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Violência mas sem golpes de Estado

Nos seus 248 anos como país independente, os Estados Unidos podem se orgulhar de não ter uma mancha autoritária — um golpe de Estado, uma ditadura — na sua história.

Mas a violência é irmã da história do país, como, aliás, de quaisquer outras nações. A Guerra Civil Americana — Guerra de Secessão — opôs o Sul (confederado) ao Norte (federado, ianque). Morreram cerca de 600 mil americanos na batalha.

Ao final da guerra, com o Sul arrasado pelos generais do presidente Abraham Lincoln — Ulysses S. Grant e George Sherman na linha de frente —, muitos americanos sulistas vieram para o Brasil. Eles fundaram cidade, como Americana, em São Paulo, e se tornaram agricultores no Rio de Janeiro e no Pará. O Lee de Rita Lee deriva de Robert Lee, o grande general oponente de Abe Lincoln. A família da cantora e compositora fugiu dos Steites — da implacável perseguição aos confederados — no século 19.

Abraham Lincoln: presidente que aboliu a escravidão e foi assassinado | Foto: Reprodução

Ao término da guerra, Lincoln, leitor de Shakespeare e autor de seus próprios discursos — belos e concisos (o crítico literário Edmund Wilson sugere que pode ser sido o pai da literatura enxuta dos Estados Unidos, precursor de Mark Twain e Hemingway) —, foi assassinado por um sulista. Ao abolir a escravidão, o presidente ganhou inimigos figadais.

Apesar do assassinato de Lincoln, um presidente diferenciado, os Estados Unidos permaneceram democráticos. O país foi reconstruído e sedimentado como capitalista pela e pós-Guerra de Secessão. A batalha, que durou de 1861 a 1865, ao criar um único país, unido à força, gestou uma moderna sociedade industrial e também produtora de alimentos em alta escala.

Em 1881, dezesseis depois do assassinato de Lincoln, o presidente James Garfield sofreu um atentado e morreu ao ser operado. O presidente William McKinley foi assassinado pelo anarquista Leon Czolgosz, em 1901.

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Golpe de Estado contra John Kennedy

Em 1963, o presidente John Kennedy foi assassinado por Lee Oswald. Fala-se no “dedo” da Máfia (do capo Sam Giancana), de Cuba e da União Soviética. Em 1968, quando planejava disputar a Presidência, Bob Kennedy, irmão de Jack, foi morto.

O presidente Ronald Reagan, da direita republicana, sofreu um atentado a bala, em 1983, mas sobreviveu.

O excelente livro “Irmãos — A História Oculta dos Anos Kennedy” (Casa das Letras, 490 páginas, tradução de Gonçalo Praça), do jornalista David Talbot, conta uma história quase nunca relatada sobre os Estados Unidos.

David Talbot diz que, na década de 1960, um grupo de extrema-direita — com militares, inclusive generais, e civis — tramou um golpe de Estado contra John Kennedy e chegou a sugerir que o presidente da Suprema Corte, Earl Warren, fosse enforcado.

John Kennedy demorou, mas conseguiu desarmar o golpe da extrema-direita. A história está contada entre as páginas 91 e 96 do livro de David Talbot (há uma edição brasileira da obra comentada).

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Philip Roth e Alexis de Tocqueville

O escritor Philip Roth escreveu um romance, “Complô Contra a América” (Companhia das Letras, 482 páginas, tradução de Paulo Henriques Britto), no qual imagina a vitória do piloto de avião e coronel Charles A. Lindbergh na disputa, na década de 1940, contra o presidente Franklin D. Roosevelt.

A história real é outra: Roosevelt foi eleito quatro vezes presidente, não sendo derrotado nenhuma vez.

Na ficção, Lindbergh é eleito. Simpático ao regime de Adolf Hitler, que o premiou com uma medalha, foi “eleito” com uma bandeira: impedir que os Estados Unidos participassem da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Sem os Estados Unidos na guerra, a Inglaterra e a União Soviética teriam condições de derrotar a Alemanha nazista de Hitler, Göring (que mantinha ligação com Lindbergh), Himmler e Goebbels? Possivelmente, não.

Então, a “vitória” de Lindbergh — espécie de precursor de Donald Trump — “não” foi positiva para o mundo democrático. Sem os Estados Unidos — com seus recursos fabulosos — e a União Soviética, com seus incontáveis soldados, a Europa teria se tornado nazista. Quem sabe, todo o mundo. O Japão, por exemplo, era pró-nazista, assim como a Argentina de Juan Domingo Perón (o grande protetor dos nazistas que fugiram da Europa depois da guerra).

No século 19, o francês Alexis de Tocqueville viajou para os Estados Unidos com o objetivo de conhecer seu sistema judiciário. Mais tarde, escreveu um livro alentado sobre o país, com o título de “A Democracia na América” (Edipro, 768 páginas, tradução de Júlia da Rosa Simões).

Tocqueville viveu entre 1805 e 1859 (apenas 53 anos) e escreveu brilhantemente sobre o antigo regime e a Revolução Francesa de 1789 (notando, como o dramaturgo alemão Georg Büchner, que a revolução é como Saturno: devora seus próprios filhos).

O livro sobre os Estados Unidos o tornou conhecido globalmente. Porque é uma das primeiras e mais agudas interpretações do país fundado por George Washington, Thomas Jefferson e, entre outros, John Adams (segundo presidente americano, de uma família extraordinária).

Perspicaz, e antes de outros pesquisadores, Tocqueville notou a vitalidade da democracia americana. Uma democracia sem golpes de Estado, com transições pacíficas — o que, como se disse acima, não exclui a violência contra políticos.

A democracia americana era (e é) forte porque suas instituições eram (e são) sólidas. O país, goste-se ou não de sua política externa — do apoio a ditaduras —, vive sob o império das leis.

O respeito às leis — às instituições que as representem e defendem — é que assegura a estabilidade democrática. Tocqueville ficou mesmerizado com isto. Os embates são duros, as críticas são acerbas, mas a democracia, o império da lei, é mantida como uma espécie de deusa, acima de tudo.

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Democracia vai resistir a Donald Trump

Na semana passada, Donald Trump, do Partido Republicano, foi eleito presidente dos Estados Unidos, derrotando Kamala Harris, do Partido Democrata.

Quem assistiu o “Em Pauta” e o “Estúdio I”, da GloboNews, durante os meses que antecederam a eleição americana, deve ter pensado: seus comentaristas erraram. Não é bem assim. A maioria deles estava torcendo (com certa razão) por Kamala Harris e, por isso, não buscaram entender, com profundidade, os bastidores da sociedade americana, que é uma mistura de progressismo e conservantismo, hora predominando um, ora predominando o outro. Porque se trata de uma sociedade que aprecia experimentar a diferença — daí John Kennedy, Bill Clinton e Barack Obama, no campo progressista, e, no campo conservador, Ronald Reagan, George W. Bush e Donald Trump. Diga-se: nenhum dos citados é de esquerda. Um esquerdista não seria escolhido para gerir um império tão poderoso quando o americano.

Kamala Harris perdeu para Trump mas fica na história dos Estados Unidos | Foto: Reprodução

Não deixa de ser curioso que Donald Trump tenha perdido para um homem branco, Joe Biden, e derrotado duas mulheres — uma branca e uma negra. Talvez isto diga algo fundo na sociedade americana — o preconceito contra as mulheres, numa avaliação, equivocada e misógina, de que não teriam condições de governar um império, ou seja, um país que, direta ou indiretamente, “governa” o mundo… com armas, dólares e tecnologia (as big techs são, em geral, americanas).

Kamala Harris perdeu, é fato. Mas disputou a Presidência dos Estados Unidos e não foi tão mal. Colocou seu nome na história de seu país — assim como Barack Obama. Tem chance de ganhar em 2028, se o establishment democrata permitir que se candidate pela segunda vez, se o governo de Donald Trump for mal.

Os americanos querem os Estados Unidos mais “machos” no concerto internacional. Donald Trump é, nesta visão, o político que, em tese, vai bater na mesa, fortemente, “segurando” o mundo para o país de William Faulkner e Toni Morrison não cair, em termos de poderio econômico e político.

Com Donald Trump, os Estados Unidos voltarão a “rosnar”, e não exatamente para acabar com a guerra da Rússia contra a Ucrânia e a batalha de Israel contra palestinos (Hamas), Hezbollah e iranianos (que são considerados mestres do blefe político). Os americanos que votaram no republicano são semelhantes àqueles que não queriam os Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, antes de Pearl Harbor, em 1941. Cobram o país fora das batalhas “dos outros”, quer dizer, que seja mais isolacionista e se preocupe com a recuperação econômica interna.

O principal adversário de Donald Trump não é a Rússia, não é o Irã, não é a Síria. É a China. A luta do republicano será para assegurar a expansão da economia americana, mantendo-a como a mais sólida (apesar de uma dívida imensa) do mundo. Vale ler o livro “A Caminho da Guerra — Os Estados Unidos e a China Conseguirão Escapar da Armadilha de Tucídides?” (Intrínseca, 411 páginas, tradução de Cássio Arantes Leite), de Graham Allison, professor de Harvard.

Falando “grosso”, Donald Trump vai garantir a permanência dos Estados Unidos como a maior economia do Globo? Não. Mas uma política econômica de incentivo ao mercado — como a redução de impostos (o que é difícil com o apoio às guerras “dos outros”) — pode manter o país como o player incontornável. Em termos de tecnologia, apesar do avanço da China, os Estados Unidos ainda estão bem na frente, como líderes incondicionais.

A pergunta que todos fazem, notadamente no campo da esquerda, é: Donald Trump vai levar os Estados Unidos a uma ditadura de extrema-direita ou de direita?

Só adivinhos podem responder à questão a contento. Mas a história dos Estados Unidos sugere que Donald Trump não vai governar como ditador (e não precisa, pois foi eleito) e nem pretende um terceiro mandato (legalmente, não pode). Afinal, em 2028, terá 82 anos. Por mais saudável que seja, o mais provável é que queira se retirar.

Professores de Harvard, Stanford e Princeton desconfiam da democracia americana, sobretudo de Donald Trump, mas fiquemos com Tocqueville (e, sim, Hannah Arendt). As instituições dos Estados Unidos são sólidas e vão segurar Donald Trump nos marcos da democracia. Ser conservador no país de Joyce Carol Oates e Don DeLillo não é sinônimo de ser golpista e a favor de ditadura.

Então, com Donald Trump, os Estados Unidos podem até piorar, na questão da imigração e direitos humanos, mas se manterão democráticos. O republicano passará, como os passarinhos, a gripe e, quem sabe, Madame de Stäel, mas a democracia resistirá, como o café, os rios Araguaia e Tocantins e a obra literária de Machado de Assis, Clarice Lispector e Yêda Schmaltz.