O ex-presidente do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) Carlos von Doellinger concedeu uma entrevista ao “Correio Braziliense” que merece um debate nacional, ante a “seriedade” do que assinala — pondo em questão as análises de outros economistas a respeito do crescimento do PIB patropi.

Economistas, de várias tendências, apontam para um crescimento de menos de 1% em 2023. Porém, Doellinger aposta num crescimento de 3% a 3,5%, “com a inflação e a situação fiscal bem mais confortáveis”.

A entrevistadora, Rossana Hessel, postula que, ao contrário do que sugere o otimismo do economista, “há uma clara desaceleração em vários indicadores, como consumo e investimento”, além de que o mundo, inclusive a China, está em processo de recessão. Doellinger contrapõe: “No segundo trimestre [de 2022], o PIB acelerou, e tudo indica que vai terminar (o ano) acima de 3%”. E faz uma crítica: “Os dados do IBGE estão muito defasados”.

A previsão de crescimento para 2022 é, de acordo outros economistas, de 0,9% (talvez 0,5%) ou, no máximo, 1%. Doellinger ataca: “Os analistas de mercado vão errar feio. O que, aliás, não é novidade, porque eles estão sempre olhando pelo retrovisor. São sempre escravos de análises de regressões. Eles nunca conseguem identificar o ‘ecovery’. Isso exige métodos estatísticos sofisticados que essa turma não conhece. Não é para amadores. Que eu saiba, são raros os que têm formação com doutorado em métodos quantitativos e análise econométrica”.

Produção industrial da China está em queda | Foto: Reprodução

E se o “problema” for o otimismo — quiçá em gotas — de Doellinger, e não a deficiência de formação dos economistas, na questão do crescimento da economia entre 2022 e 2023? Fica a ressalta de que, para o segundo trimestre de 2022, o mercado errou feio ao prever um crescimento de 0,9%, mas o país cresceu 1,2%. O que, se não é extraordinário, sinaliza pelo menos alguma recuperação de alguns setores produtivos. A “batalha” política, dado o ano eleitoral, contribuiu para que se subestimasse a “recuperação” da economia? Não se sabe. O motivo pode ter sido outro: a imprevisibilidade dos movimentos da economia. Talvez não seja possível “medir” com precisão uma economia em recuperação, depois de um período de baixa acentuada.

Rossana Hessel insiste que o mundo está em processo de desaceleração. A economia da China — maior compradora de produtos brasileiros — “recuou 2,6% no segundo trimestre”. Portanto, as exportações brasileiras estão caindo e tendem a cair mais. Doellinger se mostra, mais uma vez, otimista: “O Brasil tem um setor agro muito robusto, que ajuda a economia. A indústria de transformação não é grande coisa, mas o PIB do agro está bombando e está puxando a economia e grande parte dos serviços. Eu não quero dizer que o Brasil vai ser uma ilha de prosperidade no meio de uma recessão ou de uma desaceleração. Mas o fato é que os números, na margem, estão evoluindo bem”.

Relação PIB-dívida

O Orçamento do governo federal contém “previsões macroeconômicas otimistas”, postula Rossana Hessel. E há “uma estimativa de déficit primário de R$ 63,7 bilhões”. A repórter inquire: não seria “uma peça de ficção? A defesa de Doellinger: “O governo estava no limite do prazo de apresentação do Orçamento. Mas isso já ocorreu várias vezes no passado. O governo apresenta o projeto e, depois, faz correções com base na evolução da receita — aliás, a receita está em uma trajetória de crescimento bastante razoável. Isto certamente vai ser revisto. Sempre foi assim”.

Guerra da Rússia contra a Ucrânia contribui para a recessão global | Foto: Reprodução

Quanto ao orçamento secreto, com seus 16 bilhões de reais, Doellinger diz que se trata de uma invenção do Congresso (do Centrão), e não do ministro da Economia, Paulo Guedes. Porém, não explica por que motivo o poderoso Posto Ipiranga, guru econômico do presidente Jair Bolsonaro, não tentou barrá-lo.

Há outro aspecto polêmico na entrevista. “A dívida está em 77,6% do PIB, mas o volume de R$ 7,2 trilhões é recorde”, anota Rossana Hessel. Doellinger contesta: “A relação dívida-PIB nunca esteve tão baixa quanto está agora. O que interessa é a relação dívida-PIB”.

Rossana Hessel nota as pedaladas nos precatórios e a conta de juros. “São 35 bilhões ao ano a mais para cada ponto percentual na taxa básica, que já subiu 12 pontos desde março de 2021.” Doellinger segue por outro caminho: “Mas, se a economia crescer, como estamos apostando, isso tudo vai diminuindo. Olhando a relação dívida-PIB, historicamente, essa taxa nunca esteve tão favorável”. Portanto, frisa o economista, “eu não estou vendo essa perspectiva ruim”. Fica-se com a impressão de que o ex-auxiliar de Paulo Guedes trata o Brasil como uma ilha ou uma bolha, como se, para crescer, o país não precisasse de expansão em outros país, como a China.

A repórter faz mais uma ponderação: “A conta de juros está crescendo e já bateu um recorde histórico de mais de quase 560 bilhões de reais”. Mais uma vez, Doellinger exibe otimismo: “Eu não quero ver o resultado nominal. Eu quero ver a relação dívida-PIB. Eu estou dizendo que a relação PIB-dívida vai melhorar pelo crescimento real do PIB. A arrecadação está crescendo. O quadro não é tão ruim e eu não sou nenhum ufanista”. Ele acrescenta que a economia está se recuperando de maneira “impressionante”.

Porém, se o mercado estiver certo, o país não vai crescer 3% ao ano e, portanto, a arrecadação pode ser menor do que postula o otimista Doellinger. Se o economista estiver certo, será positivo para os brasileiros, porque se terá mais empregos e a renda dos indivíduos será mais elevada. Oxalá o ex-presidente do Ipea não esteja baseando sua interpretação unicamente no fato de que o Brasil cresceu 1,2% no segundo semestre deste ano e, portanto, se terá, pela frente, uma tendência à ampliação da expansão econômica. Como se disse acima, o país dirigido pela dupla Bolsonaro-Paulo Guedes não está isolado e depende de outros países, compradores de commodities, para crescer. Se a recessão mundial atingir certos patamares vai afetar grandemente a economia do país supostamente “abençoado por Deus”.

Talvez por não ter sido perguntado, Doellinger não discutiu a questão política (o que um economista como Karl Marx chamava de superestrutura). Mas deveria ter sido inquirido sobre o assunto ou falado por conta própria. Se Lula da Silva, do PT, for eleito presidente, na eleição deste ano, o projeto econômico que colocar em prática não será o mesmo do de Bolsonaro — ainda que, em alguns aspectos, talvez tenha de seguir receituário parecido. Já Bolsonaro, se reeleito, vai manter o mesmo projeto — quiçá, se a influência de Paulo Guedes permanecer forte, acelerando as privatizações e as reformas (fiscal e administrativa). A intervenção de um presidente pode mudar o rumo da economia, que só “anda” sozinha em parte.

Os três anos e oito meses do governo de Bolsonaro são relativamente bem avaliados por Doellinger. “Foi um período conturbado, porque teve pandemia [Covid-19], guerra [a invasão da Ucrânia pela Rússia contribuiu para aumentar o preço dos combustíveis], teve de tudo. Considerando todas essas mazelas, o desempenho foi bem razoável. Foi muito melhor do que a maioria esmagadora dos países, inclusive da Europa, e até dos Estados Unidos”. Não deixa de ser curioso ou sintomático que o economista, da linha do chicago-old Paulo Guedes, não tenha notado que o número de pobres cresceu nos últimos quatro anos. Ressalve-se que o “Correio” nada lhe perguntou a respeito. Há economistas liberais que, ao debater o crescimento, às vezes ignoram a questão do desenvolvimento.

Quanto à questão do teto de gastos, o Doellinger não se alinha com os radicais do mercado, os liberais ortodoxos. Embora, claro, não esteja alinhado com o projeto do PT de Lula da Silva. Sua fala: “O teto foi uma coisa meio emergencial, uma forma de dar um choque para segurar a despesa. E foi meio irracional, porque, na verdade, não se analisou a composição da despesa par fazer uma coisa bem estruturada. Vamos caminhar para um outro regime, mais racional do que simplesmente botar um teto e dizer ‘daqui não passa, se vira’. Meu palpite é que vamos evoluir para uma coisa mais flexível do lado tanto da receita como da despesa e com déficits mais gerenciáveis”.

Aprecie-se ou não as análises de Doellinger — que são técnicas, mas também guardam certo caráter ideológico (o economista é liberal, da linhagem de Paulo Guedes) —, vale discuti-las com atenção. Porque, se estiver certo sobre o crescimento da economia — de que o Brasil estará “melhor” do que imaginam vários economistas —, será positivo para o país. E ficará evidenciado que muitos analistas estão fazendo análises ideológicas travestidas de exames técnicos “independentes” e “objetivos”. Ou, pior, se o ex-presidente do Ipea estiver certo, muitos economistas não estão compreendendo o caráter complexo e multifacetado da economia patropi e sua conexão com a economia global.