Crise financeira pode se tornar sistêmica e afetar o setor bancário do Brasil?

19 março 2023 às 00h44

COMPARTILHAR
Karl Marx acreditava que, a partir de determinado momento, o capitalismo passaria por uma crise terminal — o que daria origem à hegemonia do socialismo e, mais tarde, do comunismo.
No livro “O Capital”, o filósofo alemão esmiuçou as entranhas do capitalismo, deixando evidente a origem de sua vitalidade e, ao mesmo tempo, de sua fragilidade (o “choque” inequívoco das relações de produção com as forças produtivas). A obra é, a rigor, uma crítica do capitalismo? É. Mas não só. Marx parece, a todo momento, admirar a potência do modo de produção, o criador da mais-valia (a exploração do trabalhador) e, em seguida, da mais-valia relativa.

Marx morreu há 140 anos, em 14 de março de 1883. Desde então, o capitalismo, ainda que preserve algumas de suas características básicas — na estrutura —, mudou, e muito. E conseguiu um feito: “derrotou”, por assim dizer, o socialismo, aquele que, na visão do intelectual germânico, o substituiria, por ser mais “avançado” (e igualitário).
A que se deve a resistência e, daí, a longevidade do capitalismo? À sua capacidade de, superando crises sucessivas — cíclicas —, reinventar-se, aparentando ter se tornado “outro”, mas preservando suas características básicas.
O capitalismo, para não ser superado pelo socialismo, adaptou, em parte, algumas ideias caras ao seu “adversário histórico”. O Estado do Bem-Estar Social, instalado na Inglaterra e noutros países, como os nórdicos, é uma resposta direta e perspicaz ao ideário da esquerda.
Então, aquele capitalismo dual — capitalistas e trabalhadores — não desapareceu, mas o modo de produção criou diferenciações, como, por exemplo, os executivos, que, a rigor, são quase acionistas (às vezes, são — com participação nos lucros) das empresas.

As classes médias, que no geral são conformistas e permeáveis ao marketing atraente e eficiente do capitalismo (sobrado com piscina num condomínio horizontal com muros “feudais”, churrasco e cerveja nos finais de semana, automóveis da moda, bicicletas e motos chiques e icônicas, viagens ao exterior, plano de saúde com possibilidade de obter atendimento nos hospitais Sírio-Libanês e Einstein e esportes, como tênis e beach- tênis), são contrarrevolucionárias. Como fazer revolução sem elas? Não dá pé.
Vladimir Lênin e Liev Trótski eram integrantes da classe média, de onde saiu grande parte do contingente de revolucionários europeus e latino-americanos. Hoje, as classes médias querem consumir — e não fazer revolução. Suas “lutas” raramente são coletivas.
O capitalismo, com sua publicidade inteligente e criativa, conquistou corações e mentes. Se há uma vaga “revolucionária”, no momento, ela está ocorrendo nas redes sociais. No Facebook, no YouTube, no Twitter e no Instagram, os indivíduos gritam, vociferam, ameaçam e atacam a tudo e a todos — isto a partir de sofás, poltronas e camas confortáveis. Em seguida, dormem o sono dos justos e acordam no dia seguinte e vão para o trabalho, para as escolas e para os shoppings. Trata-se de uma catarse individual e coletiva. Todos — ou quase todos — estão na mesma vibe, numa sincronia gerenciada por terceiros, com seus algoritmos “inteligentes” e “controladores”.

A revolta contemporânea é prêt-à-porter — não mais do que isto. Está praticamente domada. O capitalismo aprendeu, como nenhum outro modo de produção, a “domesticar” a revolta dos indivíduos, a canalizá-la para o consumo, para o dolce far niente.
A longeva sobrevivência do capitalismo se deve, em parte, ao fato de que “molda” os indivíduos, mas estes acreditam que, no fundo, estão moldando o mundo em que vivem. Está se dizendo que as pessoas são “objetos” e não “sujeitos”? Não. As pessoas não fazem parte de um rebanho inerme. Elas têm consciência do que são e como vivem. Mas às vezes não percebem que estão, direta ou indiretamente, a serviço do “deus” mercado — o Zeus da mitologia urbana dos tempos hodiernos.
Crises e o eterno retorno do capitalismo
Repetindo: o capitalismo reinventa-se, e cada vez mais rapidamente. A revolução tecnológica, seu novo ciclo — com a inteligência artificial, vista, inclusive, como alguma coisa mágica —, é uma mudança estupenda, que galvaniza as atenções de todas as pessoas. O modo como as redes sociais se apropriaram da “sensibilidade” e “desejos” dos indivíduos por certo deixaria tanto Marx quanto Sigmund Freud perplexos. Dizemos para os amigos: “O meu Facebook”, “o meu Twitter”, “o meu Instagram”. Porém, o mais apropriado é sugerir que somos “do” Facebook, “do” Instagram e “do” Twitter. Claro, não somos apenas “usados”, pois “usamos” também. Mas o grande vitorioso não é o indivíduo, e sim o mercado, o capitalismo.

No “Manifesto Comunista”, um dos livros mais políticos de Marx, faz-se o “elogio” (e a crítica, por certo) da burguesia — uma classe, no tempo do filósofo, revolucionária. Pois a burguesia (tão multifacetada que nem parece mais a velha burguesia, tão hierática e “aristocrática”), do ponto da tecnologia — da economia —, permanece revolucionária, reinventando o capitalismo e a si própria. Porém, em termos comportamentais, tornou-se absolutamente conformista (por isso as classes médias são conformistas, porque a burguesia é sua inspiradora). O pequeno burguês, para usar uma terminologia algo arcaica, é um microprojeto do burguês. É o quase-burguês. Tem “inveja” do burguês. Quer se tornar burguês.
Se é sólido, dada sua capacidade de reinventar-se — o que o torna permanentemente moderno, portanto “não” pode ser substituído (na verdade, o capitalismo não é infenso ao arcaico, tanto que empresas ditas modernas do Brasil, como vinícolas, fabricantes de etanol e produtoras de café, aderem a práticas retardatárias — como o trabalho análogo à escravidão) —, o capitalismo não é infenso a crises. Há indícios de que as crises o alimentam para que deem, digamos assim, um novo salto qualitativo.

No século 20, entre as décadas de 1920 e 1930, a debacle capitalista foi gigante. A Europa e os Estados Unidos, dada ao crash da bolsa, quase sucumbiram à depressão. Mas aí, com o deus mercado na chón, o demonizado Estado é convocado para “salvá-lo”. Aconteceu com os presidentes Franklin D. Roosevelt e Barack Obama, nos Estados Unidos, e em outros países. O mercado “não” salva a sociedade, mas cobra que o Estado o salve. Sim, o Estado, com recursos públicos, salva, com frequência, a livre iniciativa. E não há outro caminho.
Entretanto, se “quebra”, ciclicamente, o capitalismo não morre. Pelo contrário, depois dos tombos, “volta” mais forte e sacodido. Um dos motivos é sua imensa capacidade de diversificar a economia. Uma crise no setor financeiro pode afetar toda a economia, mas a tendência é que não a derrube por inteiro.
No momento, há uma crise financeira e ainda não se sabe qual é sua exata dimensão. O economista Nouriel Roubini, o Dr. Apocalipse, adverte que o Credit Suisse “pode ser grande demais para quebrar, mas também muito grande para ser salvo”. De cara, o Banco Central da Suíça vai injetar 53,7 bilhões de dólares no banco (frise-se que a dívida da Argentina com o Fundo Monetário Internacional é de 44 bilhões de dólares). Vai salvá-lo? Não se sabe. Mas a tendência, do nosso ponto de vista, que é ligeiramente diferente do de Roubini, é que sim: a Suíça não deixará o Credit Suisse quebrar. Não é de seu interesse.

Por que o Credit Suisse está em crise, o First Republic Bank está abalado (os maiores bancos dos Estados Unidios decidiram repassar 30 bilhões de dólares na tentativa de salvá-lo) e os bancos americanos Silicon Valley Bank (SVB) e Signature Bank quebraram? Economistas especializados em mercado financeiro dizem que a crise resulta “de mudança em nível de liquidez e má gestão” (e isto, no caso, não tem nada a ver com inocência, e sim “dolo”; o capitalismo, na fase tecnológico-financeira, vende produtos, “papéis” e fantasia. Investidor mignon na bolsa é o mais próximo de um tolo de que se tem notícia).
Setor bancário do Brasil será afetado?
O “Estadão”, assim como o excelente “Valor Econômico”, publicou uma série de reportagens e artigos sobre a crise financeira ou bancária. É preciso ter um tipo específico de cautela: a crise pode se tornar maior, se se espraiar, mas também pode ser contida.
A reportagem “Crise bancária pode comprometer estabilidade financeira mundial e mudar rota dos juros” (“Estadão”, quarta-feira, 15), de Altamiro Silva Junior e Karla Spotorno, ouviu economistas que, sem mencionarem o presidente Lula da Silva, acabam por dar razão ao petista-chefe na sua luta pela redução dos juros — o que gerou uma crise com o presidente do banco Central, Roberto Campos Neto.
Três gestores de recursos financeiros do Brasil — SPX Capital, JGP e Ibiuna — sugerem que “os problemas bancários” podem “comprometer a estabilidade financeira internacional a ponto de os bancos centrais terem de rever suas estratégias de aperto monetário.

Rogério Xavier, da SPX, postula que os problemas bancários nos Estados Unidos devem gerar uma “‘reflexão dos bancos centrais’, sobretudo no Federal Reserve (Fed, o banco central americano), que pode pausar a alta de juros. Na Europa, o Banco Central Europeu (BCE) pode ter de elevar menos a taxa para conter a inflação. Em meio ao começo de problemas nos bancos, os reguladores podem ter de começar a olhar mais de perto a estabilidade financeira e menos a inflação”.
Gestor da Ibiuna, Rodrigo Azevedo é pessimista: “O sistema financeiro começou a engasgar, e acho que é só começo”. O economista diz que o problema é parecido com um terremoto. “Primeiro tem um impacto e depois reverberações e novos choques. ‘E elas vão vir’.”
Os bancos centrais, postula Rodrigo Azevedo, preocupa-se com o controle da inflação e com a manutenção da estabilidade financeira. Por causa do combate à primeira, “estão subindo juros”, o que está afetando a estabilidade financeira. “Provavelmente, a estabilidade financeira está falando para não subir mais a taxa de juros. E dependendo de quão grave a história fique, tem de cair os juros”, afirma. O economista sublinha que o aumento dos juros não está reduzindo a inflação, o que é outro problema.
Não deixa de ser curioso que o presidente Lula da Silva e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, estejam dizendo a mesma coisa, e antes da crise financeira americana. Eles pressionam o Banco Central para conter os juros, para abaixá-los, e acabaram recebendo críticas do mercado. Agora, o mercado, exatamente o financeiro, está postulando que é preciso reduzir os juros, mesmo que a inflação não caia, para salvar a economia.
Sócio da JGP, André Jakurski avalia que o Brasil “está mais ‘isolado desse problema global’ [a crise dos bancos] e, portanto, menos suscetível aos riscos de contaminação. ‘Os bancos brasileiros são mais resilientes e têm menos problemas’”.
André Jakurski afiança que “o Brasil ainda é uma economia muito fechada. Nosso endividamento externo é o.k. Nossa dívida nominal é alta, mas não me assusta de imediato. Então, acredito que o Brasil está bem defendido”. Porém, o economista assegura que o crescimento do PIB em 2023 será “medíocre” — por causa “da baixa produtividade, débil taxa de investimentos e o alto ‘custo Brasil’”.
Afinal, o capitalismo sai dessa, mesmo se a crise for mais profunda do que parece? Tudo indica que sim, e talvez ainda mais forte. Até a próxima crise. Uma espécie de eterno retorno. Frise-se, por fim, que o Silicon Valley Bank (SVN), um dos falidos de maneira irreversível, era o “banco das startups”. Financiava o que há de mais moderno e promissor na economia dos Estados Unidos. Porém, era mal gerido. Ao mesmo tempo, nem todas as empresas do admirável mundo tecnológico são lucrativas e sólidas. Será possível sugerir que o capitalismo “quebra”, não para sucumbir, e sim para avançar? Mais do que uma tese, é uma hipótese.