Cármen Lúcia sugere que está nascendo um Brasil que respeita as instituições e as leis
03 fevereiro 2018 às 10h10

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A liberdade é um fato da democracia. Mas o cumprimento das leis e das decisões das instituições é que criam um país sólido e uma sociedade aberta

O magistrado e historiador francês Alexis de Tocqueville visitou os Estados Unidos, no século 19, com o objetivo de conhecer seu sistema penitenciário. Suas pesquisas resultaram na publicação do livro “A Democracia na América”, lançado no Brasil em dois volumes, com tradução de Eduardo Brandão, pela Editora Martins Fontes.
Ao examinar a sociedade americana, com o objetivo de entender seu espírito-âmago, Tocqueville sugeriu, entre outras coisas, que o cumprimento das leis e o respeito às instituições, tanto pelo povão quanto pelas elites, havia gerado uma nação profundamente democrática, avessa a golpes de Estado e solavancos institucionais.
A Independência dos Estados Unidos, embora acontecida em 1776, recebeu densa influência do espírito político-filosófico que levou à Revolução Francesa de 1789. Entretanto, com uma diferença abissal.
Os jacobinos, como Robespierre e Danton, articularam a Revolução com o projeto de tornar a França mais igualitária. Porém, no poder, a prática devastou a teoria. Ao admitir que, ao julgar os adversários, notadamente os nobres mas também os aliados, poderiam se comportar como juízes e, também, carrascos, os jacobinos impediram a cristalização de uma sociedade democrática. Começaram matando os rivais e logo estavam se matando. Robespierre, o incorruptível, mandou vários oponentes e parceiros para a guilhotina. Entre eles o popular Danton (na peça “Danton”, o dramaturgo alemão Georg Büchner escreveu que as revoluções são como saturno — devoram seus próprios filhos). Em seguida, o próprio Robespierre perdeu a cabeça — literalmente. A falta de apreço dos jacobinos pela liberdade e pela democracia, que os levou à autodestruição, é o pai e a mãe de Napoleão Bonaparte.
Os Estados Unidos, notou a filósofa alemã Hannah Arendt, colheram a ideia de liberdade — beberam intensamente no Iluminismo —, radicalizaram a questão da defesa da individualidade, mas deixaram de lado o ovo da serpente do totalitarismo (é possível sugerir que, de algum modo, os jacobinos são os pais históricos dos stalinistas soviéticos). A base da sociedade e da democracia americanas é o respeito praticamente sagrado às leis, às instituições. Sabe-se que há um limite legal e respeita-se este limite.
Tristes trópicos
No seu discurso de quinta-feira, 1º, na abertura do Ano Judiciário de 2018, a presidente do Supremo Tribunal Federal, a admirável Cármen Lúcia, não citou Tocqueville e Hannah Arendt, e sim o brasileiro Ruy Barbosa. Suas ideias, porém, ecoam, de maneira geral, tanto o pensamento do francês quanto da alemã (que se apaixonou pelo país de Henry James).
A 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região confirmou a condenação do petista Lula da Silva e aumentou sua pena de prisão de 9 anos e 6 meses para 12 anos e 1 mês — por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. O ex-presidente da República reagiu, de maneira irada, ao dizer que “não tem nenhuma razão para respeitar a decisão” judicial.
Cármen Lúcia, ministra de compostura exemplar — não é movida a impulsos —, ao discursar, estava falando de Lula da Silva, mas não apenas do ex-presidente. Suas palavras são gerais e servem de alerta para todos — e, sim, não apenas para políticos, como petistas e tucanos.
“Pode-se ser favorável ou desfavorável à decisão judicial pela qual se aplica o Direito. Pode-se buscar reformar a decisão judicial, pelos meios legais, pelos juízos competentes. É inadmissível e inaceitável desacatar a Justiça, agravá-la ou agredi-la. Justiça individual fora do Direito não é justiça, senão vingança ou ato de força pessoal”, disse Cármen Lúcia. O espaço de contestação do ato judicial é a própria justiça e há instâncias em que isto pode ser feito. Lula da Silva, por exemplo, está sendo ouvido cuidadosamente pela Justiça, contestando as acusações e pode até espernear, mesmo depois de condenado, mas deve cumprir a decisão judicial. A ministra do Supremo acrescentou, dando um toque tanto iluminista quanto liberal (o que parece contraditório): “Sem liberdade, não há democracia. Sem responsabilidade, não há ordem. Sem justiça, não há paz”.
Mais do que o julgamento do presente, eventualmente passional, o julgamento feito pela História é implacável. Os ditadores Adolf Hitler, Ióssif Stálin, Mao Tsé-tung e Pol Pot, embora tenham de ser explicados de maneira objetiva, para que sejam compreendidos, provocam asco nos leitores de suas biografias. Os quatro são seguramente os maiores assassinos do século 20. Ninguém matou tanto quanto o austríaco, o soviético, o chinês e o cambojano. Cármen Lúcia não é historiadora, mas suas palavras tem um quê dos historiadores criteriosos, como Sérgio Buarque de Holanda, Luís Palacín, Nasr Chaul, Ademir Luiz, Antônio Luiz de Souza, Jacques le Goff e Georges Duby: “Que não tenhamos de ser lembrados pelo que não fizemos, ou pior, pelo que desfizemos do conquistado social e constitucionalmente. Que se recordem de nós pelo que conseguimos contribuir para garantir, que as conquistas históricas não foram esquecidas, que a Constituição não foi descumprida, que a República não se perdeu em nossas mãos, nem a democracia em nossos ideais e práticas”.
Em 1940, quando a Europa assistia “bestificada” o avanço das tropas nazistas, o primeiro-ministro inglês, Winston Churchill, convocou os indivíduos a reagirem, a não se conformarem, com o uso de palavras candentes. As palavras, sabe-se, são armas poderosas. Cármen Lúcia não tem a dimensão internacional de Churchill, mas representa muito para o momento histórico do país. Portanto, são louváveis suas palavras, uma espécie de convocatória aos brasileiros, para que não desanimem e acreditem uma sociedade mais justa e que vivam sob o império da lei: “Não há civilização nacional enquanto o direito não assume a forma imperativa traduzindo-se em lei. A lei é, pois, a divisória entre a moral pública e a barbárie. O respeito à Constituição e à lei é a garantia do direito para cada um de nós, cidadão. A nós, servidores públicos, o acatamento irrestrito à lei impõe-se como dever, acima de qualquer outro. Constitui mau exemplo o descumprimento da lei, e o mau exemplo contamina e compromete. Civilização constrói-se sempre com respeito às pessoas, que pensam igual ou diferente. Enfim, civilização constrói-se com respeito às leis vigentes, que asseguram a liberdade e a igualdade. O Judiciário aplica a Constituição e a lei. Não é a Justiça ideal, é a humana, posta à disposição de cada cidadão para garantir a paz.”
O Brasil vive um momento de intensa passionalidade, porque os cidadãos estão cansados dos desmandos e do que avaliam como falhas do Poder Judiciário. Criou-se um consenso de que só pobres são condenados e vão para a cadeia. A realidade está provando que não é bem assim: o país mudou. Há vários ricos na cadeia — inclusive o indefectível Paulo Maluf. Lula da Silva pode ser o próximo prisioneiro. Vários magistrados — Sergio Moro é apenas um deles — estão cumprindo as leis com rigor e não se intimidam ante os poderosos. A ministra Cármen Lúcia está anunciando a, digamos, boa nova: o Brasil é de todos e aquele que não cumprir as leis sofrerá as consequências. Ao contrário do que professam os “atletas do pessimismo”, o país está melhorando. O motivo é que leis e instituições estão sendo respeitadas. Mesmo Lula da Silva, com seu palavreado rebelado, está cumprindo as leis. Esperneia, mas cumpre-as.
Um novo país está nascendo. Mas será que todos nós queremos isto? O magistrado que não deveria ter direito a auxílio-moradia, mas o recebe — considerando que o imoral, por ser legal, é defensável —, quer mesmo fazer parte desta nova nação? Espera-se que sim. O juiz Marcelo Bretas é sério, competente e intimorato. Mas precisa avaliar a questão de que o legal nem sempre é legítimo. Juízes brasileiros ganham bem — e é fundamental que seja assim —, até mais do que um magistrado americano. Mas é evidente que certas críticas ao magistrado Bretas são articuladas por industriosos aliados, diretos ou indiretos, dos corruptos que saquearam o Brasil.