O ex-atacante da Seleção Brasileira de Futebol Ronaldo Nazário criticou o governo da presidente Dilma Rousseff e provocou uma comoção nas redes sociais. Paulo Coelho entrou no debate e foi atacado. Joaquim Barbosa aposenta-se do Supremo devido a ameaças. O discurso do ódio, que está na moda, deve ser confrontado com a premência de se defender a tolerância

Ronaldo Nazário, ex-atacante da Seleção Brasileira, Paulo Coelho, escritor de renome internacional, e Joaquim Barbosa, presidente do Supremo Tribunal Federal: três vítimas do discurso do ódio que está imperando nas redes sociais e, aos poucos, até nas ruas brasileiras
Ronaldo Nazário, ex-atacante da Seleção Brasileira, Paulo Coelho, escritor de renome internacional, e Joaquim Barbosa, presidente do Supremo Tribunal Federal: três vítimas do discurso do ódio que está imperando nas redes sociais e, aos poucos, até nas ruas brasileiras

 

Na semana passada, realizou-se na Espanha o seminário “El español del futuro en el periodismo de hoy” (“O espanhol do futuro no jornalismo de hoje”). Participaram do evento o ensaísta mexicano Enrique Krauze — parceiro de Octavio Paz na revista “Vuelta” e diretor da revista “Letras Libres” —, o diretor da Real Academia Española, José Manuel Blecua, e, entre outros, o escritor e físico Agustín Fernández Mallo. Krauze, autor do esplêndido livro “Os Redentores — Ideia e Poder na América Latina” (Benvirá, 704 páginas, tradução de Cecília Gouvea Dourado, Gabriel Federicci e Magda Lopes), faz referência ao discurso do ódio que tantas vítimas fez no passado e pode fazer no presente.

Na década de 1920, o discurso do ódio gerou, entre outros, Benito Mussolini e Adolf Hitler. O fascista Mussolini chegou ao poder na Itália em 1922. O nazista Hitler se tornou chanceler na Alemanha em 1933, e sem golpe. Os dois, notadamente Hitler, eram, de algum modo, frutos do discurso do ódio. Os comunistas, adeptos do discurso da hegemonia exclusiva — quer dizer, o espaço deveria ser ocupado unicamente pelo Partido Comunista —, apodaram a socialdemocracia alemã como “social-fascista” e, com isto, contribuíram para o fortalecimento do nazismo. Quando Stálin mudou o discurso — sugerindo aliança política com os socialdemocratas —, obrigando os partidos comunistas de todo o mundo a fazer o mesmo, era tarde: Hitler já estava no poder e promoveu uma perseguição implacável aos socialdemocratas, aos socialistas e aos comunistas. Para “unir” os alemães, projetou um violento discurso do ódio contra judeus e comunistas (principalmente os bolcheviques soviéticos). A tese de que, no capitalismo, “todos os grupos políticos são iguais”, sem matizes ideológicos, deu no que deu: depois do acordo de paz entre Stálin e Hitler, em 1939 — que a esquerda internacional apoiou, apesar de certo constrangimento —, os nazistas invadiram a União Soviética, em 1941, e massacraram milhões de soviéticos, civis e militares.

Ronaldo e Paulo Coelho

Sessenta e nove anos depois da queda de Hitler e 23 após a derrocada do comunismo soviético, o discurso do ódio está de volta, universalizado mas com especificidades locais. A internet tem sido o meio, adequado e eficiente, para destilar ódio a adversários que, na prática, são tratados como inimigos. Na semana passada, nas redes sociais, centenas de pessoas criticavam a presidente Dilma Rousseff (chega-se ao desrespeito puro e simples contra a presidente e a mulher, às vezes com ataques disfarçados sob a máscara do humor), o ex-jogador de futebol Ronaldo Nazário e o escritor Paulo Coelho com uma violência verbal extrema.

Ronaldo, apontado como aliado do pré-candidato a presidente Aécio Neves (PSDB) — não importa sua ligação política, e sim a validade ou não de seus argumentos —, disse que o governo federal não construiu nem 30% das obras de infraestrutura que havia prometido e assegurou que a Fifa não vai mais organizar Copa de Futebol no Brasil. A crítica de Ronaldo é pertinente, mas, claro, pode ser discutida e nuançada. Ele pode estar equivocado num ponto: a Fifa, que se tornou uma “empresa” poderosa, como negócios com várias empresas, pode, sim, no futuro organizar outra Copa no país. Negócio não rima com ideologia e com julgamentos peremptórios, como o do ex-atacante. A crítica à inação do governo em relação às obras de infraestrutura procede. A presidente Dilma Rousseff respondeu ao jogador, mas suas “explicações” não são convincentes. Não há dúvida de que a presidente é uma gestora competente, séria e íntegra, mas seu governo é burocrático — não raro beirando à paralisia. Fica-se com a impressão de que Dilma Rousseff foi absorvida ou engolida pela máquina pantagruélica da burocracia. O governo petista parece que fica “satisfeito” com os projetos que cria e divulga como se fossem resultados. Oxalá a presidente — repita-se, uma pessoa seriíssima — não conclua seu governo como o personagem Sales, do conto de Machado de Assis, que fazia vários projetos, ficava feliz com todos eles, mas não punha nenhum em prática.

Em seguida às críticas de Ronaldo — que disse o que muitos intelectuais não têm coragem de dizer, optando pela “omissão distanciada” —, o escritor Paulo Coelho concedeu entrevista ao jornal francês “Le Journal du Dimanche” e tachou o ex-jogador de “imbecil”. Ronaldo pode não ser culto, mas, evidentemente, não é nenhum tolo. O uso da palavra “imbecil” tem como objetivo, por certo, meramente desqualificar o ex-atacante da Seleção Brasileira. Entretanto, apesar do uso do adjetivo pesado, Paulo Coelho diz coisas sensatas. “O contexto é muito tenso. A violência voltou. O país quer mostrar uma face que não é a verdade. Há uma divisão entre o governo e o povo.” O best seller internacional participará da Copa? Sua resposta: “Fora de questão! Eu assisto aos jogos na TV, mas não vou. Estava na delegação oficial com Lula, Dunga e Romário quando a Fifa escolheu o Brasil. Mas estou muito decepcionado com tudo o que aconteceu desde então. Nós poderíamos usar o dinheiro para construir algo diferente em um país que precisa de tudo: hospitais, escolas, transportes. Ronaldo é um imbecil por dizer que não é o papel da Copa do Mundo construir esta infraestrutura. Ele deveria ter fechado a boca”.

Dilma Rousseff: a presidente é uma gestora competente e íntegra, mas parece que está sendo engolida pela máquina pantagruélica da burocracia brasileira e, como líder, deve pregar o discurso da tolerância
Dilma Rousseff: a presidente é uma gestora competente e íntegra, mas parece que está sendo engolida pela máquina pantagruélica da burocracia brasileira e, como líder, deve pregar o discurso da tolerância

Como o próprio Ronaldo sugeriu, possivelmente Paulo Coelho não entendeu direito seus comentários. O ex-atacante cobrou a construção de uma infraestrutura que seria usada não apenas durante a Copa. O governo da presidente Dilma Rousseff prometeu, entre outras coisas, organizar os principais aeroportos do país, mas não conseguiu. O Brasil é a sétima economia do mundo, mas com aeroportos equivalentes aos de países com economias mundialmente não competitivas. Os portos brasileiros estão sobrecarregados, mas o governo não faz quase nada para melhorá-los. É difícil, até muito difícil, construir obras públicas no Brasil. Há uma série de impedimentos legais — na verdade, questiúnculas, ninharias — que param e travam obras por meses e até anos. A responsabilidade pela burocracia não é apenas do governo da presidente Dilma Rousseff. No afã de permitir a construção de obras apenas inteiramente “legais”, do ponto de vista das leis, instituições como Ministério Público Federal e Tribunal de Contas da União às vezes colaboram para o atraso de obras de amplo interesse público. MPF e TCU erram quando contribuem para paralisar as obras? Muito difícil, talvez impossível, admitir que estão equivocados, dadas as irregularidades flagrantes e abusivas. Mas governo e institutos investigatórios e de fiscalização precisam encontrar um denominador comum para que as obras prossigam, mesmo sob investigação. Pará-las é quase um crime contra o Erário e, consequentemente, contribui para aumentar as despesas públicas. As obras começam com um valor monetário, mas, quando são travadas pela investigação e pela fiscalização, acabam se tornando muito mais caras, às vezes dobrando ou triplicando de preço.

Voltemos ao discurso do ódio. O debate é próprio da democracia, assim como a tolerância ao contraditório. Desqualificar o adversário — quando o justo é criticar, mesmo que seja duramente, seus argumentos — não é positivo para a democracia e à civilização. Na semana passada, como Ronaldo e Paulo Coelho ganharam destaque na mídia, intelectuais, inclusive críticos literários, apareceram para desqualificar os dois. O ex-atacante e o escritor não estariam qualificados para o debate. Por que não? O subtexto é de uma intolerância abissal: um ex-jogador, hoje empresário de sucesso, e um escritor de livros menores não teriam formação adequada para discutir determinadas questões. Ora, se estiverem expondo temas relevantes para a sociedade, como no caso de Ronaldo e Paulo Coelho, por que não podem falar? Cassar a palavras deles é, além de antidemocrático, elitista. Na prática, estão esgrimindo os mesmos argumentos daqueles que chamam o ex-presidente Lula da Silva de “apedeuta”. Lula não é, evidentemente, “apedeuta”. Trata-se de um político que, mesmo não dotado de grandes recursos intelectuais, é inteligente, até muito inteligente. Não envergonha o Brasil em nada. Pode até ser criticado, dado certo arroubo autoritário, mas é um político democrata e qualitativo. O preconceito que os liberais têm contra Lula está sendo repisado contra Ronaldo e Paulo Coelho. Se certos intelectuais lessem seus argumentos com a devida atenção veriam que contêm o germe da intolerância, do autoritarismo e da “destruição”. A esquerda às vezes não percebe que esgrime argumentos da direita e a direita às vezes não percebe que repercute argumentos da esquerda. Os extremos se tocam e, odiando, talvez se amem. O sociólogo americano Russell Jacoby, no excelente livro “O Fim da Utopia — Política e Cultura na Era da Apatia” (Record, 300 páginas, tradução de Clóvis Marques), diz que esquerda e liberais se tornam mais robustos e relevantes para a sociedade quando se respeitam e quando entendem e absorvem o discurso do outro. O que é a socialdemocracia senão uma espécie de síntese — imperfeita, porque não existe perfeição na política e na vida — do que há de melhor no capitalismo, a agressividade da economia e a capacidade de produzir em alta escala e com alta qualidade, e no socialismo, a tentativa de construir uma sociedade menos desigual?

Joaquim Barbosa

Na semana passada, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, um magistrado rígido e de conduta irretocável, revelou que vai se aposentar, aos 59 anos. Ele poderia ficar no STF por mais 11 anos, até completar 70 anos, quando teria de, compulsoriamente, se afastar. Nas decisões dos seres humanos há sempre um desejo mais sutil, às vezes inconfessado, quando se decide fazer alguma coisa, de ampla gravidade ou não. É provável que Joaquim Barbosa tenha se cansado e queira dar um novo rumo à sua vida. Talvez queira, como o escritor americano Philip Roth — possivelmente, o Nobel de Literatura deste ano —, tão-somente sair de cena (“Tô precisando viver”, disse a um amigo). Por trás, e não só por trás, de sua decisão está presente o discurso do ódio veiculado na internet e nas redes sociais.

Por sua seriedade, Joaquim Barbosa é admirado e respeitado pelos brasileiros. Porém, nas redes sociais, predomina o discurso elaborado, orgânico, de determinados partidos políticos, como o PT. Aquilo que parece espontâneo é, na verdade, produto de elaboração, de construção ideologizada, por parte de agentes partidários. Nas redes sociais, Joaquim Barbosa vem sendo “fuzilado”, simbolicamente, desde que contribuiu, de maneira decisiva, para a condenação dos chamados mensaleiros.

As ameaças estão se tornando cada vez mais sérias — e já está comprovado que algumas são feitas por petistas, segundo investigações da Polícia Federal — e chegam a dizer que vão matá-lo. Numa postagem, uma pessoa disse que Joaquim Barbosa “morreria de câncer ou com um tiro na cabeça”. Outro internauta escreveu: “Contra Joaquim Barbosa toda violência é permitida, porque não se trata de um ser humano, mas de um monstro e de uma aberração moral das mais pavorosas. Joaquim Barbosa deve ser morto”. Como o leitor deve ter notado, o texto, bem escrito e com formulação precisa, não é de autoria de um internauta qualquer, desses que dão uma opinião apenas para dar. Na sexta-feira, 30, o jornal “O Globo” publicou: “Esse fator [as ameaças] contribuiu para sua saída antecipada”. Petistas estão cercando o ministro até na porta de restaurantes. “Vou fazer como o Lula, vou dar palestras”, frisa Joaquim Barbosa, certamente dizendo a verdade, mas também ironizando o ex-presidente. O ministro avisou que deixa o STF no final de junho. Sua aposentadoria não é positiva para o Judiciário, nem para o país. Porque cristaliza-se a ideia de que está sendo praticamente expulso do órgão máximo da Justiça brasileira por tropas violentamente antidemocráticas.

A lei e o vitimismo

Krauze afirma que a internet propicia “a abolição de velhas hierarquias” e cria “a possibilidade real de uma comunicação horizontal entre o cidadão comum e as cúpulas”. Entretanto, o discurso do ódio, tão presente na internet, é visto como um de seus principais problemas. “Como enfrentar o discurso do ódio, veneno moral do nosso tempo? Antes de tudo, é preciso analisá-lo com clareza, entender sua natureza, medir seus efeitos. A partir daí é preciso estabelecer um diálogo com as grandes corporações que fornecem os serviços [controlam as redes sociais] e pressioná-las para que descubram soluções inteligentes para impedir que suas criações se convertam nos Fran­kensteins do século 21. É importante também ampliar o debate jurídico sobre o tema.”

O discurso do ódio, articulado e não espontâneo, “compromete, potencialmente, a liberdade de expressão, que é um valor essencial e universal do Ocidente. Sabemos, pela experiência do século 20, os estragos provocados pela prédica do ódio”, afirma Krauze. Agustín Mallo nota que o emissor anônimo — e anônimo deve ser visto de maneira mais ampla, pois incluiu também o indivíduo que não tem ligação com instituições e que não será responsabilizado com facilidade pelo que posta ou diz —, que, em parte, substitui emissores vinculados a jornais, revistas ou outras instituições instaladas, não raro reduz ou dilui a responsabilidade das pessoas. Agustín Mallo vê como positivo o “modelo coletivo de representar o real”, o que ocorre sobretudo nas redes sociais e blogs, mas outros analistas avaliam que a questão da responsabilidade individual precisa ser reavaliada. Porque o discurso do ódio atenta contra a liberdade e, portanto, contra a democracia. O que fazer? Ampliar o discurso da tolerância, não para aceitar o discurso do adversário, e sim para tolerá-lo como um fato da democracia. Ao mesmo tempo, quando necessário, se usar a instância judicial para coibir e, mesmo, punir excessos. A Justiça não é ditadura, não é autoritarismo; pelo contrário, é o tempero da democracia.

A democracia, com ou sem problemas, é um valor universal. Portanto, deve ser defendida por todos. Veja-se o caso de quem depreda o patrimônio público. Se o depredador for estudante, cria-se imediatamente um discurso de vitimismo, como se alguns, como os estudantes, estivessem acima da lei. A causa dos jovens pode até ser justa, mas, se depredam o patrimônio público ou particular, devem ser julgados pela Justiça. Democracia não significa que se pode fazer tudo, e sim que é preciso respeitar as leis, mesmo quando se discorda delas. A luta, se se discorda das leis, deve ser para modificá-las ou adaptá-las. Desrespeitá-las equivale a fortalecer o discurso antidemocrático.