Ex-presidente do Ipea diz que Brasil pode crescer mais do que sugerem economistas
11 setembro 2022 às 00h00
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O ex-presidente do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) Carlos von Doellinger concedeu uma entrevista ao “Correio Braziliense” que merece um debate nacional, ante a “seriedade” do que assinala — pondo em questão as análises de outros economistas a respeito do crescimento do PIB patropi.
Economistas, de várias tendências, apontam para um crescimento de menos de 1% em 2023. Porém, Doellinger aposta num crescimento de 3% a 3,5%, “com a inflação e a situação fiscal bem mais confortáveis”.
A entrevistadora, Rossana Hessel, postula que, ao contrário do que sugere o otimismo do economista, “há uma clara desaceleração em vários indicadores, como consumo e investimento”, além de que o mundo, inclusive a China, está em processo de recessão. Doellinger contrapõe: “No segundo trimestre [de 2022], o PIB acelerou, e tudo indica que vai terminar (o ano) acima de 3%”. E faz uma crítica: “Os dados do IBGE estão muito defasados”.
A previsão de crescimento para 2022 é, de acordo outros economistas, de 0,9% (talvez 0,5%) ou, no máximo, 1%. Doellinger ataca: “Os analistas de mercado vão errar feio. O que, aliás, não é novidade, porque eles estão sempre olhando pelo retrovisor. São sempre escravos de análises de regressões. Eles nunca conseguem identificar o ‘ecovery’. Isso exige métodos estatísticos sofisticados que essa turma não conhece. Não é para amadores. Que eu saiba, são raros os que têm formação com doutorado em métodos quantitativos e análise econométrica”.
E se o “problema” for o otimismo — quiçá em gotas — de Doellinger, e não a deficiência de formação dos economistas, na questão do crescimento da economia entre 2022 e 2023? Fica a ressalta de que, para o segundo trimestre de 2022, o mercado errou feio ao prever um crescimento de 0,9%, mas o país cresceu 1,2%. O que, se não é extraordinário, sinaliza pelo menos alguma recuperação de alguns setores produtivos. A “batalha” política, dado o ano eleitoral, contribuiu para que se subestimasse a “recuperação” da economia? Não se sabe. O motivo pode ter sido outro: a imprevisibilidade dos movimentos da economia. Talvez não seja possível “medir” com precisão uma economia em recuperação, depois de um período de baixa acentuada.
Rossana Hessel insiste que o mundo está em processo de desaceleração. A economia da China — maior compradora de produtos brasileiros — “recuou 2,6% no segundo trimestre”. Portanto, as exportações brasileiras estão caindo e tendem a cair mais. Doellinger se mostra, mais uma vez, otimista: “O Brasil tem um setor agro muito robusto, que ajuda a economia. A indústria de transformação não é grande coisa, mas o PIB do agro está bombando e está puxando a economia e grande parte dos serviços. Eu não quero dizer que o Brasil vai ser uma ilha de prosperidade no meio de uma recessão ou de uma desaceleração. Mas o fato é que os números, na margem, estão evoluindo bem”.
Relação PIB-dívida
O Orçamento do governo federal contém “previsões macroeconômicas otimistas”, postula Rossana Hessel. E há “uma estimativa de déficit primário de R$ 63,7 bilhões”. A repórter inquire: não seria “uma peça de ficção? A defesa de Doellinger: “O governo estava no limite do prazo de apresentação do Orçamento. Mas isso já ocorreu várias vezes no passado. O governo apresenta o projeto e, depois, faz correções com base na evolução da receita — aliás, a receita está em uma trajetória de crescimento bastante razoável. Isto certamente vai ser revisto. Sempre foi assim”.
Quanto ao orçamento secreto, com seus 16 bilhões de reais, Doellinger diz que se trata de uma invenção do Congresso (do Centrão), e não do ministro da Economia, Paulo Guedes. Porém, não explica por que motivo o poderoso Posto Ipiranga, guru econômico do presidente Jair Bolsonaro, não tentou barrá-lo.
Há outro aspecto polêmico na entrevista. “A dívida está em 77,6% do PIB, mas o volume de R$ 7,2 trilhões é recorde”, anota Rossana Hessel. Doellinger contesta: “A relação dívida-PIB nunca esteve tão baixa quanto está agora. O que interessa é a relação dívida-PIB”.
Rossana Hessel nota as pedaladas nos precatórios e a conta de juros. “São 35 bilhões ao ano a mais para cada ponto percentual na taxa básica, que já subiu 12 pontos desde março de 2021.” Doellinger segue por outro caminho: “Mas, se a economia crescer, como estamos apostando, isso tudo vai diminuindo. Olhando a relação dívida-PIB, historicamente, essa taxa nunca esteve tão favorável”. Portanto, frisa o economista, “eu não estou vendo essa perspectiva ruim”. Fica-se com a impressão de que o ex-auxiliar de Paulo Guedes trata o Brasil como uma ilha ou uma bolha, como se, para crescer, o país não precisasse de expansão em outros país, como a China.
A repórter faz mais uma ponderação: “A conta de juros está crescendo e já bateu um recorde histórico de mais de quase 560 bilhões de reais”. Mais uma vez, Doellinger exibe otimismo: “Eu não quero ver o resultado nominal. Eu quero ver a relação dívida-PIB. Eu estou dizendo que a relação PIB-dívida vai melhorar pelo crescimento real do PIB. A arrecadação está crescendo. O quadro não é tão ruim e eu não sou nenhum ufanista”. Ele acrescenta que a economia está se recuperando de maneira “impressionante”.
Porém, se o mercado estiver certo, o país não vai crescer 3% ao ano e, portanto, a arrecadação pode ser menor do que postula o otimista Doellinger. Se o economista estiver certo, será positivo para os brasileiros, porque se terá mais empregos e a renda dos indivíduos será mais elevada. Oxalá o ex-presidente do Ipea não esteja baseando sua interpretação unicamente no fato de que o Brasil cresceu 1,2% no segundo semestre deste ano e, portanto, se terá, pela frente, uma tendência à ampliação da expansão econômica. Como se disse acima, o país dirigido pela dupla Bolsonaro-Paulo Guedes não está isolado e depende de outros países, compradores de commodities, para crescer. Se a recessão mundial atingir certos patamares vai afetar grandemente a economia do país supostamente “abençoado por Deus”.
Talvez por não ter sido perguntado, Doellinger não discutiu a questão política (o que um economista como Karl Marx chamava de superestrutura). Mas deveria ter sido inquirido sobre o assunto ou falado por conta própria. Se Lula da Silva, do PT, for eleito presidente, na eleição deste ano, o projeto econômico que colocar em prática não será o mesmo do de Bolsonaro — ainda que, em alguns aspectos, talvez tenha de seguir receituário parecido. Já Bolsonaro, se reeleito, vai manter o mesmo projeto — quiçá, se a influência de Paulo Guedes permanecer forte, acelerando as privatizações e as reformas (fiscal e administrativa). A intervenção de um presidente pode mudar o rumo da economia, que só “anda” sozinha em parte.
Os três anos e oito meses do governo de Bolsonaro são relativamente bem avaliados por Doellinger. “Foi um período conturbado, porque teve pandemia [Covid-19], guerra [a invasão da Ucrânia pela Rússia contribuiu para aumentar o preço dos combustíveis], teve de tudo. Considerando todas essas mazelas, o desempenho foi bem razoável. Foi muito melhor do que a maioria esmagadora dos países, inclusive da Europa, e até dos Estados Unidos”. Não deixa de ser curioso ou sintomático que o economista, da linha do chicago-old Paulo Guedes, não tenha notado que o número de pobres cresceu nos últimos quatro anos. Ressalve-se que o “Correio” nada lhe perguntou a respeito. Há economistas liberais que, ao debater o crescimento, às vezes ignoram a questão do desenvolvimento.
Quanto à questão do teto de gastos, o Doellinger não se alinha com os radicais do mercado, os liberais ortodoxos. Embora, claro, não esteja alinhado com o projeto do PT de Lula da Silva. Sua fala: “O teto foi uma coisa meio emergencial, uma forma de dar um choque para segurar a despesa. E foi meio irracional, porque, na verdade, não se analisou a composição da despesa par fazer uma coisa bem estruturada. Vamos caminhar para um outro regime, mais racional do que simplesmente botar um teto e dizer ‘daqui não passa, se vira’. Meu palpite é que vamos evoluir para uma coisa mais flexível do lado tanto da receita como da despesa e com déficits mais gerenciáveis”.
Aprecie-se ou não as análises de Doellinger — que são técnicas, mas também guardam certo caráter ideológico (o economista é liberal, da linhagem de Paulo Guedes) —, vale discuti-las com atenção. Porque, se estiver certo sobre o crescimento da economia — de que o Brasil estará “melhor” do que imaginam vários economistas —, será positivo para o país. E ficará evidenciado que muitos analistas estão fazendo análises ideológicas travestidas de exames técnicos “independentes” e “objetivos”. Ou, pior, se o ex-presidente do Ipea estiver certo, muitos economistas não estão compreendendo o caráter complexo e multifacetado da economia patropi e sua conexão com a economia global.