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A violência não vai acabar, mas pode ser reduzida com a construção de uma sociedade que, sem buscar a utópica perfeição, proponha autocontrole, senso moral e razão

Sísifo, de Tiziano

As revoluções tecnológicas, decisivas para facilitar o dia a dia das pessoas, estão muito adiante daqueles que as produzem. São muito mais modernas e criam uma certa ilusão de que o homem mudou profundamente — e sempre para melhor. A ideia de progresso contínuo, incontornável — quiçá rumo ao nirvana, o fim da história liberal, ou o fim da história de esquerda, o comunismo —, esconde o fato de que os homens, se avançam, também podem recuar. A civilização e a barbárie às vezes, mesmo não se irmanando, podem conviver, lado a lado, no mesmo período histórico.

No século 20, tido como o século do primado da modernidade, portanto das grandes “descobertas” (medicamentos e computadores, por exemplo), o mundo assistiu, nada boquiaberto, dois extremos que se atraíram e, em seguida, se atacaram: o comunismo, a partir de 1917, com a Revolução Russa, e o nazismo, que levou Adolf Hitler, um cabo austríaco, ao poder na Alemanha de Goethe e Thomas Mann, em 1933. O nazismo ficou 12 anos no poder. O comunismo comandou a União Soviética, com seus países-satélites, por 74 anos (uma gota d’água no oceano, por certo, mas não para os que viveram sob os extremos do totalitarismo).

Os governos comunistas, sobretudo os de Ióssif Stálin, na União Soviética, e de Mao Tsé-tung, na China, mataram, segundo pesquisas de vários estudiosos, cerca de 100 milhões de pessoas. Trata-se do maior genocídio da história. Curiosa ou sintomaticamente, as pessoas dão a impressão de que “perdoam” tais crimes. Porque, exatamente, não se sabe. Apresenta-se neste Editorial uma explicação exploratória. Movimentos políticos e sociais, quando falam em nome da redenção (do bem) da humanidade, na construção da sociedade de iguais — o mundo perfeito —, aparentemente “podem” fazer qualquer coisa, inclusive eliminar pessoas, e não raro de maneira indiscriminada. As boas intenções da “teoria” camuflam o resultado — a brutalidade com que tais regimes tratam os indivíduos, destruindo-os ou retirando-lhes a liberdade.

O nazismo é uma página “morta” na história, o que não equivale a sugerir que movimentos semelhantes não possam ressurgir (frise-se que neonazistas são meros simulacros dos nazistas de Hitler, Himmler, Goering e Goebbels e não têm qualquer enraizamento social). Afinal, o homem, ao recriar a história, reinventa farsas e tragédias. O comunismo, mesmo enfraquecido, ainda não é uma página “virada” na história. Mesmo tendo escrito um livro notável, “O Fim da História e o Último Homem” (Rocco, 492 páginas), o filósofo americano Francis Fukuyama errou a mão: o liberalismo pode ter vencido os primeiros rounds, mas, quando se trata de embate histórico, não há vitória definitiva e incontornável.

As guerras e as matanças não vão acabar. As sociedades perfeitas — descritas em utopias e, por vezes, em distopias — são uma impossibilidade. As nações lutam contra os “anjos maus de nossa natureza” tentando produzir em série “homens institucionais”. Quer dizer, indivíduos cumpridores das leis, avessos à violência, à burla. O receio de ser condenado e preso — o que distancia os homens das delícias da vida e do mais doce alimento, a liberdade — faz com que a maioria das pessoas, acatando a civilidade das leis, se comporte. Ao se comportar, a maioria não mata, não rouba e não estupra. As leis, que representam “repressões” e “interdições” consensuais, são, sobretudo, métodos civilizatórios. Internalizar o que não se deve fazer, de tal maneira que se torne um comportamento (uma prevenção, digamos), é um dever dos “homens institucionais”.

O psicólogo Steven Spinker, professor de Harvard e autor do livro “Os Anjos Bons da Nos­sa Natureza — Porque a Violência Di­minuiu” (Companhia das Letras, 1088 páginas, tradução de Bernardo Joffily e Laura Teixeira Motta), na contramão do que jornalistas publicam, estribados em pesquisas nem sempre confiáveis — o que não quer dizer que sejam falsas (um dos problemas é a interpretação deficiente e politizada) —, sustenta que a violência diminuiu. Da Idade Média para cá, a taxa de homicídios, em vários países da Europa, caiu entre 90% e 98%. A mortandade da Primeira Guerra Mundial, entre 1914 e 1918, e a da Segunda Guerra Mundial, de 1939 a 1945 — passando pelos massacres comunistas —, oculta o que se pode chamar de uma certa “pacificação”.

Uma certa “pacificação” não quer dizer que os homens não possam continuar assassinando — o Estado Islâmico não economiza bombas, a Síria sugere que a barbárie persiste, os civilizados americanos continuam matando com ou sem drones, a Coreia do Norte ameaça usar bombas atômicas — em guerras ou em confrontos diretos nas ruas ou dentro de suas casas. Steven Pinker indica que autocontrole, empatia, senso moral e razão, “anjos bons”, lutam contra (e às vezes vencem) a predação, a vingança e o sadismo, os “demônios”. Enfra­quecer a barbárie que “habita” o ser do homem, espécie de instinto como segunda pele, é uma das missões dos que apostam no primado dos “anjos bons da natureza humana”. Enfraquecer o senso de destruição — a maldade daí decorrente — não é o mesmo que extingui-lo. A luta para suavizar os espíritos, para gestar uma sociedade menos conflituosa e avessa à violência, é necessária e, claro, possível.

Controlar a violência — torná-la, digamos, “su­portável” — é um avanço. A redução da violência é possível, com medidas legais introjetadas pelos homens. Mas acreditar que a violência será inteiramente domada é uma fantasia, quiçá uma utopia.

Quando um adolescente mata duas pessoas e fere várias outras, co­mo ocorreu numa escola em Goiâ­nia, na semana passada, a sociedade começa a se discutir, o que é saudável. Entretanto, como o debate tor­na-se não raro histérico, com o objetivo de produzir “culpados” a granel — a família estaria “destruída” (“culpa” da esquerda, sugerem al­guns conservadores), a escola estaria “falida”, deve se “proibir” a venda de armas—, não se chega a conclusões amplas e, por assim dizer, “compreensivas” do fenômeno.

Um dos entraves ao debate mais luminoso é tomar um problema singular como se fosse geral, o que produz a conclusão de que a sociedade está falida, quando não está (repetimos: não é possível construir nenhuma sociedade perfeita e, quase todas as vezes que tentaram, longe de edificá-la, criaram uma ditadura). Há problemas na sociedade brasileira — a violência é uma das delas. Mas é uma violência extremada, sem controle? Não é. É provável, até, que a “sensação de violência” seja maior do que a violência em si. Poucas vezes jovens saem matando pessoas nas ruas e nas escolas. Aquele que se interessa pelo assunto das drogas fica com a impressão, não raro, de que “todo mundo” está usando drogas. Quando, na verdade, a maioria não usa cocaína, crack, heroína, ecstasy e, mesmo, maconha.

Para as pessoas que tiveram pa­rentes mortos e feridos, uma discussão nuançada chega a ser absurda e, inclusive, intolerável. Das “vítimas”, diretas ou indiretas, não se deve cobrar comportamentos absolutamente compreensíveis, sobretudo em cima dos fatos. Elas vão condenar tudo e todos, bradando contra as autoridades e, mais uma vez, transformando os políticos na escória da sociedade (os políticos são “ó­ti­mos” para todos nós porque “permitem” que possamos esconder nossas “falhas”, pequenas que sejam, com a ampliação dos “problemas” deles).

Aos que não estão envolvidos diretamente, exceto pelo fato de viverem na mesma sociedade, talvez seja o caso de cobrar mais racionalidade e menos histeria. Abrir uma discussão mais ampla, inclusive menos sobre “condenação” e mais sobre “compreensão”, talvez seja uma porta aberta, se não para resolver, ao menos para reduzir a violência. Violência, insistamos, que vai sempre reaparecer, porque o homem, por mais que tenha melhorado, é um ser que mata e destrói, em pequena e em grande escala. Nem todo homem é um bárbaro sob a capa do civilizado. Mas o bárbaro, mesmo “controlado” pela repressão, às vezes quer sair — e às vezes sai. Aí pode agredir e matar. O bullying deve ser condenado, porque é, sim, doloroso. Mas matar, como resposta ao bullying, é muito mais brutal. A diferença de gradação é imensa, mas quem sofre as piadas e pressões não pensa assim. Palavras, que podem ser ferinas e cortantes, assemelham-se a atos, se tornam atos, dependendo da sensibilidade daquele que se sente agredido.

Os pais do menino que matou outros garotos são militares e, por isso, têm armas em ca­sa. Ter uma arma na residência significa que as pes­soas tendem a sair matando? Isto pode acontecer, eventualmente, mas não há evidência de que seja uma regra. Ser dono uma arma não transforma o indivíduo num assassino em po­tencial. Mas discutir a questão, sem a mera condenação dos que defendem que os cidadãos tenham direito ao uso de armas, é positivo. Vive-se numa democracia e é preciso ser to­lerante com a diferença, com o pensamento e a ação divergentes. Todos cobramos democracia, para nós, mas às vezes esquecemos de que os outros também têm direito aos ventos democráticos. l