Condomínios horizontais estariam criando cidades feudais em pleno capitalismo?
30 abril 2023 às 00h00
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Os condomínios horizontais — “fechados”, como dizem, por causa dos muros e proteção de cercas elétricas e vigilantes armados — são uma tendência, ao menos no momento (porque as cidades mudam ao longo do tempo), incontornável. Em Goiânia, capital de Goiás, há vários: Aldeia do Vale, Portal do Sol, Jardins, Plateau D’Or, entre outros. Há também a nova moda, os condomínios de chácaras (com cerca de 3 mil a 5 mil metros quadrados), porém um pouco mais afastados dos centros urbanos.
O sucesso é tão grande que os condomínios horizontais foram estendidos pelas empresas para Aparecida de Goiânia, Anápolis, Catalão, Rio Verde e outras cidades (no Entorno de Brasília, por exemplo).
Os condomínios horizontais são bonitos, com arquiteturas modernas (às vezes, aqui e ali, com estilos misturados e, até, contrastantes). Há casas que parecem derivadas da arquitetura de Oscar Niemeyer, ou seja, há residências que, de tão belas, são verdadeiras esculturas a céu aberto. Há também construções padronizadas, criando uma uniformidade em meio a certa diversidade. Algumas, de tão amplas, perderam o quintal — o que é compensado pela área coletiva dos condomínios.
Muitos dos condomínios, como o Aldeia do Vale (à margem da BR-153), se preocupam com a preservação das árvores e, também, dos animais. Quase todos são muito bem arborizados — o que é um convite para a volta de pássaros (bem-te-vi, sabiá, joão-de-barro, choquinha lisa, sanhaço, alma-de-gato, canário-da-terra). Em alguns deles há lagos, como no Alphaville, em alguns dos Jardins e no Aldeia do Vale.
Em termos de ajardinamento, o trabalho dos condomínios é, no geral, irrerocável. Supera, em muito, o trabalho das prefeituras (e deveria inspirá-las). Há cuidados especiais, com mãos profissionais.
É certo que, em alguns, mas não em todos, prevalece uma visão “ornamental”, digamos assim, da natureza. Os moradores, em geral uma minoria — os chamados “donos” dos condomínios (a minoria participa das reuniões, e os inadimplentes, que são muitos, não podem opinar) —, cansam-se de determinadas plantas, então convencem os síndicos e zeladores a arrancá-las e plantar espécies novas, mais vistosas.
Até os belos jacarandás “sofrem” nas mãos daqueles que avaliam que árvores podem ser plantadas e, depois de cinco ou dez anos, devem ser arrancadas. O que os visitantes vão dizer daquilo que permanece belo, com suas flores lilases, mas não parece tão belo, porque a árvore está um pouquinho “torta”? Plantas não são celulares e automóveis, mas, com o entranhamento do “inconsciente capitalista”, tudo “precisa” ser trocado de tempos em tempos — até para “valorizar” os imóveis. Tudo precisa de uma cara “nova”, de uma “plástica”, por assim dizer.
Quase todas as casas têm cachorros e, em várias, gatos. Porém, quando aparece um “gato de rua”, o susto é geral. Porque predomina uma visão higienista. Prevalece aquele velho medo de quase tudo, sobretudo das doenças e do “desconhecido”. Um gato é, para muitos, um monstro, aquele monstro que pode habitar as neuras de alguns, desde a mais tenha infância.
Cidades feudais e o caráter avesso às causas coletivas
Numa recente entrevista ao Jornal Opção, o prefeito de Aparecida de Goiânia, Vilmar Mariano, do Patriota, fez o elogio dos condomínios horizontais — que nomina de “fechados”. Chegou a sublinhar que é “apaixonado” pelo novo modelo de bairro. O gestor municipal frisa que, como cuidam de suas próprias áreas — como limpeza, roçagem de áreas coletivas etc —, sobra dinheiro para a prefeitura investir nos demais bairros. “Até o asfalto é feito por eles”, entusiasma-se.
Vilmar Mariano está dizendo a verdade. São os condôminos que arcam com as despesas internas — como se fossem “socialistas dos subúrbios”, diria um urbanista norte-americano. Personagens indiretos de contos de John Cheever.
Antes do que se vai ler a seguir, é preciso dizer: os condomínios horizontais não resultam de mentes “malévolas” ou “perversas”. Os empresários do ramo imobiliário estão dando às pessoas aquilo que elas, a rigor, querem. Quer dizer: áreas limpas, casas de qualidades e, sobretudo, segurança.
Num país onde a violência é grande — com o crime organizado (PCC, Comando Vermelho e Novo Cangaço) à solta — é natural que as pessoas busquem proteção para si e seus bens. O isolamento social — com a criação de ilhas de segurança (em geral, dois vigilantes uniformizados, com coletes a prova de bala e armados com revólveres, nada tão potente quanto os fuzis e metralhadoras dos criminosos especializados) — é uma tentativa de viver mais protegido. O que é lícito.
Quem mora nos condomínios horizontais não são apenas os muito ricos. Pelo contrário, eles se tornaram uma espécie de “fetiche” das classes médias — graças aos financiamentos bancários ou da própria construtora. É provável que um “censo”, mesmo aleatório, mostre que a maioria dos moradores dos condomínios não é afortunada. São profissionais liberais e trabalhadores que têm ganho ou um salário um pouco superior ao da maior parte.
Em suma, é um direito do cidadão morar e viver bem, com segurança. Com áreas de lazer tranquilas e bem cuidadas.
Vale, porém, abrir um debate de teor sociológico e urbanístico sobre os condomínios horizontais. Não será feita uma discussão ampla, até porque é preciso recorrer a sociólogos, urbanistas, arquitetos e, quem sabe, antropólogos.
Por que está se discutindo a questão, assim tão de repente, e a respeito de algo que se tornou consenso, portanto é “positivo”?
Porque talvez se esteja construindo um novo tipo de sociedade, com as pessoas sendo dispostas em espécies de “guetos”. Tais indivíduos estão sendo isolados dos problemas reais das outras pessoas — como se habitassem ilhas de privilégios. Talvez a cousa possa ser resumida assim: “Nós estamos bem, o resto que se exploda”. Na verdade, é injusto sugerir que quem mora num condomínio horizontal perca inteiramente a sensibilidade social. O que se está dizendo é que as pessoas estão sendo afastadas dos problemas vividos pela maioria e, por isso, tais problemas deixam de interessá-las.
No tempo do Feudalismo (o Capitalismo nasceu nos seus poros, sugeriu o economista alemão Karl Marx), em busca de proteção, os homens construíram cidades muradas. De alguma maneira, as sociedades modernas estão se tornando feudais, com várias cidades cercadas (os condomínios horizontais) dentro de cidades maiores, isolando núcleos de pessoas umas das outras. Dentro, os ricos e as classes médias. Fora, as classes médias “baixas” e os pobres. Duas sociedades reais, mas uma parecendo virtual, quiçá utópica, e, por vezes, gerando comportamentos socialmente mesquinhos e nada politicamente corretos em termos ambientais.
Os “povos fechados” — membros da “sociedade do medo”, fugindo de quase tudo — não têm mais problemas? Pode se falar que os condomínios criaram o Céu na Terra? Na verdade, em termos de segurança, o problema parece em geral “resolvido”, em termos de escapar das garras do banditismo. Porém, há brigas internas (alguns maridos não deixaram de bater em suas mulheres), troca de tapas entre valentões, consumo de drogas, expressão vocabular grosseira, tratamento mal educado com funcionários etc. (Comenta-se que, num condomínio, um vigilante se suicidou. Há alguma notícia sobre o assunto? Nenhuma. Num deles houve um estupro de uma menor? Há notícias sobre o assunto? Nenhuma.) Os problemas nunca ficam inteiramente de “fora”. Acrescente-se que, em dois condomínios — um deles “luxuoso”, como dizem —, foram presos líderes de facções do crime organizado. Pareciam moradores “comuns”, com seus carros importados — devidamente apreendidos pela polícia — com valores acima de 500 mil reais. Era “gente de bem” até ser presa como “gente do mal”. O mal às vezes se instala e, até, toma a aparência do bem — “contaminando” ambientes e pessoas — em qualquer lugar.
Recentemente, funcionários do Empório Prime estavam sentando-se nas proximidades de um condomínio, que, apressadamente, decidiu colocar plantas para isolá-los ou afastá-los. É o velho temor dos homens das ruas, ou seja, dos pobres. O supermercado de fato errou ao não criar uma área comunitária para seus funcionários descansarem. Mas os condôminos — não todos, é claro (a maioria nem sabe o que está acontecendo) — também erram a tentar evitar contato com os “diferentes”, que estão apenas descansando e não oferecem risco algum. O filósofo Jean-Paul Sartre — “o inferno são os outros” — certamente diria que o mal pode estar “dentro” e não “fora”. Pode estar em nós, e não necessariamente no outro, naquele que, não compreendido, “assusta” os altamente protegidos.
Ao criar “sociedades isoladas”, com supostos cidadãos modelares — “castas de iguais” —, os condomínios (apontados aqui como “agentes”, contrariando a gramática, o normativo) contribuem para reduzir a convivência entre as classes sociais, sobretudo nos momentos de lazer. Ao dificultar os contatos sociais, os condomínios contribuem para reduzir a percepção social e, portanto, para diminuir o entendimento de que há causas coletivas, e não apenas de grupos.
Os urbanistas e arquitetos hão de discutir de maneira mais adequada a questão das “ruas”, mas apontemos ao menos uma questão. Por serem cercados, os condomínios não permitem ruas — passagens —, e sim corredores. Para chegar a determinados lugares, é preciso dar voltas longas, o que, de alguma maneira, trava o trânsito. Não se tem mais caminhos alternativas. O que se tem são rotas determinadas pelos construtores dos condomínios.
Como se disse acima, os condomínios, na fase atual do desenvolvimento das cidades, são incontornáveis. Porque é um desejo das pessoas, e não puramente de empresários supostamente “gananciosos” (muitos deles são modernos, de mente arejada). Mas é uma questão que vale discutir, não para acabar com os condomínios, porque isto é impossível e não desejável — e sim para ampliar o diálogo a respeito da sociedade que os brasileiros querem construir. Será a sociedade do “nós aqui”, protegidos, e “eles lá”, desprotegidos?