Karl Marx acreditava que, a partir de determinado momento, o capitalismo passaria por uma crise terminal — o que daria origem à hegemonia do socialismo e, mais tarde, do comunismo.

No livro “O Capital”, o filósofo alemão esmiuçou as entranhas do capitalismo, deixando evidente a origem de sua vitalidade e, ao mesmo tempo, de sua fragilidade (o “choque” inequívoco das relações de produção com as forças produtivas). A obra é, a rigor, uma crítica do capitalismo? É. Mas não só. Marx parece, a todo momento, admirar a potência do modo de produção, o criador da mais-valia (a exploração do trabalhador) e, em seguida, da mais-valia relativa.

Karl Marx: filósofo e economista alemão | Foto: Reprodução

Marx morreu há 140 anos, em 14 de março de 1883. Desde então, o capitalismo, ainda que preserve algumas de suas características básicas — na estrutura —, mudou, e muito. E conseguiu um feito: “derrotou”, por assim dizer, o socialismo, aquele que, na visão do intelectual germânico, o substituiria, por ser mais “avançado” (e igualitário).

 A que se deve a resistência e, daí, a longevidade do capitalismo? À sua capacidade de, superando crises sucessivas — cíclicas —, reinventar-se, aparentando ter se tornado “outro”, mas preservando suas características básicas.

O capitalismo, para não ser superado pelo socialismo, adaptou, em parte, algumas ideias caras ao seu “adversário histórico”. O Estado do Bem-Estar Social, instalado na Inglaterra e noutros países, como os nórdicos, é uma resposta direta e perspicaz ao ideário da esquerda.

Então, aquele capitalismo dual — capitalistas e trabalhadores — não desapareceu, mas o modo de produção criou diferenciações, como, por exemplo, os executivos, que, a rigor, são quase acionistas (às vezes, são — com participação nos lucros) das empresas.

Banco Credit Suisse: a salvação pode ser o Banco Central da Suíça | Foto: Reprodução

As classes médias, que no geral são conformistas e permeáveis ao marketing atraente e eficiente do capitalismo (sobrado com piscina num condomínio horizontal com muros “feudais”, churrasco e cerveja nos finais de semana, automóveis da moda, bicicletas e motos chiques e icônicas, viagens ao exterior, plano de saúde com possibilidade de obter atendimento nos hospitais Sírio-Libanês e Einstein e esportes, como tênis e beach- tênis), são contrarrevolucionárias. Como fazer revolução sem elas? Não dá pé.

Vladimir Lênin e Liev Trótski eram integrantes da classe média, de onde saiu grande parte do contingente de revolucionários europeus e latino-americanos. Hoje, as classes médias querem consumir — e não fazer revolução. Suas “lutas” raramente são coletivas.

O capitalismo, com sua publicidade inteligente e criativa, conquistou corações e mentes. Se há uma vaga “revolucionária”, no momento, ela está ocorrendo nas redes sociais. No Facebook, no YouTube, no Twitter e no Instagram, os indivíduos gritam, vociferam, ameaçam e atacam a tudo e a todos — isto a partir de sofás, poltronas e camas confortáveis. Em seguida, dormem o sono dos justos e acordam no dia seguinte e vão para o trabalho, para as escolas e para os shoppings. Trata-se de uma catarse individual e coletiva. Todos — ou quase todos — estão na mesma vibe, numa sincronia gerenciada por terceiros, com seus algoritmos “inteligentes” e “controladores”.

Signature Bank: a instituição financeira americana sucumbiu | Foto: EFE/EPA/Justin Lane

A revolta contemporânea é prêt-à-porter — não mais do que isto. Está praticamente domada. O capitalismo aprendeu, como nenhum outro modo de produção, a “domesticar” a revolta dos indivíduos, a canalizá-la para o consumo, para o dolce far niente.

A longeva sobrevivência do capitalismo se deve, em parte, ao fato de que “molda” os indivíduos, mas estes acreditam que, no fundo, estão moldando o mundo em que vivem. Está se dizendo que as pessoas são “objetos” e não “sujeitos”? Não. As pessoas não fazem parte de um rebanho inerme. Elas têm consciência do que são e como vivem. Mas às vezes não percebem que estão, direta ou indiretamente, a serviço do “deus” mercado — o Zeus da mitologia urbana dos tempos hodiernos.

Crises e o eterno retorno do capitalismo

Repetindo: o capitalismo reinventa-se, e cada vez mais rapidamente. A revolução tecnológica, seu novo ciclo — com a inteligência artificial, vista, inclusive, como alguma coisa mágica —, é uma mudança estupenda, que galvaniza as atenções de todas as pessoas. O modo como as redes sociais se apropriaram da “sensibilidade” e “desejos” dos indivíduos por certo deixaria tanto Marx quanto Sigmund Freud perplexos. Dizemos para os amigos: “O meu Facebook”, “o meu Twitter”, “o meu Instagram”. Porém, o mais apropriado é sugerir que somos “do” Facebook, “do” Instagram e “do” Twitter. Claro, não somos apenas “usados”, pois “usamos” também. Mas o grande vitorioso não é o indivíduo, e sim o mercado, o capitalismo.

First Republic Bank: grandes bancos americanos tentam salvá-lo | Foto: Reprodução

No “Manifesto Comunista”, um dos livros mais políticos de Marx, faz-se o “elogio” (e a crítica, por certo) da burguesia — uma classe, no tempo do filósofo, revolucionária. Pois a burguesia (tão multifacetada que nem parece mais a velha burguesia, tão hierática e “aristocrática”), do ponto da tecnologia — da economia —, permanece revolucionária, reinventando o capitalismo e a si própria. Porém, em termos comportamentais, tornou-se absolutamente conformista (por isso as classes médias são conformistas, porque a burguesia é sua inspiradora). O pequeno burguês, para usar uma terminologia algo arcaica, é um microprojeto do burguês. É o quase-burguês. Tem “inveja” do burguês. Quer se tornar burguês.

Se é sólido, dada sua capacidade de reinventar-se — o que o torna permanentemente moderno, portanto “não” pode ser substituído (na verdade, o capitalismo não é infenso ao arcaico, tanto que empresas ditas modernas do Brasil, como vinícolas, fabricantes de etanol e produtoras de café, aderem a práticas retardatárias — como o trabalho análogo à escravidão) —, o capitalismo não é infenso a crises. Há indícios de que as crises o alimentam para que deem, digamos assim, um novo salto qualitativo.

Lula da Silva e Fernando Haddad: reduzir juros e manter a estabilidade econômica | Foto: Reprodução

No século 20, entre as décadas de 1920 e 1930, a debacle capitalista foi gigante. A Europa e os Estados Unidos, dada ao crash da bolsa, quase sucumbiram à depressão. Mas aí, com o deus mercado na chón, o demonizado Estado é convocado para “salvá-lo”. Aconteceu com os presidentes Franklin D. Roosevelt e Barack Obama, nos Estados Unidos, e em outros países. O mercado “não” salva a sociedade, mas cobra que o Estado o salve. Sim, o Estado, com recursos públicos, salva, com frequência, a livre iniciativa. E não há outro caminho.

Entretanto, se “quebra”, ciclicamente, o capitalismo não morre. Pelo contrário, depois dos tombos, “volta” mais forte e sacodido. Um dos motivos é sua imensa capacidade de diversificar a economia. Uma crise no setor financeiro pode afetar toda a economia, mas a tendência é que não a derrube por inteiro.

No momento, há uma crise financeira e ainda não se sabe qual é sua exata dimensão. O economista Nouriel Roubini, o Dr. Apocalipse, adverte que o Credit Suisse “pode ser grande demais para quebrar, mas também muito grande para ser salvo”. De cara, o Banco Central da Suíça vai injetar 53,7 bilhões de dólares no banco (frise-se que a dívida da Argentina com o Fundo Monetário Internacional é de 44 bilhões de dólares). Vai salvá-lo? Não se sabe. Mas a tendência, do nosso ponto de vista, que é ligeiramente diferente do de Roubini, é que sim: a Suíça não deixará o Credit Suisse quebrar. Não é de seu interesse.

Nouriel Roubini: o Doutor Apocalipse tem sido pioneiro no diagnóstico da crise | Foto: Reprodução

Por que o Credit Suisse está em crise, o First Republic Bank está abalado (os maiores bancos dos Estados Unidios decidiram repassar 30 bilhões de dólares na tentativa de salvá-lo) e os bancos americanos Silicon Valley Bank (SVB) e Signature Bank quebraram? Economistas especializados em mercado financeiro dizem que a crise resulta “de mudança em nível de liquidez e má gestão” (e isto, no caso, não tem nada a ver com inocência, e sim “dolo”; o capitalismo, na fase tecnológico-financeira, vende produtos, “papéis” e fantasia. Investidor mignon na bolsa é o mais próximo de um tolo de que se tem notícia).

Setor bancário do Brasil será afetado?

O “Estadão”, assim como o excelente “Valor Econômico”, publicou uma série de reportagens e artigos sobre a crise financeira ou bancária. É preciso ter um tipo específico de cautela: a crise pode se tornar maior, se se espraiar, mas também pode ser contida.

A reportagem “Crise bancária pode comprometer estabilidade financeira mundial e mudar rota dos juros” (“Estadão”, quarta-feira, 15), de Altamiro Silva Junior e Karla Spotorno, ouviu economistas que, sem mencionarem o presidente Lula da Silva, acabam por dar razão ao petista-chefe na sua luta pela redução dos juros — o que gerou uma crise com o presidente do banco Central, Roberto Campos Neto.

Três gestores de recursos financeiros do Brasil — SPX Capital, JGP e Ibiuna — sugerem que “os problemas bancários” podem “comprometer a estabilidade financeira internacional a ponto de os bancos centrais terem de rever suas estratégias de aperto monetário.

André Jakurski: Bancos brasileiros, mais resilientes, têm menos problemas | Foto: Reprodução

Rogério Xavier, da SPX, postula que os problemas bancários nos Estados Unidos devem gerar uma “‘reflexão dos bancos centrais’, sobretudo no Federal Reserve (Fed, o banco central americano), que pode pausar a alta de juros. Na Europa, o Banco Central Europeu (BCE) pode ter de elevar menos a taxa para conter a inflação. Em meio ao começo de problemas nos bancos, os reguladores podem ter de começar a olhar mais de perto a estabilidade financeira e menos a inflação”.

Gestor da Ibiuna, Rodrigo Azevedo é pessimista: “O sistema financeiro começou a engasgar, e acho que é só começo”. O economista diz que o problema é parecido com um terremoto. “Primeiro tem um impacto e depois reverberações e novos choques. ‘E elas vão vir’.”

Os bancos centrais, postula Rodrigo Azevedo, preocupa-se com o controle da inflação e com a manutenção da estabilidade financeira. Por causa do combate à primeira, “estão subindo juros”, o que está afetando a estabilidade financeira. “Provavelmente, a estabilidade financeira está falando para não subir mais a taxa de juros. E dependendo de quão grave a história fique, tem de cair os juros”, afirma. O economista sublinha que o aumento dos juros não está reduzindo a inflação, o que é outro problema.

Não deixa de ser curioso que o presidente Lula da Silva e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, estejam dizendo a mesma coisa, e antes da crise financeira americana. Eles pressionam o Banco Central para conter os juros, para abaixá-los, e acabaram recebendo críticas do mercado. Agora, o mercado, exatamente o financeiro, está postulando que é preciso reduzir os juros, mesmo que a inflação não caia, para salvar a economia.

Sócio da JGP, André Jakurski avalia que o Brasil “está mais ‘isolado desse problema global’ [a crise dos bancos] e, portanto, menos suscetível aos riscos de contaminação. ‘Os bancos brasileiros são mais resilientes e têm menos problemas’”.

André Jakurski afiança que “o Brasil ainda é uma economia muito fechada. Nosso endividamento externo é o.k. Nossa dívida nominal é alta, mas não me assusta de imediato. Então, acredito que o Brasil está bem defendido”. Porém, o economista assegura que o crescimento do PIB em 2023 será “medíocre” — por causa “da baixa produtividade, débil taxa de investimentos e o alto ‘custo Brasil’”.

Afinal, o capitalismo sai dessa, mesmo se a crise for mais profunda do que parece? Tudo indica que sim, e talvez ainda mais forte. Até a próxima crise. Uma espécie de eterno retorno. Frise-se, por fim, que o Silicon Valley Bank (SVN), um dos falidos de maneira irreversível, era o “banco das startups”. Financiava o que há de mais moderno e promissor na economia dos Estados Unidos. Porém, era mal gerido. Ao mesmo tempo, nem todas as empresas do admirável mundo tecnológico são lucrativas e sólidas. Será possível sugerir que o capitalismo “quebra”, não para sucumbir, e sim para avançar? Mais do que uma tese, é uma hipótese.