Governador poderia ter fechado com articulação que saiu vitoriosa, mas preferiu manter-se fiel ao projeto de eleger Álvaro Guimarães até a penúltima hora 

Vitória maiúscula de Lissauer Vieira foi pautada pelo discurso de independência, com a promessa de boas relações com o palácio | Foto: Divulgação

A cena política de Goiás ainda levará um tempo para decifrar todas as minúcias envolvidas na derrota do Palácio das Esmeraldas na eleição da Mesa Diretora da Assembleia Legislativa. Um grande detalhe, no entanto, já pode ser avaliado: o governo poderia ter saído dessa situação como vitorioso, mesmo mantido o resultado que sagrou o deputado estadual Lissauer Vieira (PSB) como novo presidente da Casa. Porém, preferiu a dissensão.

Como pano de fundo dos acontecimentos, um dilema ético parece ter colocado o governador Ronaldo Caiado (DEM) na difícil situação de precisar mudar seu posicionamento no meio de uma partida que parecia vencida. Sim, difícil, muito difícil, mas também corriqueira para qualquer ocupante do Executivo em suas relações com o Legislativo. A ele e a seus articuladores políticos cabe agora avaliar, com cuidado, como jogarão as próximas partidas tendo em vista a necessidade de emplacar medidas urgentes para a administração, dependendo sempre de boa vontade do parlamento.

Como se sabe, o governador Ronaldo Caiado (DEM) honrou um compromisso assumido, ainda no ano passado, de apoiar seu correligionário Álvaro Guimarães à presidência da Assembleia. Foi a campo, declarou sua preferência e mobilizou seus articuladores para efetivar o projeto. Em suas mãos, tinha um candidato leve e, em função da conjuntura, um clima favorável no legislativo estadual: cacife político pela vitória no primeiro turno das eleições de 2018 e toda a onda de mudança indicada pelas urnas.

Em um primeiro momento, esses fatores funcionaram muito bem para a consolidação de Álvaro como favoritíssimo à eleição da Mesa Diretora. Quase instantaneamente, diversos parlamentares começaram a declarar apoio ao colega. De fato, como decano da Casa, o advogado e empresário nascido em Itumbiara é benquisto e respeitado pelos seus pares, que conviveram com ele em mais de 32 anos de vida pública (são cinco mandatos e duas suplências como deputado estadual). Ele caminhava para uma votação unânime.

Ao mesmo tempo, nesses primeiros dias, o Governo Caiado encontrou no parlamento uma oposição apenas pontual: ainda se recuperando da sova que recebeu das urnas no ano passado e incapaz de arregimentar um verdadeiro grupo com ideias coesas. A facilidade com que aprovou as primeiras matérias na Casa ilustra bem essa situação: o projeto da reforma administrativa do Estado e o decreto de calamidade financeira obtiveram aprovação expressiva – e sem a necessidade de negociações desgastantes.

Sem dúvida, a aceitação do nome de Álvaro e a vitória nas votações eram sinais de tranquilidade no horizonte do novo governo, em um cenário no qual também figurava a boa relação que Caiado mantém com Brasília. Mesmo com crises tópicas, principalmente na área econômica (com o não pagamento da folha de dezembro do funcionalismo, em primeiro lugar), era geral a expectativa de que a administração iria engatar rapidamente. Que poderia, a qualquer momento, impor uma pauta positiva para a sua gestão.

Acontece que a partir de certo ponto, com o cálculo auspicioso de votos em mãos, a receita da articulação governista começou a desandar na Assembleia. Faltou especialmente o que o próprio verbo “articular” significa em política: ajustar partes com interesses conflitantes para encontrar uma solução razoavelmente satisfatória para todos. Em vez disso, o que se viu foram dissidências, inclusive no próprio DEM, partido de Álvaro e do governador.

Outros descontentes apareceram e quem ouvia as reclamações de vários deputados nos bastidores, entendia rapidamente o recado: certo de que ganharia a parada com facilidade, o governo pedia “amém” a uma proposta de Mesa Diretora sem discutir (nem mesmo ouvir, em muitos casos) o que cada parlamentar gostaria de obter de espaço na Casa. Postos-chave em comissões e frentes parlamentares ou na liderança de partidos e bancadas, posições na própria assembleia, no governo e até compromissos quanto à futura eleição municipal e a vagas nos tribunais de contas são natural e silenciosamente disputados palmo a palmo quando se elege uma Mesa.

Mas a crítica não se resumia a essa discussão por espaços, que o senso comum costuma condenar como mesquinha – o certo é que só os ingênuos acreditam que autonomia parlamentar, de fato, se consegue apenas com belos discursos na tribuna ou em vídeos “lacradores” nas redes sociais. Além disso, decisões administrativas do governo, desgastantes para alguns segmentos representados pelos deputados, foram tomadas sem devidas consultas ao parlamento. Algo entendido por muitos como prenúncio de uma longa temporada de relações unilaterais com o palácio.

Ou seja, outro argumento entrou com força nas discussões entre os deputados, dando vida a uma nova articulação: a própria independência do Legislativo diante do Executivo. Em todas as falas desses descontentes, estava lá o componente de crítica ao que chamavam de imposição “de cima para baixo” com a chapa de Álvaro. Argumentavam, com certa razão, que a eleição da Mesa é um momento emblemático, com força para ecoar pelos próximos dois anos da legislatura. Seria preciso demarcar território de imediato para provar que a Casa não é (nem pode ser) subserviente.

Contudo, o martelo quanto a esses questionamentos começou a ser batido na terça-feira, 22, na ida do governador à Assembleia Legislativa. Em meio à sessão extraordinária, convocada para debater os projetos emergenciais enviados pelo governo, Caiado compareceu para pedir o apoio dos deputados. Entretanto, ao ser questionado por opositores, reagiu em alguns momentos com a veemência que lembrou o parlamentar combativo que ele sempre foi. Na avaliação da maioria dos presentes, um tom desnecessário para um ocupante do Executivo.

Parlamentares da própria base do governo chegaram a atuar como bombeiros para tentar restaurar o clima favorável que o governador desfrutava na Casa até então. Em certa medida, foram bem-sucedidos pois, como já mencionado, os projetos do Executivo foram aprovados sem dificuldades. Porém, alguma coisa, que já estava trincada, acabou quebrando de vez. Mais e mais deputados participavam de reuniões para viabilizar uma chapa independente na eleição da Mesa.

Assim, a nova articulação entrou na última semana com pelo menos 28 votos, ou seja, sete a mais do que o necessário para estabelecer a vitória. O nome de Lissauer Vieira foi o escolhido principalmente por suas qualidades pessoais. Considerado pelos colegas como moderado, diplomático e conciliador, ele ainda possui características que, em tese, deveriam ser mais do que suficientes para agradar o palácio: já afirmou que não pretende fazer oposição a Caiado, além de ter como bandeira em sua atuação política o tradicional segmento defendido pelo governador, o agronegócio.

Na terça-feira, 29, Lissauer já era o virtual presidente da Assembleia, quando os deputados Iso Moreira e Dr. Antônio (os primeiros do DEM a questionar a candidatura de Álvaro) o levaram para uma conversa com Caiado. Aconteceu pouco antes da meia-noite, no Palácio das Esmeraldas. Diante do novo cálculo de votos parlamentares, a expectativa era de fazer uma composição, integrando a articulação do governo à candidatura de Lissauer. Algo que propiciaria, provavelmente, uma votação unânime na eleição da Mesa. Mas a conversa não deu certo.

Não se sabe o que o governador cogitou intimamente, naquele momento em que se negou a anuir à proposta da maioria expressiva dos deputados. Sabe-se, com certeza, que uma postura mais flexível e pragmática seria já posar para uma foto com Lissauer, ali mesmo no palácio, iniciando um correto discurso de respeito às decisões internas do parlamento e de disposição para trabalhar harmoniosamente para o bem de todos os goianos etc. Observadores do processo, contudo, afirmam que essa nunca seria a postura a ser esperada do governador.

Estão enganados. A própria biografia de Caiado é um registro intocável em defesa da autonomia do parlamento. Foram cinco mandatos de deputado federal e quatro anos como senador da República, sempre com independência exemplar. Liberta de amarras com governos, sua voz na tribuna ecoou não apenas em Goiás, mas em todo o país – sendo, por isso mesmo, considerado por muitos, incluindo opositores, como o melhor tribuno que Goiás já produziu. Esse tempo também lhe ensinou a necessidade de traquejo e a importância de recuar para se obter o que quer.

Portanto, o mais coerente com sua biografia seria apostar na análise de que o governador não refluiu principalmente em função de seu compromisso pessoal firmado com Álvaro. Uma questão de ética pessoal e não uma teimosia diante de uma decisão majoritária dos deputados. Mesmo diante da proposta de paz negociada, feita “de coração aberto” (como relatado pelos parlamentares), ele preferiu não dar um passo atrás, o que poderia não apenas amenizar o gosto amargo de uma derrota, mas lhe garantir um clima muito mais sereno nas futuras relações com o parlamento.

Na quarta-feira, no entanto, o senso ético em defesa de Álvaro Guimarães foi deslocado para uma frustrada tentativa de substituição de seu nome pelo do jovem deputado estadual Henrique Cesar, do PSC. Não deu certo porque o cenário já estava completamente desenhado e o governo já sabia disso. Antes do fim do dia, Lissauer já somava 31 votos (e poderia chegar a 33, segundo o cálculo de alguns analistas).

Com quase 24 horas de atraso, a articulação do governo finalmente viu a inviabilidade de seu projeto e tentou uma composição, colocando Álvaro na vice-presidência de uma chapa única com Lissauer. Mas já era tarde. Colocada à apreciação do grupo, na mesma noite de quarta-feira, a proposta foi rejeitada. Na quinta-feira, diante dessa negativa, a articulação do governo continuou tentando negociar com alguns deputados. O grupo, contudo, estava fechado (e inclusive isolado fisicamente fora da cidade).

O céu intensamente azul da sexta-feira ajudou a emoldurar a sensação de triunfo da articulação independente dos parlamentares. A vitória de Lissauer, por 37 votos, emite sinais importantes que precisam ser interpretados e processados rapidamente pelos operadores políticos do Executivo. É necessário que captem o discurso de conciliação proposto pelo novo presidente e apertem sua mão com sinceridade. Por hora, é o único caminho a ser tomado para a governabilidade.