Cientista político diz que sucesso na esquerda na América Latina pode não durar muito tempo
21 agosto 2022 às 00h00
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O cientista político Christopher Garman, da consultoria Eurasia, concedeu uma entrevista ao jornalista José Fucs, do “Estadão”, que merece repercussão.
Recentemente, a esquerda assenhorou-se de vários governos na América Latina — Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, México, Peru —, por meio de eleições. Significa que há uma esquerdização da região? Garman postula que não: “Isto não está acontecendo por causa de uma predisposição dos eleitores em favor de plataformas de esquerda. É um movimento de revolta contra o status quo. A América Latina está vivendo um momento muito difícil para qualquer governante. Este é o pano de fundo que a gente tem de reconhecer. (…) Quando a gente olha as pesquisas, a América Latina aparece no topo do ranking global de desencanto. (…) Estamos vivendo um ambiente de insatisfação muito grande com a qualidade dos serviços públicos, com a falta de confiança no sistema de forma mais ampla. A confiança nas lideranças políticas, nos partidos, no Judiciário, na mídia está no nível muito baixo na região”.
O desencanto da população é explicado assim por Garman: o “fenômeno é fruto de uma expansão brutal da classe média durante o período de alta dos preços das commodities, do início dos anos 2000 até 2011, 2012. Nesse período, houve uma ascensão econômica muito importante, em que milhões de famílias saíram da pobreza. Isso levou a uma mudança nas demandas eleitorais. A preocupação passou a ser mais a segurança, a saúde, a educação, e o eleitor associou a corrupção à má qualidade dos serviços públicos”. Foi a corrupção, antes da pandemia, que gestou o descrédito no sistema no Brasil, Chile, Colômbia, México e Peru. “O que a gente está vendo é uma combinação deste choque de falta de confiança com as novas demandas de uma classe média emergente que são difíceis de entregar num contexto de crescimento econômico mais baixo”.
Com a pandemia, registra Garman, “houve uma queda mais acentuada do PIB, a desigualdade de renda aumentou e a capacidade de os governos entregarem essas demandas caiu. Isso exacerbou esse mal-estar. Para completar, veio o choque de inflação global que reforçou a queda de renda das famílias mais pobres. Este é o caldeirão de revolta que está elegendo a esquerda na região. É um movimento mais contra o status quo e não a favor da esquerda. Como mais governos de direita e de centro estavam no poder, eles estão sentindo mais. A esquerda estava mais bem posicionada para navegar nesta onda de revolta”.
Manuel López Obrador, no México, Gustavo Petro, na Colômbia, e Gabriel Boric, no Chile, foram eleitos, de acordo com Garman, não porque são de esquerda, e sim porque se posicionaram contra o sistema. “O próprio Bolsonaro foi eleito neste cenário. Por isso, discordo da ideia de que a eleição de 2018 foi atípica no Brasil e que agora nós vamos voltar a valorizar a experiência administrativa, o político mais tradicional. É um diagnóstico totalmente equivocado. O desencanto agora piorou e não melhorou. É isto que explica a existência de duas candidaturas com credenciais contra o sistema do país”. Bolsonaro e Lula da Silva são vistos, de alguma maneira, como candidatos anti-sistema. A tese de Garman contraria a análise de vários cientistas políticos e pesquisadores.
A esquerda está voltando ao poder na América Latina, e tem chance de retomá-lo no Brasil. Mas o quadro atual não equivale ao período anterior, em que Lula da Silva e Dilma Rousseff foram eleitos, porque há uma crise econômica tanto interna quanto externa. Por isso, Garman enfatiza que o “ambiente de desencanto vai impactar a esquerda politicamente. Os governantes vão ter uma lua de mel curta e uma taxa de aprovação popular estruturalmente baixa. A capacidade de governar vai ser difícil. Acredito que a capacidade de os governantes se reelegerem também vai diminuir estruturalmente”.
Gabriel Boric chegou ao poder no Chile nos braços do povo, por assim dizer. Porém, em menos de seis meses, “sua aprovação já caiu para cerca de 30%. (…) Está mais baixa do que a de Bolsonaro no Brasil. A aprovação de Bolsonaro hoje está em 39%”. Garman avalia que Gustavo Petro tende a se tornar impopular, assim como já ocorre no Peru, com Pedro Castillo. O presidente argentino Alberto Fernández, sugere o cientista político, “não deverá ser reeleito em 2023. O kirchnerismo dificilmente vai sobreviver às próximas eleições”. Talvez seja possível fazer uma ressalta ao que assinala Garman. Há a possibilidade de Cristina Kirchner se apresentar como candidata a presidente, senão como candidata de oposição, porque pertence ao grupo de Fernández, mas como quase-de oposição. Ela seria uma espécie de oposição que, na verdade, é situação. Note-se que tem se atritado com Fernández.
Recentemente, o economista Paul Krugman notou que a alta nos preços commodities pode reduzir a crise no Brasil. Porém, há um ponto forte e um ponto fraco, na visão de Garman: a comercialização de produtos no mercado internacional, como soja e ferro, “ajuda o governo do lado da arrecadação. Mas, em termos de trocas, não está ajudando muito, porque os preços das importações, especialmente de insumos, também subiram muito. Há um ambiente de preços de commodities elevados, mas a renda caiu de forma brutal no Brasil e em outros países. A sensação de bem-estar econômico não está acompanhando este ciclo de commodities”. O pesquisador assinala que a recessão nos Estados Unidos “deverá conter” a “alta das commodities”.
Do ponto de vista político, assiste-se, neste momento, uma estabilização de Lula da Silva, em primeiro lugar, e um ligeiro crescimento de Bolsonaro. Segundo o Datafolha, o petista ainda pode ganhar no primeiro turno — a última pesquisa indica que tem 51% dos votos válidos. Porém, Bolsonaro está avançando, lentamente, e ampliando sua frente entre os eleitores evangélicos. Garman menciona o favoritismo do candidato do PT, mas admite que “Bolsonaro ainda tem uma chance na disputa presidencial, a despeito da má gestão da pandemia e de ter havido uma queda de renda de 6%”.
Vale sublinhar que, neste momento, a quarenta dias das eleições, Lula da Silva ainda busca ampliar sua frente política. O objetivo é tentar ganhar no primeiro turno. Porém, como é dotado de grande astúcia, o petista joga também para, se necessário, chegar mais encorpado no segundo turno, possivelmente com o apoio do PDT — com ou sem Ciro Gomes — e com o MDB de Simone Tebet. Parte do emedebismo, por sinal, já está na campanha do ex-presidente.
Lula da Silva, se eleito, vai contar com um Congresso em parte hostil, com uma direita atenta e agressiva. Por isso, de maneira inescapável, terá de recorrer ao Centrão, como fiel da balança. Os que acreditam num mundo irreal certamente terão de se acostumar com os personagens do governo Bolsonaro, no caso de o petista sagrar-se vitorioso, militando, firme e ativamente, na próxima gestão. Aqueles que estão descontentes com o sistema, com a relação de Bolsonaro com o Centrão, continuarão descontentes, possivelmente.
Garman não discute a questão de maneira ampla, mas o discurso de Bolsonaro atacando as instituições, como o Supremo Tribunal Federal — e não apenas o ministro Alexandre de Moraes —, incomoda milhares de brasileiros que não são simpáticos a Lula da Silva, mas que caminharão com o petista porque, em tese, não é uma ameaça à democracia. Parte das elites econômicas sabe que o discurso autoritário e equivocado (sobretudo, mal-informado) a respeito de alguns temas (como meio ambiente) do presidente prejudica o país. Por isso correu para os braços do postulante red. Os brasileiros querem caminhar para frente e Bolsonaro procura puxá-los para trás, para um passado mítico e mágico, até fundamentalista.
Porém, os que acreditam que Lula da Silva vai assumir o governo e a crise vai desaparecer, já em 2023, certamente sairão às ruas para criticá-lo, se for eleito em 2022, em 2026. Bolsonaro poderá perder, mas a direita certamente estará no jogo no futuro. Afinal, políticos antissistema estão quase sempre na moda.