade do interior (Marcos Cabral) dialogaram com frequência com marconistas. O presidenciável Aécio Neves, do PSDB, o presidente nacional do DEM, José Agripino Maia, e o prefeito de Salvador, ACM Neto (DEM), também negociaram para estabelecer uma composição Marconi-Caiado. O objetivo era um só: levar Caiado para a chapa majoritária do governador. Até certo momento, as negociações estavam caminhando bem — e o governador Marconi disse ao Jornal Opção que queria fazer por Caiado em 2014 o que o democrata havia feito por ele em 1998. No desenvolvimento das articulações, um político dedicou-se a elaborar um dossiê contra Caiado e o espalhou na base. O dossiê continha críticas duras do democrata ao governador. Isto inviabilizou a aliança? Não só. Havia receio, por exemplo, que, uma vez eleito senador, Caiado não acompanharia Marconi no segundo turno. Havia outro problema: eleger um senador, que fica oito anos em Brasília, mas não tê-lo como aliado permanente, talvez não fosse uma articulação política pertinente. Daí que Marconi mudou de rota e bancou a chapa majoritária com o deputado federal Vilmar Rocha, do PSD, e o advogado José Eliton, do PP, na vice. Havia um rompimento cinza entre Marconi e Caiado — não atava nem desatava. Agora, o rompimento cristalizou-se — o que, no fundo, é positivo para a política e para os dois políticos. Em 2010, vale acrescentar, Caiado puxou o DEM para Iris, antecipando a aliança atual, mas o partido não quis segui-lo e o pressionou para compor com Marconi — daí José Eliton, então filiado ao partido Democratas, ter sido indicado para vice do tucano.

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Helio de Sousa, deputado estadual, e Wilder Morais, senador: os dois políticos não foram consultados por Ronaldo Caiado e vão continuar apoiando a candidatura de Marconi Perillo para governador. O primeiro deve apoiar Vilmar Rocha pra senador

Esfacelamento partidário

O que é o PMDB de Iris e o que é o DEM que Caiado entrega ou tenta entregar ao peemedebista? O PMDB está esfacelado, pois não queria e ainda não quer Iris para governador, considerando que não representa a renovação e que se tornou, ao longo do tempo, o mais fiel freguês eleitoral de Marconi. Nesta eleição, Iris “leva” o PMDB, mas não peemedebistas significativos. Eles podem até subir no palanque do decano peemedebista, mas dificilmente serão cabos, sargentos e generais eleitorais convictos. O prefeito de Aparecida de Goiânia, Maguito Vilela, por uma questão de lealdade, vai apoiar Iris — motivado ou não. Ele era o principal articulador da candidatura do empresário Júnior Friboi. Mas políticos como Júnior Friboi, Marcelo Melo, Leandro Vilela, Frederico Jayme, Daniel Vilela, Humberto Machado, Pedro Chaves, Eronildo Valadares, Sandro Mabel não têm qualquer entusiasmo com a candidatura de Iris. Alguns podem apoiá-lo, mas vão se preocupar muito mais com seus próprios projetos (acrescente-se que Mabel já liberou 80% de suas bases para o candidato a deputado Alexandre Baldy, do PSDB). A rigor, o PMDB é uma casa em ruínas, com as pessoas mudando-se para outras casas, mas alguns gatos pingados decidindo permanecer entre os escombros.
Um marqueteiro recomendou a Aécio Neves que fale um pouco mais do futuro e de esperança aos brasileiros. No caso de Iris Rezende, fica-se com a impressão de que não pensa em futuro e que, como uma criança, só tem presente. Se derrotado agora, como não pensa em futuro, nos aliados, vai entregar aos jovens do partido, como Leandro Vilela, Daniel Vilela, Waguinho Siqueira, Samuel Belchior, Lívio Luciano e Agenor Mariano, um partido demolido. Isto, claro, se não for eleito. Se for eleito, a turma de Júnior Friboi terá de mudar de Goiás, porque Iris será implacável com todos eles. Sua implacabilidade é conhecida dos políticos goianos. E mais: Caiado e Armando Vergílio acreditam que, se não “mandavam” no governo tucano, vão mandar num possível governo de Iris? Se acreditam nisto, se tornaram crianças políticas.

Caiado costuma dizer que “segue” aquilo que decide o DEM. Não é bem assim. Ou não é sempre assim. O DEM quer compor com Marconi, porque está com o governador há 16 anos. Mas Caiado decidiu, praticamente sozinho, que o partido deverá compor com Iris Rezende. O resultado é que Caiado entrega-se a Iris, mas não entrega o DEM ao peemedebista. O DEM dará seu tempo de televisão a Iris, mas e os votos dos líderes e militantes democratas? Os eleitores do DEM são exclusivamente eleitores de Caiado e, agora, de Iris? Talvez seja possível sugerir que Iris pode ajudar Caiado a ser eleito senador, mas dificilmente Caiado ajudará Iris a ser eleito governador. Porque o DEM real — o dos líderes e militantes — não apoia Iris. Apoia Caiado, é certo, mas não o peemedebista. O deputado federal não levou em conta nem mesmo as divergências no interior do Estado entre DEM e PMDB — que não têm como se entrosar, pois são adversários históricos. As desavenças chegam ao plano pessoal. O udeno-caiadismo não fecha com o pessedismo-peemedebismo-irismo.

Detalhe: o deputado estadual Helio de Sousa e o senador Wilder Morais, ambos do DEM, vão apoiar a reeleição do governador Marconi Perillo. Mais uma saia justa para Caiado tentar descosturar.

Palanque esquizofrênico

Como se sabe, Ronaldo Caiado e o PT são adversários figadais. A rigor, o petismo articulou para “destruir”, ou ao menos imobilizar, seu principal rival ideológico, o partido Democratas.

Primeiro, desmoralizou-o ao arrancar de sua boca o discurso da ética (ressalve-se que, da hecatombe, Caiado saiu incólume).

Segundo, com o apoio da enguia não-ideológica Gilberto Kassab, o governo do PT contribuiu, de maneira decisiva, para criar o Partido Social Democrático, com o objetivo esvaziar o DEM, que se tornou, com a criação do PSD, um partido nanico, sobrevivendo às custas de suas estrelas políticas, como Caiado, Agripino Maia e ACM Neto.

Em Goiás processa-se um quadro que talvez seja possível, com perdão de certa imprecisão terminológica, nominar de esquizofrênico. Portanto, a partir de agora, pede-se ao leitor que tente visualizar uma cena que merece, quem sabe, ser caracterizada como esdrúxula ou surrealista.

Digamos que a presidente Dilma Rous­seff, do PT, e o senador Aécio Neves, do PSDB, decidam fazer comícios no mesmo dia em Goiânia — um de manhã e outro à tarde. De manhã, no palanque de Dilma, aparecem, de um lado, Iris, Maguito Vilela, ambos do PMDB, e, do outro lado, os petistas Antônio Gomide, pré-candidato do PT a governador, e o deputado federal Rubens Otoni. Iris e Gomide são adversários e disputam o governo, mas terão de subir no palanque da presidente, em busca de identidade com seu governo, pois Dilma Rousseff não virá para comícios separados. Mas o que Iris vai fazer com Caiado e Armando Vergílio, que apoiam Aécio Neves para presidente da República? Terá de escondê-los. Iris certamente discursará, mas não poderá apresentar sua chapa majoritária. O que o eleitor dirá desta salada, talvez indigesta?

À noite, porém, ocorre o comício de Aécio Neves. O eleitor possivelmente ficará surpreso ao ver, lado a lado com o tucano mineiro, o governador Marconi Perillo, candidato à reeleição, Caiado e Armando Vergílio. Mas no programa de televisão Caiado e Armando Vergílio não aparecem ao lado de Iris? É muita coerência!

Caiado, um homem de bem e um deputado federal da mais alta qualidade, pode apoiar quem ele quiser, é certo. Mas, ao compor com Iris, sem que um projeto (para ampliar o desenvolvimento e o crescimento de Goiás) os una — exceto o ressentimento de ter sido preterido na chapa majoritária da aliança marconista e velhos rancores —, renegou parte de sua história. Sua imagem de político coerente está ligeiramente corroída. Ao entregar o DEM a Iris, Caiado não estaria contribuindo para dinamitar, de vez, o partido que dirige há alguns anos? O PT, apoiado pelo PMDB, quase liquidou o DEM. Iris, com sua premência pelo presente e descaso pelo futuro, pode representar a pá de cal para o partido dirigido por Caiado.