Goiânia hoje é tão linda quanto indócil. E isso explica muito sobre a violência urbana
16 julho 2016 às 11h08

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A população pobre — de retirantes de outros lugares ou de “retirados” daqui mesmo — se espalha nas“franjas” da cidade e se submete a escolhas que, invariavemente, resultam no submundo

“Essa cidade é linda demais. Escreve isso aí no seu jornal.” A mensagem era clara, de alguém que gosta do que vê e vê o que gosta quando anda por Goiânia. É um diálogo sobre o viver em uma cidade. A réplica foi provocativa: “Convença-me de que Goiânia é linda demais, mas a partir do ponto de vista de quem está no Jardins do Cerrado.” Ao citar o bairro periférico, a conversa muda de rumo.
Não há dúvida de que Goiânia seja uma cidade que mereça o elogio. Apesar de todos os seus problemas e percalços, de gestões controversas — algumas delas que a transformaram para pior, apesar de exaltadas —, a capital de Goiás ainda atrai os olhares e os desejos de multidões de pessoas de todas as classes econômicas. Especialmente das que compõem o “andar de baixo” da pirâmide social brasileira. E não tem como falar do que este Editorial se propõe sem dizer isto: Goiânia é tão linda como cidade como é indócil com os menos favorecidos que atrai para si.
E no Centro-Norte do Brasil, não existe cidade mais atraente que Goiânia. O migrante que mira seu sonho desenhado em torno de Brasília o vê virar pesadelo no Entorno de Brasília. A capital federal é pouco hospitaleira, cidade tida como “fria”, “de concreto”, “sem esquinas”.
Então, boa parcela, antes de pensar em ir para Brasília, vem para Goiânia. Mas, para uma multidão de recém-chegados, a diferença não é grande: também aqui não há muito o que celebrar, em termos de recepção a novos moradores. Por causa da violência, até mesmo a atmosfera, que antigamente era de muito aconchego, se mostra inóspita. Os goianienses, em parte — infelizmente, cada vez maior —, passaram a entender o migrante como alguém de quem se deva desconfiar. Um pensamento sociologicamente torto faz crer que quem vem de Estados mais pobres chega aqui para “aumentar a pobreza”. Preconceitos e “pré-conceitos” à parte, a verdade é que a própria dinâmica e, mais do que isso, as más gestões do espaço urbano acabam por tornar verossímil a história. Vejamos.
A população que chega pelo fluxo migratório geralmente se espalha nas chamadas “franjas” da cidade. Esse contingente é submetido a escolhas que desembocam em estar no submundo: ou os migrantes se dirigem aos bairros mais afastados, morando de aluguel ou na casa de parentes que antes já tenham feito o mesmo trajeto; ou vão se juntar a outras famílias desterradas para fazer a ocupação de terrenos, em busca de pressão por casa própria; ou, mais pragmáticos e menos temerosos, resolvem encarar as áreas de risco – margens ou até leitos de córregos e faixas ao longo de linhas de alta tensão, por exemplo; ou, por fim, resolvem dormir ao relento, por dias, semanas ou meses, nas ruas da cidade, até que lhes surja outra forma de viver. Sem risco de erro, as opções anteriores compõem as escolhas (ou a falta delas) para a maioria dos maranhenses, baianos, paraenses, tocantinenses e piauienses que chegam a Goiânia.
A palavra “escolha”, na verdade, deveria então ser escrita assim, entre aspas. São poucas as “escolhas” que a cidade tem oferecido de forma franca a quem tem poucos recursos e resolve, por sua vez, escolhê-la (seria mesmo uma “escolha”, deixar sua cidade de origem?) para mudar de vida.
Os planos diretores das cidades — e então Goiânia se torna um caso a mais — são influenciados por setores econômicos influentes, especialmente o setor imobiliário. Ainda que haja um peso real de outros atores, o dinheiro é um componente que, pragmaticamente, conta muito – seja para movimentos lícitos ou escusos.
Falando dos movimentos lícitos — que são os que geralmente estão abertos e se podem mostrar ou registrar —, é interessante observar como o funcionamento do Plano Diretor de Goiânia tem agido de forma bem mais ágil em favor de quem detém o capital. A mudança radical na paisagem do Setor Marista — interesse das construtoras – tem sido evidente. O bairro, daqui a dez anos, será totalmente diferente do bairro que existia dez anos atrás. Não se está falando de uma região periférica, para onde a cidade naturalmente mudaria bastante em termos de configuração: foi para lá, além do Setor Sul, uma das primeiras áreas ocupadas além do planejamento inicial da capital. O Marista está sendo agora “readaptado”: sua arquitetura de casarões e sobrados dá lugar a uma espécie de antiarquitetura, porque não planejada, em que sobem torres de 30 a 40 pavimentos. A população, de bom para alto poder aquisitivo, na média, está sendo substituída — ou acrescida — de outra, do mesmo padrão. Muda a forma da cidade, porque condomínios são restritivos e antissociais , mas o conteúdo fica: a cidade dos ricos reformatada para seus pares.
A pouca simpatia do novo visual da região nobre, porém, poderia ser notada como um grande sorriso da cidade, se a comparação for ao que recebem os que habitam as bordas, em termos de cumprimento das diretrizes do Plano Diretor. O ranço colonial, que dividia o País em pelo menos duas castas — a dos senhores de propriedade e a dos escravos —, deixa traços nas leis, o que significa dizer que o legalmente estabelecido também está ligado à história de desigualdades. Ou seja, o fato de haver uma política de atenção à rapidez do transporte viário, em determinado plano diretor, se liga à necessidade de conduzir mais rapidamente os pobres para seus postos de trabalho.
Mais do que atender a demandas utilitárias está o baixo comprometimento com as políticas públicas de base com essas pessoas: para elas — afastadas que estão do centro da cidade e de toda a infraestrutura —, os equipamentos públicos chegarão (“quando” e “se” chegarão) com muito mais demora e, também, menos qualidade. É a indocilidade da cidade que se mostra de forma pouco aberta, mas contínua.
Indócil, no caso, é algo bem oposto a humanizada. A desumanização de Goiânia está atrelada diretamente à perda de qualidade de vida — e não só para os mais afetados, os habitantes das “bordas”, das “franjas”. Quando uma cidade perde em acolhimento, em contato humano positivo (para diferenciar do caos de um terminal de transporte superlotado, por exemplo), ela ganha riscos, inclusive o maior deles: o de morte, por causa da violência.
É o que tem sido produzido no percurso histórico da capital. Uma cidade que, acolhedora de início, então passou a afastar seus moradores menos afortunados, forçando sua população toda a viver em guetos. E querem afastar mais, com um novo projeto de expansão urbana, trazendo mais despesas aos cofres públicos e, ainda assim, mais problemas. Mas isso é assunto para outro texto.