As utopias sugerem a possibilidade de um mundo perfeito. A ideia de um planeta harmonioso, sem fissuras e ambiguidades, é, por si só, bela.

Porém, ao investigá-las, examinando os propósitos e o que geraram — talvez seja possível sugerir que as mais esplêndidas utopias são aquelas que não foram postas em prática —, o filósofo anglo-letão Isaiah Berlin concluiu que, longe de serem progressistas, são regressivas e, até, conservadoras.

Isaiah Berlin: há utopias que podem ser reacionárias | Foto: Reprodução

O livro “Utopia” (Autêntica, 256 páginas, tradução de Márcio Meirelles Gouvea Júnior), de Thomas More (1478-1535), talvez seja o mais magnífico sobre um mundo diverso do existente. Daí podem ter derivado as utopias, como a socialista, que foram levadas à prática?

O que se sabe é que a utopia socialista resulta, de acordo com o filósofo britânico John Gray, de uma mistura entre Cristianismo (a ideia de que é possível a igualdade e a possibilidade de paraíso, só que na Terra), Positivismo (a ideia de progresso contínuo, rumo ao comunismo) e o Iluminismo (que sugeriu a possibilidade de uma mudança social radical).

Entretanto, a utopia socialista, que se tornou realidade na União Soviética e, entre outros países, na China — e levou à morte cerca de 100 milhões de pessoas —, deve ser vista efetivamente como progressista? Talvez deva ser apontada como um avanço — resultado de uma bela ideia, a da possibilidade de igualdade absoluta entre os seres humanos — que, tendo saído do papel, se tornou reacionário. Assassinar pessoas, e como política de Estado, não leva a um mundo melhor. Norberto Bobbio está coberto de razão: no lugar de justificar, os meios podem corromper os fins.

Norberto Bobbio: os meios podem corromper os fins | Foto: Divulgação

Então, a felicidade plena — coletiva — é impossível? A felicidade individual é factível. E vale lembrar a frase inicial do romance “Anna Kariênina” (na tradução de Rubens Figueiredo), de Liev Tolstói: “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”.

Escravidão no capitalismo do século 21

Recentemente, um adolescente de 13 anos feriu vários alunos e matou uma professora numa escola. Na semana passada, um homem de 25 anos — com passagens pela polícia — invadiu uma creche e matou quatro crianças e feriu outras. Na quarta-feira, 5, a motorista de Uber Simone, de 49 anos, disse a um repórter do Jornal Opção: “O Brasil é uma desgraça. Só a pena de morte resolve este tipo de problema”. Ela estava comentando o atentado na escola de Blumenau, no Estado de Santa Catarina.

O Brasil, com seu hipotético complexo de vira-lata — criação do dramaturgo Nelson Rodrigues —, é um país “alegre” ou “triste”? O mais provável é que, apesar dos pesares, o brasileiro seja um povo mais “feliz” do que “melancólico”.

Polícia Federal liberta escravizados… em 2023 | Foto: Divulgação da Polícia Federal

Os brasileiros em geral apreciam falar mal do país, quase sempre na terceira pessoa — aquele que fala parece se excluir da “imperfeição” —, mas, ao mesmo tempo, estão sempre com um sorrisão no rosto. Adoram música, futebol, carnaval, cervejada e churrasco. Estereótipos? Talvez. Mas um micro retrato possível, e quiçá amplamente verdadeiro, da realidade.

Os assassinatos recentes de uma professora e crianças comoveram e enfureceram o país. E não teria como ser diferente e, portanto, é preciso mesmo abrir uma discussão nacional a respeito da violência.

Mas, paralelamente, os brasileiros deveriam se interessar por um debate nacional sobre a permanência da escravidão e da pobreza no país (observe-se que grande parte dos pobres são negros).

Fala-se em trabalho análogo à escravidão, pois é a terminologia legal. O que surpreende, porém, é que setores “modernos” da economia — como vinícolas do Rio Grande do Sul e usinas que produzem etanol (inclusive em Goiás), empreendimentos milionários — estejam envolvidos, direta ou indiretamente, com a barbárie que é escravizar pessoas. No Sul, o sócio de uma rede de comunicação, durante um convescote das elites locais, disse que as empresas haviam cometido um “erro” e rasgou elogios aos seus proprietários. Trata-se do uso de palavras “fidalgas”, por assim dizer, para escamotear a nomeação da brutal realidade da neoescravidão.

A Finlândia, o suficiente e a felicidade

O Relatório Mundial de Felicidade anual, da Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável, avalia o bem-estar nos países de todo o mundo. A Finlândia lidera pelo sexto ano consecutivo como o “país mais feliz”.

Floresta da Finlândia: as pessoas têm profunda conexão com a natureza | Foto: Divulgação

O jornal americano “New York Times” decidiu enviar uma repórter, Penelope Colston, para conversar com finlandeses. A reportagem, com o título de “O segredo finlandês para a felicidade? Saber quando se tem o suficiente”, foi republicada no Brasil pelo “Estadão” na quarta-feira, 5.

Finlandeses entrevistados pelo “Times” decidiram nuançar o resultado do relatório. A professora Nina Hansen, de 58 anos, contrapõe: “Eu não diria que nos consideramos muito felizes. Eu sou um pouco desconfiada dessa palavra”.

Nas entrevistas, os finlandeses ressaltaram a importância da “forte rede de segurança social” do país e demonstraram “entusiasmo” a respeito dos “benefícios psicológicos da natureza e as alegrias pessoais trazidas pelos esportes ou pela música”. Mas não deixaram de mencionar “culpa, ansiedade e solidão”. As pessoas ouvidas procuraram caracterizar os finlandeses como “bastante sombrios”, e não como “felizes”. Chegaram a postular que são “um pouco mal-humorados”.

A repórter sugere que os finlandeses estão mais próximos “de um sentimento de satisfação”.

O governo da Finlândia incentiva o estudo de música | Foto: Divulgação

A satisfação deriva do fato de levarem “uma vida sustentável”. O professor Arto O. Salonen, da Universidade de Eastern Finland, sublinha, na síntese do “Times”, que os finlandeses “compreendem o sucesso financeiro como algo capaz de identificar e atender às necessidades básicas”. “Em outras palavras, quando você sabe o que é suficiente, você fica feliz”, sublinha o mestre.

O CEO da Finland Design Shop, Teemu Kiiski, assinala que “felicidade é, às vezes, uma palavra leve e usada como se fosse apenas um sorriso no rosto”.

O “Times” sublinha que “a alta qualidade de vida na Finlândia está profundamente enraizada no sistema de bem-estar do país”. “Faz com que as pessoas se sintam seguras e protegidas por não serem deixadas de fora da sociedade.” (Copiar o que vale a pena é uma boa ideia para o presidente Lula da Silva.)

O governo da Finlândia oferece financiamento público para educação e artes. A artista plástica Hertta Kiiski afirma que, com o apoio estadual, não precisa “pensar no valor comercial da arte”. E esta pode ser mais “experimental”.

Finlândia: crianças na escola | Foto: Divulgação

Jani Toivola, de 45 anos, pondera: “Muitas vezes, eu acho, você ainda sente, como um gay negro na Finlândia, que você é a única pessoa na sala” (90% dos finlandeses são brancos).

Primeiro negro membro do Parlamento da Finlândia, Jani Toivola liderou “a luta pela legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo”.

Clara Paasimaki, de 19 anos, declara: “Somos muito privilegiados e sabemos do nosso privilégio, então também temos medo de dizer que estamos descontentes com qualquer coisa, porque sabemos que temos muito mais do que outras pessoas”.

A palavra “sisu” define o modo de vida dos finlandeses. “A palavra se traduz aproximadamente como ‘determinação severa diante das dificuldades’, tais como os longos invernos do país: mesmo na adversidade, espera-se que um finlandês persevere sem reclamar”, reporta o “Times”.

Julia Wilson-Hangasmaa, de 59 anos, diz que, como não precisa se preocupar com as necessidades básicas (ao contrário do Brasil, onde milhões de pessoas ainda passam fome), pode “perseguir seus sonhos”.

Porém, “o aumento do sentimento anti-imigração” preocupa Julia Wilson. A direita está atuante no país e é contrária a apoiar os imigrantes.

Criador de gado e produtor de leite, Tuomo Puutio, de 74 anos, elogia o sistema escolar do país, “que inclui educação musical para todas as crianças”. Sua filha, Marjukka Puutio, de 47 anos, se formou em música. “Você tem chance de ser violoncelista, mesmo sendo filha de um fazendeiro”, afirma. Ela dirige uma orquestra.

“Abundância da natureza” na Finlândia

Vários entrevistados pelo “Times” mencionaram “a abundância da natureza como crucial para a felicidade finlandesa: quase 75% da Finlândia é coberta por uma floresta e ela está aberta a todos, graças a uma lei conhecida como ‘jokamiehen oikeudet’ ou ‘direito de todos’, que dá às pessoas o direito de circular livremente por quaisquer áreas naturais, em terras públicas ou privadas”. (No Brasil, há várias florestas, como a amazônica, mas, por outro lado, as questões sociais ainda não foram enfrentadas a contento nem pelo Estado nem pela sociedade.)

A ex-atleta Helina Marjamaa, de 66 anos, afirma: “Gosto da paz e do movimento da natureza. É aí que ganho força. Os pássaros estão cantando, a neve está derretendo e a natureza está ganhando vida. É incrivelmente lindo”. A professora de dança e terapeuta sexual Mimmi Marjamaa, de 36 anos, é noiva de uma mulher e diz que se sente segura no país.

“Times” assinala que “os recursos naturais da Finlândia — cerca de um terço está acima do Círculo Polar Ártico — são particularmente vulneráveis aos efeitos da crise climática”. O compositor Tuomas Rounakari, de 46 anos, ex-integrante da banda de folk metal Korpiklaani, está apreensivo com a popularidade do Partido dos Finlandeses “e as políticas anticlimáticas que eles defendem”. Lá, como no Brasil com Jair Bolsonaro, a direita está “avançando” (a derrota do ex-presidente não significa necessariamente um recuo). “Estou preocupado com esse nível de ignorância eu temos em relação ao nosso próprio meio ambiente”, frisa.

No arremate da reportagem, o “Times” ouve Ruut Eerikainen, de 29 anos. “Para ser honesta, os finlandeses não parecem tão felizes. É muito escuro lá fora [além de muito frio] e podemos ser bastante sombrios”. O jornal americano conclui: “Talvez os finlandeses não sejam muito mais felizes do que todos os outros. Talvez suas expectativas de contentamento sejam mais razoáveis e, se não forem atendidas, no espírito do ‘sisu’, eles perseveram”. Eerikainen enfatiza: “Não reclamamos. Nós apenas fazemos”.

Lula da Silva e Janja: o presidente tem preocupação genuína com o social | Foto: Reprodução

Não há sociedade perfeita — há sociedades possíveis. Mas um dos motivos da “felicidade” da Finlândia é que conseguiu, da melhor maneira possível, equacionar a questão social. O Brasil, pelo contrário, conta com milhões de pobres que não têm acesso a quase nada, nem mesmo a comida.

O governo de Lula da Silva, que parece preocupado genuinamente com o assunto, certamente não resolverá a questão social com uma tacada, em quatro anos. Mas pode fazer muito para incluir os pobres à sociedade, para torná-los cidadãos de verdade. Um dos caminhos é o fornecimento de educação de qualidade para os pobres, sem deixar de assisti-los nas necessidades básicas. O que pode deixar o presidente petista na história não são suas brigas com a direita bolsonarista ou mesmo a aposta em crescimento econômico (que não leva, necessariamente, ao desenvolvimento), e sim como equacionou os problemas sociais.