Garantia de democracia é que o Centrão, dono do governo, não quer saber de ditadura
25 julho 2021 às 00h00
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Por mais que se envolva em corrupção, ao subordinar o governo de Bolsonaro, ao menos em parte, o Centrão acaba se tornando melhor do que golpe militar
“As eleições no ano que vem serão limpas. Ou fazemos eleições limpas no Brasil ou não temos eleições.” — Jair Bolsonaro, em 8 de julho de 2021
Mais do que um partido, o Centrão é uma “federação” de partidos. Entre seus integrantes há filiados do Progressistas, do PL, do Democratas, entre outros. O que o caracteriza, em poucas palavras, é o fato de ser o “Partido do Governo” — qualquer que seja sua linha ideológica. Nos governos do PT, de esquerda, e no governo de Bolsonaro, de direita, seus principais personagens, como o senador Ciro Nogueira e os deputados federais Arthur Lira (presidente da Câmara dos Deputados) e Ricardo Barros, atuaram e atuam, à larga, sem preocupações se a ideologia “F” é melhor ou pior do que a ideologia “D”. O pragmatismo — a realpolitik — é absoluto.
Os membros do Centrão têm dois interesses básicos: poder e dinheiro. Estando no poder, ocupando cargos vitais, seus afiliados ganham dinheiro, muito dinheiro. Às vezes, graças ao tráfico de influência. Outras vezes, por corrupção mesmo — como o período em que alguns de seus próceres se locupletaram nas gestões de Lula da Silva e Dilma Rousseff, ambos presidentes pelo PT. Há quem postule que o Centrão tornou a corrupção mais “doce” — aceitável — aos protagonistas do petismo, como Lula da Silva, Antônio Palocci e José Dirceu. Tais líderes, com a participação de outros, teriam sido “agarrados” pelo abraço de sucuri e, longe de acharem ruim, teriam se “apaixonado” pelos “novos amigos”.
O Centrão governa porque é realista. Não quer saber se é “moral” ou não é. Não discute se é lícito ou não. Avalia que há espaços para negociação, com ou sem corrupção, quando se está em cargos chaves da gestão pública. A chefia da Casa Civil, por exemplo, nomeia ou, às vezes, controla os servidores que “contratam” obras e os que “pagam” aquilo que foi executado. Consta que os líderes do Centrão têm o “mapa” dos cargos que contam na República e procuram ocupar, com seus indicados, ao menos parte significativa deles. Com tal controle, podem tornar obras mais céleres ou, para prejudicar um adversário regional, mais lentas.
Ao contrário daqueles que pensam que há um homem “ideal”, ou que ele possa ser “construído”, o Centrão trabalha com homens reais — aqueles que, eventualmente, podem ceder às tentações do dinheiro, como o que parece que ocorre no Ministério da Saúde. Os indivíduos que operam o Centrão jogam unicamente no e para o presente. Não estão preocupados com um passado glorioso, a ser ressaltado de maneira nostálgica, ou com um futuro promissor. Para eles, de maneira realista, só existe um tempo — o presente. O paraíso, se existe, é agora e aqui. Não se “vive” no passado ou no futuro. A realidade, como vista pelo Centrão, pode ser “cruel” àqueles que avaliam que um pouco de fantasia faz bem à sanidade. Já os homens e mulheres do Centrão, por viverem para o presente, não têm ilusões. Se pagam bilhões para empreiteiros, por exemplo, por que não arrancar um “naco” — uns milhões — para as próprias contas bancárias ou cofres privados?
O filósofo Nicolau Maquiavel (1469-1527), que retirou a política do terreno divino e ensinou que o realismo faz o mundo avançar, para o bem e para o mal, certamente ficaria “impressionado” com a volúpia dos membros do Centrão. Tanto o italiano quanto o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920), para a surpresa de alguns ou até de muitos, certamente diriam que os centrãozistas são políticos autênticos — daqueles que, dado o pragmatismo, fazem o mundo avançar. Porque não perdem tempo com debates estéreis. Querem fazer, e não apenas para roubar uma “porçãozinha” — aqueles famosos 10%, às vezes um pouco mais —, mas também são agentes construtores, por paradoxal que possa parecer aos adeptos de uma moral purificadora.
Não há estadismo algum entre os reis do realismo que militam no Centrão? Talvez até haja. Porque, na medida em que “assaltam” os cofres públicos, aqui e ali, também são obrigados a construir, e, não raro, a construir até muito. Para justificar o furto ao Erário? Por mais que os centrãozistas não estejam tão interessados em deixar uma bela história — como Juscelino Kubitschek, que, segundo o general-presidente Ernesto Geisel, não era corrupto —, e sim em constituir fortunas e deixar um legado financeiro e imobiliário aos seus herdeiros, alguns deles, quiçá até vários, se preocupam em fazer alguma coisa em prol das pessoas. A ideia de que só se rouba é um engano. Até porque, com os órgãos fiscalizadores ativos, não dá para furtar toda a grana destinada às obras e serviços.
Talvez uma investigação jornalística detida, “pulando” o moralismo — fica-se com a impressão de que a mídia explora, de modo deliberado, as sensações do público, e não apenas em busca de audiência —, poderá comprovar que o Centrão contribui para, de alguma maneira, mover o país. Imagine o PT deixado a si próprio, aos menos nos tempos iniciais. Os petistas costumam perder um tempo infinito discutindo sobre o nada, ainda que este possa ser até belo e agradável. Ao se encontrarem com os homens do Centrão — ou, vá lá, centrões (porque Valdemar Costa Neto, do PL, e Roberto Jefferson, do PTB, eventualmente jogam como outsiders) —, num primeiro momento, é possível que os petistas certamente tiveram um choque.
Ao discutirem o paraíso para os pobres, com ideias mais mirabolantes do que práticas, petistas (e não se está falando de Lula da Silva, um realista absoluto, de uma inteligência intuitiva aguda e envolvente) certamente ficaram chocados ao ouvirem de algum membro do Centrão: “Que beleza, amigos. Mas quanto é mesmo que vou levar com a obra da transposição do Rio São Francisco” (fala imaginária). Putz! Estava tão “bom” discutindo que todos os pobres chegarão ao Reino do Céu por intermédio da Bolsa Família. O Centrão é isto: o aqui e agora. Não o antes e o depois. Pode ser chocante, incômodo, pois escapa ao terreno dos sonhos. Por vezes, porém, pode ser produtivo. É provável que várias obras tenham saído do papel graças o poder absoluto do realismo de seus líderes.
Ao diagnosticar o que é o Centrão, sem preconceito, a impressão que se tem é que se está fazendo a sua defesa. Na verdade, o que se está propondo é entendê-lo. O que move os países — os democráticos — é o centro político, que cria convergências e, dado o realismo, controla as fantasias de esquerda e de direita. O centro puxa os homens para o terra-a-terra, para o chão da realidade. Reclama-se que Lula da Silva e Dilma Rousseff cederam ao Centrão, subordinaram-se a ele. Fora a corrupção desenfreada, naturalmente condenável, é muito provável que vários dos acertos dos governos de Fernando Henrique Cardoso e dos dois petistas se devam ao realismo do Centrão — que criou para tais gestões uma governabilidade, possibilitando a boa governança. O Centrão é corrupção? Talvez seja o que mais se destaca. Mas também pode representar ação profissional, capacidade de operar a máquina pública.
Veja-se o governo de Jair Messias Bolsonaro, um presidente que sequer é filiado a um partido político. Há uma vocação autoritária evidente — e não é fascista, porque não parece uma vertente totalitária. Porém, dada a necessidade do apoio do Centrão na Câmara dos Deputados e no Senado, para operar o governo, Bolsonaro, egresso do Congresso — onde “militou” no baixo clero, dada sua inconsistência de outsider —, teve de conectar-se aos seus principais integrantes, como Ricardo Barros, Ciro Nogueira e Arthur Lira. A pergunta a se fazer é, ao modo de Maquiavel: o Centrão piorou o governo de Bolsonaro?
A resposta pode ser dolorida àquele que se considera uma vestal da sociedade. O Centrão não piorou o governo Bolsonaro, pelo menos em termos de democracia. Pelo contrário, é provável que o realismo dos centrãozistas tenha contido parte do ímpeto autoritário do presidente. A fala continua autoritária — e deu até para falar que pode não se realizar eleição em 2022 —, mas o governo não ousou pôr em prática medidas autoritárias. A mão do Centrão afigura-se aí, quem sabe.
Porque o Centrão, se “dialoga” com o uso das verbas públicas para fins nem sempre tão católicos, não é favorável a uma ditadura. O Centrão é democrático. Na democracia, diga-se, Bolsonaro precisa dos membros do Centrão. Para governar, quer dizer, aprovar seus projetos e, mesmo, fazer a máquina funcionar. Há, no ambiente bolsonarista um quê do velho petismo — aquele dos debates intermináveis (o prazer advém não de resolver os problemas reais, e sim de discuti-los, ad nauseam, até transformá-los em, digamos, irreais). O bolsonarismo é uma mistureba de uma ideologia de direita primitiva com arroubos de um fundamentalismo religioso.
Em termos estritamente ideológicos, Bolsonaro é um soldado invernal da Guerra Fria — um prisioneiro dos velhos tempos em que comunistas e capitalistas brigavam pelos corações e mentes dos homens globais. O realismo do Centrão como quê situa Bolsonaro no tempo em que vive — aquele que não interessa à China discutir se o comunismo é ruim ou bom. O que os chineses querem claramente é comprar matérias-primas, inclusive do Brasil, e transformá-las e, em seguida, distribui-las em todo o mundo — reproduzindo seu capital em alta escala e celeremente. Enquando Bolsonaro critica os comunistas, a China e os Estados Unidos movem uma guerra econômica e geopolítica em virtude de tentarem o predomínio tecnológico (o 5G é uma faceta da batalha).
O Centrão não quer saber de ditadura. Porque, numa ditadura, Bolsonaro não precisaria de seus líderes. Poderia simplesmente governar por decreto — Eduardo Bolsonaro é um apaixonado pelo AI-5 (uma “constituição” da linha dura militar) — e mandar prender seus integrantes.
Arthur Lira e Ciro Nogueira não têm a cultura de um Fernando Henrique Cardoso, mas têm a esperteza de Lula da Silva e o pragmatismo dos melhore políticos. O general Eduardo Pazuello, no Ministério da Saúde, ia mal, porque não agia como ministro — o ministro verdadeiro era Bolsonaro, aquele que “manda”. O que fez o Centrão? Contribuiu para sua queda, pressionando Bolsonaro. Marcelo Queiroga não é um homem do Centrão, mas só está no cargo porque os líderes da “federação” exigiram mudanças, pois as eleições de 2022 estão batendo à porta. Os membros do Centrão disseram a Bolsonaro, com todas as letras: ou vossa excelência muda a vacinação, tornando-a mais célere, ou não será reeleito em 2022. Nós estamos com o sr., é claro, mas queremos ser reeleitos.
O Centrão puxou Bolsonaro para a Terra — ele que, tão lunático quanto Olavo de Carvalho, o filósofo-guru da família, estava “morando” não na Virginia de Thomas Jefferson, e sim no desconhecido planeta Marte.
O que é pior: ditadura civil-militar ou o Centrão com sua volúpia por negócios dolarizados? Sem dúvida, entre um regime discricionário e um sistema arejado, com o Centrão dirigindo o governo, é mais saudável, para quem aprecia a democracia, por caótica que seja, ficar com o segundo.
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, possivelmente autorizou um aliado a repassar a informação para “O Estado de S. Paulo” a respeito de que o ministro da Defesa, Walter Braga Netto, havia dito que, sem o voto auditável — impresso —, não se terá eleição em 2022. Como a notícia chocou o país, que se livrou de uma ditadura há apenas 36 anos, todos negaram o que havia dito e, no caso do general, “articulado”. Mas as palavras de Bolsonaro, ditas em 8 de julho deste ano, são reais e ameaçadoras: “Vai ter voto impresso em 2022 e ponto final. Não vou nem falar mais nada. Se não tiver voto impresso, não tem eleição. Acho que o recado está dado”. A fala de Braga Neto, dirigida ao Congresso, deve ser vista como um reforço — um eco — da diatribe antidemocrática do presidente. As falas do presidente e do general são uma ameaça real ao processo democrático.
O Centrão acredita na vitória de Bolsonaro em 2022? É provável que sim — com ressalvas. Se o presidente for reeleito, a vitória será, em larga medida, em decorrência do realismo do Centrão, que puxa os irrealistas do Palácio do Planalto para o centro complexo e, às vezes, doloroso da realidade. Mas, claro, se o presidente for derrotado, seus membros continuarão no poder, porque sabem se fazer necessários, como Forrest Gumps da vida real. São seres adaptáveis. Sobreviventes, quer dizer, fortes.
Então, para a democracia, ruim com mas pior sem o Centrão. Talvez seja uma lição realista. Nada positiva, é claro. Mas, por execrável que seja, o Centrão pode ser o instrumento, ao lado da Imprensa, do Legislativo e do Judiciário, para conter a volúpia ditatorial de Bolsonaro.
A hora de Hamilton Mourão
O vice-presidente da República, Hamilton Mourão, ainda que colocado para escanteio pelo bolsonarismo, é uma das vozes sensatas do governo Bolsonaro. Instado a responder se o país terá eleições em 2022, o general respondeu: “Nós não estamos mais no século 20. É lógico que vai ter eleição. Quem é que vai proibir eleição no Brasil? Nós não somos república de bananas”.
De fato, não parece que a terra de Machado de Assis e Raymundo Faoro seja uma “república de bananas”. Por isso a sociedade precisa se posicionar, com o máximo de firmeza, a respeito de ameaças reais à democracia.
O que vale no que tange à fala de Braga Netto não é o desmentido, e sim a ameaça — que foi exposta, cumprindo o objetivo tático do bolsonarismo. Portanto, ao contrário do que sugeriu Mourão, que não é bolsonarista, a fala do ministro da Defesa não é “mentira” da imprensa ou de Arthur Lira.
Militares ajudaram a criar urna eletrônica
O ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Carlos Veloso concedeu uma entrevista importante ao jornal “O Estado de S. Paulo” na quinta-feira, 22. O ex-ministro assinala que, ao trabalhar o protótipo da urna eletrônica, em 1995, a Justiça contou com a colaboração de militares. “Dos nove integrantes da comissão quatro eram do Inpe, um do ITA, um do Exército e um da Marinha, todos atuando na área [de] informática”, frisa. Quer dizer, ao criticar a urna eletrônica como passível de fraude, o presidente Jair Bolsonaro está atacando, direta ou indiretamente, representantes das Forças Armadas.
O “Estadão” assinala que o “ataque” à urna eletrônica “é destinado simplesmente a desacreditar as instituições”. Carlos Veloso pontua: “O voto impresso seria o retorno das fraudes. Ele é que quebraria o sigilo do voto, garantia constitucional de independência do eleitor. Seria ótimo para os caciques políticos deste país”.
Veloso sustenta que a urna eletrônica “vem sendo utilizada há 25 anos sem nenhum indício de fraude”. O ex-ministro afirma que hackers “não têm como acessar” o sistema, pois “o processo de votação ‘não está em rede e não opera online’”. Já o voto impresso, frisa o ex-presidente do TSE, “permite o acesso de pessoas às urnas”.
O ex-ministro sublinha que “os mecanismos de segurança da urna eletrônica permitem que ela seja auditada antes, durante e depois das eleições”.
O problema maior de Bolsonaro não parece ser, a rigor, a urna eletrônica, e sim o receio de perder para Lula da Silva, o pré-candidato do PT a presidente da República, e já no primeiro turno. É provável, inclusive, que se esteja tentando costurar um caminho para barrar uma possível candidatura do petista em 2022.