“Criminalizar” a atividade produtiva, num país que desvaloriza os que investem seus capitais na geração de empregos e produtos, pode ser prejudicial tanto aos empresários quanto aos trabalhadores

Países continentais, com desigualdade de crescimento econômico e desenvolvimento, tendem a encontrar válvulas de escape para produzir ao menos certa igualdade. Nos Estados Unidos, como o país é realmente uma federação, com os Estados tendo larga autonomia para decidirem sobre seus assuntos, inclusive financeiros e fiscais, há regiões mais e regiões menos desenvolvidas. Daí que os governos criam incentivos para atrair investidores. Há conflitos, porque cada Estado se comporta como um micro país — a Califórnia, na verdade, é um país dentro do país, assim como São Paulo é um país dentro do Brasil, com PIB e população superiores ao do próspero Chile. Mas entende-se que os incentivos são instrumentos típicos do capitalismo, mesmo na terra do liberal Milton Friedman, da Universidade de Chicago (“pátria” do ministro da Economia do Brasil, Paulo Guedes).

Sísifo, de Tiziano

São Paulo, o Estado mais rico do Brasil, com PIB superior a 1,3 trilhão de reais — superando até a poderosa Argentina —, cresceu à sombra de incentivos fiscais. Na gestão do presidente Getúlio Vargas, o governo federal chegou a comprar o excedente do café — a superprodução — para queimá-lo. O objetivo era segurar os preços em determinado patamar para “proteger” os cafeicultores paulistas, que, com a acumulação primitiva do capital, contribuíram para financiar o desenvolvimento da indústria. Hoje, com seus mais de 45 milhões de habitantes (um mercado interno excepcional), e uma economia pujante, não interessa a São Paulo, naturalmente, ter outro Estado com o mesmo nível de desenvolvimento. De lá, portanto, vem o combate mais sistemático aos incentivos fiscais. Observe-se que o governo de João Doria, com o quase chicago-old Henrique Meirelles à frente, está patrocinando a permanência da GM em São Paulo… com incentivos fiscais. Se não fizer, seguindo a Ford, a multinacional vai embora.

Ao contrário do que por vezes se diz, Goiás não é mais um Estado ruralizado, até porque os negócios do campo estão irmanados com os negócios urbanos. Sob o capitalismo financeiro, junção dos capitais bancário e industrial, a separação campo-cidade é mais ilusória do que real. Hoje, serviços e indústria são destaques na economia regional, e dizer isto não é desconsiderar a produção rural. A BRF S. A. (simbolizada pela Perdigão), instalada em Rio Verde, deve ser tratada como agronegócio ou indústria? As duas coisas, mas, acima de tudo, se trata de um negócio altamente sofisticado. Na prática, é uma indústria, e das mais poderosas do país, conectando campo e cidade de maneira abrangente. Ao criar uma cadeia produtiva, conectando a economia local, contribui, de maneira permanente, para o desenvolvimento do Sudoeste e, também, de Goiás.

Ronaldo Caiado quer aumentar os ganhos do governo, mas não radicaliza o capitalismo em Goiás | Foto: Júnior Guimarães
Deserto de indústrias e de empregos

Agora, convida-se o leitor para um exercício de imaginação. Como seria Goiás hoje sem a BRF S. A. (instalada como Perdigão), sem a Mitsubishi, sem a Hypermarcas (a família Queiroz começou com a Arisco), sem os laboratórios de medicamentos de Anápolis, sem a Coty, sem a Pepsico-Mabel, entre várias outras empresas? É provável que seria um deserto de empresas e, daí, de empregos.

Pergunta-se: por que o Estado está superlotado de funcionários públicos, com cerca de 150 mil pessoas absorvendo cerca de 76,8% (segundo levantamento da economista Ana Carla Abrão, ex-secretária da Fazenda de Goiás) de toda a arrecadação do governo? Não se deve tratar os servidores como vilões — na verdade, são vítimas históricas —, pois a “apropriação” da estrutura estadual tem um motivo econômico. Como não havia um mercado privado para contratar as pessoas, as famílias encaminhavam alguns de seus integrantes para o setor público. Inicialmente, as indicações eram políticas, o que fortaleceu o patrimonialismo, o assenhoramento da máquina pública por determinados grupos políticos e famílias. Mais recentemente, com a criação de fórmulas modernos, adotou-se o concurso público para a contratação de funcionários. É a forma legítima e legal, mas o Estado não suporta mais arcar com a folha de pagamento dos servidores. Reside aí uma das pedras — quiçá montanhas — no caminho do governador Ronaldo Caiado.

Exagero? Pode até ser. Mas é mais fácil ir a Marte do que ser empresário no Brasil

O fato é que os incentivos fiscais, atraindo empresas que jamais viriam para Goiás graciosamente — porque fica distante dos grandes centros consumidores (São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro têm, juntos, 83 milhões de habitantes, pouco mais do que a Alemanha, país mais rico da Europa) e dos portos marítimos —, contribuíram para reduzir (não para acabar) a pressão sobre o governo. Hoje, e em grande parte devido aos incentivos fiscais, que atraíram grandes empresas — que, além das milhares de contratações, pagam em geral salários superiores ao do mercado local —, há milhões de indivíduos empregados na iniciativa privada. Pode-se sugerir que, se não criaram um mercado interno, os incentivos fiscais contribuíram para sedimentá-lo e expandi-lo, fortalecendo a economia e, de certa maneira, integrando-a — de maneira não mais subordinada, como mera fornecedora de matérias-primas (reproduzindo a via colonial) — à economia nacional.

Sim, os incentivos fiscais (sobretudo os benefícios) significam renúncia fiscal, quer dizer, menos recursos no caixa do Estado. Mas façamos outro exercício. Digamos que, sem a empresa “x”, Goiás arrecade “zero”, em termos financeiros, e, com a chegada da indústria, Goiás passe a arrecadar, não 100% de impostos, e sim 30%. A pergunta a se fazer: é melhor ter 30 mil de 100 mil reais ou ter zero?

Num tempo de caça às bruxas, de moralismo prêt-à-porter, as empresas que receberam incentivos fiscais estão sendo “excomungadas”? Se forem embora de Goiás, o que o governo vai colocar no lugar?

Brasil precisa de mais capitalismo

O governador de Goiás, Ronaldo Caiado, é bem-intencionado e, a rigor, não é contra os incentivos fiscais. Recentemente, foram feitos ajustes nos incentivos, que devem vigorar a partir de 1º de abril. O governo sabe que não se deve consolidar uma imagem negativa de Goiás, como o Estado que não incentiva empresas a se instalarem em seus municípios e que não é apóstolo da necessidade de segurança jurídica. Há o receio, entre os auxiliares mais equilibrados do gestor, como o empresário Wilder Morais, da Secretaria da Indústria e Comércio, de que empresas que estejam interessadas em se instalarem em Goiás possam optar por outros Estados. Portanto, o que se diz, no governo, é que Ronaldo Caiado não é contrário ao incentivo fiscal. Ele é contra o incentivo distorcido, paternalista. Há o caso de empresas que, no final do mês, no lugar de pagar impostos, recebem benefícios.

Posta a questão, de que os incentivos fiscais contribuem para o crescimento e o desenvolvimento de Goiás, é preciso admitir que podem e devem ser investigados. As empresas que nada têm a esconder, que agiram de maneira lícita, não têm o que temer de CPIs. A sociedade tem o direito de saber o que os governos fazem com os recursos públicos — diretos ou indiretos (caso dos incentivos fiscais). Se houve abusos, e é provável que tenha havido, devem ser investigados e os responsáveis devem ser levados à Justiça. CPIs nascem e morrem no Brasil às vezes mais com o objetivo de gerar escândalo, e não raro para perseguir adversários políticos. Não parece ser o caso da atual, a CPI dos Incentivos Fiscais. Mas fica o alerta de que fundamental não é produzir sensacionalismo, manchetes de jornais, e sim contribuir para levar Goiás a outro patamar de desenvolvimento. Olhar para o futuro, sem ceder ao sadismo inquisitorial, é a melhor maneira de construí-lo, de maneira inclusiva e multifacetada. Prender-se ao passado, aderindo-se ao denuncismo, é recuar e deter o avanço das forças da construção.

Pintura de Max Ernst

Talvez seja possível dizer que é mais fácil ir a Marte do que ser empresário no Brasil. Por isso, criminalizar a atividade empresarial, num país tão complexo e que desvaloriza os que investem seus capitais na geração de empregos e produtos, pode ser, eventualmente, prejudicial, não só aos empresários, mas também aos trabalhadores.

Uma observação final: a união entre a esquerda, representada pelo deputado estadual Humberto Aidar (MDB e ex-PT), e a direita, simbolizada por Ronaldo Caiado, sugere que está em jogo a velha aliança contra a modelagem de desenvolvimento do capitalismo. Não é apenas uma “guerra” contra os empresários, é uma “batalha” contra os que lucram. A velha tese da “usura”, desenvolvida pela Igreja Católica, na Idade Média, continua em vigência. Recomenda-se a Ronaldo Caiado, aliado dos vários grupos evangélicos, que leia “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, do sociólogo alemão Max Weber. Inteligente e perspicaz como é, entenderá que o Brasil, assim como Goiás, precisa de mais e não de menos capitalismo. Paulo Guedes, no plano nacional, está radicalizando o capitalismo e minando o Estado patrimonialista.